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Muito além do maracatu, as expressões da cultura, resistência e política do povo negro no carnaval se multiplicam e atualizam com novos conceitos e formas de brincar. Em Pernambuco, terra em que o carnaval se desdobra, do litoral ao sertão, da mata norte à mata sul, em uma diversidade de brincadeiras populares, quase todas nascem da ancestralidade da população negra, afrodescendente, e também indígena.
Em 2020, o afrofuturismo fará sua primeira aparição entre as manifestações culturais da folia. Uma mistura de projeção de futuro, tecnologia e herança ancestral, o conceito se difundiu bastante entre a população negra jovem e urbana. A prévia Enquanto Isso em Wakanda é o primeiro evento que evoca o tema e propõe um espaço de fortalecimento de negros e negras e acontece neste sábado, a partir das 15h55, em Olinda.
A ideia da prévia é quebrar estereótipos e criar um espaço em que pessoas negras possam se expressar e reinventar. “Queremos uma festa que nos exalte enquanto pessoas e nos faça pensar o que faríamos se não existisse racismo, em um ambiente que somos maioria, feito por nós, para nós”, conta Chiara Ramos, idealizadora do bloco e integrante do coletivo Abayomi Juristas Negras, que promove o evento.
“O afrofuturismo, apesar de dar toda ênfase à nossa ancestralidade, à nossa força, à nossa história e buscar esse resgate de identidade ele também propõe a ideia de um futuro que seja coordenado por nós mesmos, para que nós sejamos senhores de nós mesmos. Mostra também nosso potencial criativo, tecnológico, de transformação e construção”, explica Chiara.
Segundo ela, que sonhou com a festa e daí nasceu a ideia, a proposta é dar uma virada de chave, mas sem abandonar as construções ancestrais do povo negro. Ela defende que é importante para a saúde mental e a autoestima que espaços de celebração também sejam de luta e resistência.
“Os ritmos do carnaval de Pernambuco tem uma cor e a cor é preta, negra. Se você vê as nações de maracatu, os afoxés, o coco, o caboclinho, a ciranda, o cavalo marinho. Tudo isso é expressão da negritude. Isso num processo de resistência e sobrevivência e reinvenção de existências contra as elites. Carnaval e política tem tudo a ver”, defende. O evento vai ter participação de vários artistas e afroempreendedores e foi construído sem apoio de empresas ou do governo.
O afrofuturismo do Enquanto Isso em Wakanda chega em um contexto já bem demarcado por diversas expressões do povo negro. Uma delas é o afoxé. Com 34 anos de trajetória, um dos mais tradicionais afoxés de Pernambuco, o Alafin Oyó, é testemunha que a luta para garantir o espaço das expressões negras no Carnaval pernambucano continua árdua e constante.
Questionado sobre a relevância dada ao maracatu em comparação ao afoxé, o presidente do Alafin e da União dos Afoxés de Pernambuco, Fabiano Santos, é bem claro na distinção entre as expressões culturais. Segundo ele, que pesquisa sobre o assunto em seu doutorado, o nome “maracatu” é uma palavra que tem sua origem entre os brancos colonizadores. “Maracatu significa bagunça, furdunço e confusão. Por que não se potencializa como ‘cortejos de África’?”.
Fabiano percebe o maracatu como uma retratação de uma manifestação que “mesmo sendo negra, estabelece que reis e rainhas precisam ter as roupas dos colonizadores”.
“Tem uma música que canta: ‘Princesa dona Isabel, a onde vai. Vou passear, vou para Luanda, vou quebrar Saramuná’. Já na relação dos afoxés e dos blocos afro, se traz uma equidade, equiparação e direitos: ‘Batendo seus atabaques, tocando seu agogô, quem vem aí descendo a ladeira o povo lindo de Xangô”. Já demarcamos que é um povo da capital de Oyó, da Nigéria e não de dona Isabel Leopoldina.”, acrescenta.
Essa diferença entre maracatu e afoxé talvez esteja se revelando na questão dos repasses de recursos para o carnaval. Faltando uma semana para a festa, o Alafin ainda não tem uma confirmação oficial da Prefeitura do Recife para a apresentação tradicional na cidade. Em 2019, a Prefeitura de Olinda também só confirmou a participação de afoxés e orquestras apenas às vésperas do carnaval. É uma situação recorrente nos últimos anos e que demonstra, segundo ele, a falta de “prioridade” na inclusão dessas expressões culturais.
Essa a falta de prioridade acaba por invisibilizar a cultura e se deve a uma forma de racismo, como confirma o presidente do afoxé. “Eu posso entender isso como racismo institucional. Como é que eu não dou visibilidade aquilo que é mais antigo? Mais antigo que a própria instituição. Como eu não dou visibilidade àquilo que criou o fazer do carnaval? A questão é o porquê de não dar espaço para o nosso fazer.”
É com resistência que o afoxé continua a participar da festa, a força de uma resistência que tenta combater o genocídio da juventude negra e a violência contra a mulher que atinge, em maioria, mulheres negras e periféricas. A prévia do Alafin acontece no próximo domingo (16), com um cortejo pelas principais ruas do Sítio Histórico de Olinda e fará o mesmo percurso no sábado de carnaval, com concentração no Largo de Guadalupe, às 18h.
Longe do centro do carnaval em Olinda e no Recife, também a periferia brinca e se empodera politicamente no carnaval. O bloco Sou gorda, mas eu pulo, de mulheres do bairro de Passarinho, uma comunidade na fronteira entre três municípios: Recife, Olinda e Paulista. Formado por uma maioria de trabalhadoras domésticas, foi uma ideia das mulheres realizarem uma festa no próprio bairro, já que muitas não aproveitavam as festas nos centros das cidades. Pode parecer banal, mas o direito à diversão e alegria na própria comunidade é uma conquista e motivo de orgulho.
Algumas dessas mulheres – a maioria negra e também gorda – nunca tinham brincado carnaval devido às restrições objetivas – econômicas e de falta de transporte público – que são rotineiras na periferia na época época festiva. Joelma Santos, com 50 anos, por exemplo, é deficiente física devido à paralisia infantil e nunca tinha ido a um bloco de carnaval. No Sou Gorda, mas eu Pulo ela pôde dançar o frevo pela primeira vez. “Eu me reconheci, foi a maior alegria”, conta. Logo ela, que enfrentou um processo de depressão e, junto às mulheres do Grupo Espaço Mulher, tem retomado sua vida. “Eu só saio nesse bloco porque eu nunca tinha ido para o Carnaval, nunca tinha ido para bloco, sempre ficava em casa”, comemora.
A legitimação do bloco aconteceu naturalmente e vem crescendo com os anos. As mulheres do bairro se reconhecem, é o que conta Edcléia Santos, coordenadora do Grupo Espaço Mulher, de onde surgiu a ideia. “O bloco que ela brinca é esse aqui. A gente sempre é chamada para fazer conversar com mulheres, dar palestras. A gente sempre fala nos lugares sobre nossa comunidade, sobre o racismo ambiental, que afasta a população negra do centro das cidades e vai colocando para as periferias. Quanto mais longe, melhor, para limpar essa visão da negritude”, analisa. Por esse motivo, e também para a comemoração merecida, nasce o bloco. Este ano, a folia de resistência das mulheres negras e gordas de Passarinho acontece na terça-feira de Carnaval.
Mulher negra e jornalista antirracista. Formada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), também tem formação em Direitos Humanos pelo Instituto de Direitos Humanos da Catalunha. Trabalhou no Centro de Cultura Luiz Freire - ONG de defesa dos direitos humanos - e é integrante do Terral Coletivo de Comunicação Popular, grupo que atua na formação de comunicadoras/es populares e na defesa do Direito à Comunicação.
Jornalista atenta e forte. Repórter que gosta muito de gente e de ouvir histórias. Formou-se pela Unicap em 2016, estagiou nas editorias de política do jornal impresso Folha de Pernambuco e no portal Pernambuco.com do Diario. Atua como freelancer e faz parte da reportagem da Marco Zero há quase dois anos. Contato: helenadiaas@gmail.com