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Casa de Badia, a “dama do carnaval”, está esquecida e ameaçada

Maria Carolina Santos / 31/01/2020

Lúcia Soares, na frente da Casa de Badia. Crédito: MCS/MZ Conteúdo

Para quem não conhece, não dá para chegar na casa onde Badia morou sem consultar a internet. Não há placas, nem os comerciantes do Pátio do Terço sabem informar que, naquela casa de fachada amarela com duas janelas e uma porta, viveu uma das mulheres mais influentes do carnaval recifense.

E, antes dela, foi ali que o culto nagô teve suas primeiras cerimônias abertas em terras brasileiras – e se disseminou por Pernambuco.

A casa número 143 da rua Vidal Negreiros é tombada pela Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe). Mas isso garante apenas que ela permanece de pé e não pode ser descaracterizada.

Turista que chega por lá, vai encontrar Lúcia Soares, que se apresenta como prima e filha de criação de Badia. Ela conta que mora lá desde os 10 anos – apesar de idas e vindas. Na sala da frente, com piso de ladrilho hidráulico e paredes de tijolo aparente, serve almoço de prato feito de R$ 10 a R$ 15. É assim que mantém a estreita e longa casa, que também tem entrada pela rua do Forte.

Enquanto corta uma camisa corroída por ratos, Lúcia conta que há 10 anos teve que mudar o telhado da casa. Foi destruído por cupins, que agora fazem caminhos pelas paredes da sala. Na época, foi notificada pela Fundarpe: em casas tombadas, não se pode mudar a estrutura, nem fazer reformas sem aprovação do órgão. “Não deu em nada, não fui multada. Eu fui lá e levei os dois requerimentos que fiz para que eles me ajudassem com o telhado e que eles também não fizeram nada”, conta.

Há poucos meses, a estrutura da casa balançou. A reforma da edificação ao lado, comprada por uma comerciante chinesa, reverberou na casa de Badia. Lúcia foi na prefeitura reclamar e a obra foi embargada.

Aos 68 anos, Lúcia é também uma testemunha das mudanças no bairro de São José. De área residencial à instalação de pequenos comerciantes, até a ocupação chinesa que se instalou nas lojas do bairro. Na frente da casa de Badia, o poeta, cineasta e militante Solano Trindade nasceu e foi criado – hoje, é uma ótica.

Distantes culturalmente, o contato com os chineses se resume a tentativas de compra da casa. “Às vezes estou na porta e eles passam e perguntam se quero vender. Eu digo que não posso”, diz Lúcia, que confessa se arrepender em ter apoiado o tombamento do imóvel. “Não tenho como manter. Não recebo ajuda nenhuma da prefeitura, nem do estado. Tudo que faço aqui é por vontade própria e do povo que vem aqui ajudar”, diz.

“Nessa época chega muita gente aqui querendo conhecer a casa. Eu falo sobre Badia, sobre o carnaval, mas digo que não tem apoio de ninguém. Às vezes a prefeitura manda até ônibus com turistas para cá!”, conta Lúcia, que diz nunca ter participado de nenhum projeto para transformar a casa em um centro cultural.

Historiadores divergem sobre tombamento

Desde 1991, quando Badia faleceu, existe um movimento – hoje enfraquecido – para transformar a residência dela em um centro dedicado ao carnaval e às tradições das religiões de matriz africana. Foi esse movimento que garantiu o tombamento do imóvel, mas não conseguiu ir adiante.

Para o juremeiro e historiador Alexandre L’Omi L’Odó se trata de um exemplo de como o poder público invisibiliza a cultura africana. “Nenhuma obra foi feita, nada foi feito após o tombamento. É apenas uma residência. É como funciona o racismo institucional: o estado só olha para nossa cultura quando tem algum interesse político”, critica.

Para o historiador Leonardo Dantas Silva, estudioso do carnaval pernambucano, Badia foi um “tipo popular do bairro de São José, uma costureira, com presença também no candomblé, e teve uma amizade com o jornalista Paulo Viana”. Editor responsável pela página do carnaval no Jornal do Commercio, Viana foi um dos criadores da Noite dos Tambores Silenciosos, em 1965.

Alguns historiadores creditam à Badia, junto com Viana, a fundação da Noite, onde os éguns (antepassados) são reverenciados – uma forte característica do culto nagô. “Na verdade, a casa de Badia era uma espécie de suporte para a festa. Era onde se vendia as comidas e bebidas, mas Viana criou a Noite dos Tambores Silenciosos sozinho”, diz Leonardo Dantas, que começou a trabalhar com Viana na página de carnaval do JC no ano seguinte à criação da Noite dos Tambores Silenciosos.

Crédito: Maria Carolina Santos/MZ Conteúdo

Para Leonardo, não há motivo para a casa de Badia ser tombada. “Não tem nenhum valor artístico. Está toda descaracterizada, era completamente diferente do que era quando a Noite dos Tambores Silenciosos foi criada. É diferente, por exemplo, do Sítio de Pai Adão, outro terreiro tombado no Recife”, diz.

Historiador e militante do movimento negro, João Monteiro apresenta argumentos sólidos para que o tombamento seja mantido e o local transformado em centro cultural. A história remete a bem antes de Badia morar ali.

Por volta da década de 1870, o casal de africanos livres Joaquim Duarte Rodrigues e Eugênia Rodrigues Braga, fugindo de conflitos na Nigéria, chegou ao Recife no porão de um navio – provavelmente, diz Monteiro, o mesmo em que chegou também Ignês Joaquina da Costa, fundadora em 1875 do Sítio de Pai Adão. Esse casal – que na ancestralidade africana recebeu os nomes de Arô e Atô – foi os pais de Vivina e Emília Rodrigues Braga, conhecidas por Tia Sinhá e Tia Yayá.

Não se sabe quando a família se instalou na casa, mas foi em 1922 que as irmãs compraram o imóvel da Rua Vidal Negreiros, 143. Lá, funcionou um dos primeiros terreiros de tradição nagô em Pernambuco – ainda que às escondidas, com apenas uma obrigação, que ocorria em outubro e homenageava todos os orixás. “As irmãs, que eram conhecidas como Tias do Axé, também eram muito ativas nas festividades católicas. Então, todo mês havia a comemoração de uma festividade, como Cosme e Damião e São Benedito. Havia perseguição às religiões africanas e elas não podiam fazer as cerimônias abertamente. Foram os pais de Sinhá e Yayá que trouxeram para Pernambuco os cultos dos orixás Oxum e Xangô”, detalha João Monteiro.

Badia era filha de uma lavadeira que trabalhava para as irmãs e morava nos fundos da casa. Quando a mãe faleceu, foi criada por elas como filha.

Antes de morrerem, as irmãs Sinhá e Yayá deixaram a casa para usufruto de Badia – que nunca teve filhos biológicos. As irmãs também determinaram que o imóvel deveria ser doado – após a morte de Badia – para a ordem católica da Igreja dos Martírios. Porém, a ordem foi extinta antes, em 1972, após a destruição do templo para a construção da avenida Dantas Barreto.

Sem herdeiros diretos, a casa de Badia ficou então com Lúcia, que afirma nunca ter funcionado um terreiro de candomblé ali – apenas a obrigação aos orixás no mês de outubro. “Sei que há uma família morando lá, mas que não tem o menor interesse em ir atrás de transformar o local em um centro de memória. Talvez pelo interesse em conseguir vender o imóvel. A prefeitura ou o estado deveriam dar uma casa para essa família morar e transformar a casa de Badia no espaço de memória que sempre deveria ter sido”, discorda João Monteiro.

Desde que foi tombada, nos anos 2000, a casa recebeu alguns projetos para se tornar um espaço de memória. O mais sólido deles foi desenvolvido com apoio do Funcultura, que fez levantamento arquitetônico e histórico da casa. Lúcia mantém algumas das tradições dos tempos de Badia, como o Baile Perfumado e ponto de encontro de blocos como o Saberé, formado apenas por homens, e Coroas de São José, fundado por Badia em 1979.

De acordo com a Fundarpe, o processo de tombamento da Casa de Badia recebeu parecer favorável “pela sua rica história de ligação com o carnaval. Apesar de termos conhecimento da vontade de muitos para que o local se tornasse um centro cultural, a legislação estadual que trata do tema não vincula o tombamento ao seu uso como equipamento, espaço ou centro cultural”. Um imóvel tombado pode ser vendido – e o novo proprietário permanece com a obrigação da preservação.

A perda do tombamento também pode acontecer. Segundo o órgão, pode ser por votação de dois terços dos membros do Conselho Estadual de Cultura. Ou também por vontade do proprietário:

O proprietário do bem tombado, que não dispuser de recursos para obras de conservação e reparação, levará ao conhecimento da Secretaria de Cultura a necessidade das mencionadas obras.

§ 1º – Recebida à comunicação, a Secretaria de Cultura remetê-la-á à FUNDARPE, para que, sendo as obras necessárias, as faça executar.

§ 2º – Não sendo iniciadas as obras no prazo de seis meses, poderá o proprietário requerer o destombamento do bem
“, diz trecho da lei.

Badia, uma carnavalesca influente

Nascida em 1915, Maria de Lourdes Silva, Badia, foi muito mais que uma costureira do carnaval do Recife. Ela manteve a tradição das festas e obrigações das Tias do Axé. Era pessoa influente no carnaval, conhecida por todo centro do Recife, criando blocos e ajudando tantos outros.

Por conta dessa influência, era muito cortejada por políticos. Em 1985, foi a homenageada do carnaval do Recife: foi nessa época que recebeu a alcunha de “Primeira Dama do carnaval”. “Ela era muito amiga de Joaquim Francisco (prefeito na época da homenagem). Ele visitava aqui direto. Quando ela faleceu, em 1991, ele estava em Brasília e veio às pressas para o Recife. Acompanhou o cortejo até a ponte”, lembra Lúcia. “Gustavo Krause também frequentava muito. Saía daqui de madrugada”.

Com a morte de Badia, todos sumiram, diz Lúcia. “Ninguém mais veio aqui. Hoje só ligam para o carnaval do Recife Antigo. O bairro de São José foi esquecido”, critica.

AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Ávida leitora de romances, gosta de escrever sobre tecnologia, política e cultura. Contato: carolsantos@gmail.com