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Foto colorida da reunião das torcidas organizadas: há um grupo de pessoas em uma sala, participando da reunião. As pessoas, todos homens jovens, usam camisetas brancas , vermelhas ou amarelas com inscrições nas costas e bonés, enquanto as pessoas na mesa estão vestidas de forma mais casual. A sala é bem iluminada, com paredes brancas e logotipos ou emblemas circulares na parede atrás da mesa. Um projetor está ligado, mas o conteúdo na parede branca acima da mesa não é visível. O ambiente sugere formalidade e organização,

Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

Cessar-fogo?

Torcidas organizadas dos três clubes do Recife negociam tratado de paz

Inácio França / 05/03/2024

Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

Na noite em que a Federação Pernambucana de Futebol e a Polícia Militar decidiram que os clássicos entre Santa Cruz x Sport pelas semifinais do campeonato estadual serão realizados com torcida única, as lideranças das três principais torcidas organizadas do estado costuravam um “tratado de paz” no auditório do Sindicato dos Metalúrgicos, no centro do Recife. O encontro foi iniciativa dos próprios torcedores e não contou com a presença de nenhuma autoridade.

Já houve outras tentativas de se fazer algo parecido antes, mas essa foi a primeira vez em que uma negociação entre as torcidas acontece em um momento de tensão extrema, dias após o ataque ao ônibus da delegação do Fortaleza e às vésperas de jogos decisivos. Único veículo de mídia presente, a Marco Zero acompanhou a reunião do início ao fim.

Não se pode dizer que os líderes da Fanáutico, Jovem do Sport e Inferno Coral (atualmente Explosão Coral) não se expressam uns com os outros com clareza, em linguagem crua, sem arrodeios. “Se a gente for começar a falar das feridas abertas que temos, não vamos acabar nunca. Todas as três torcidas têm culpa no cartório. Agora não tem mais jeito, o que a gente tem de fazer é se alinhar”, disse o alvirrubro Arthur, da Fanáutico. Pouco antes, ele havia dito que “não adianta, a PM não vai dar respaldo ao que for combinado aqui, a gente é que tem de ter hombridade para respeitar o pacto”.

Na mesma linha sem-papas-na-língua, Erivam, da Explosão/Inferno, fez uma provocação aos demais diretores: “nós da liderança temos de nos conscientizar que também ajuda a ter violência. Por exemplo: quando os componentes pedem dinheiro pra botar gasolina no carro pra dar umas voltas, a gente sabe que os caras vão partir pra briga com o pessoal de vocês, mas, mesmo assim, a gente dá dinheiro”.

Ninguém contestou.

Respeitado até pelos adversários por sua coragem e desempenho nas brigas de rua, Carlos Renato, o Renatinho, fez um dos mais enfáticos discursos pela paz entre as organizadas: “A gente tem de fazer essa parada andar, a gente tem de dar as mãos e passar essa visão para os nossos irmãos na rua. Se o componente vê a gente com as ideias abraçadas, vai aceitar nosso pacto. Se isso tivesse acontecido há uns dez anos, a gente estaria em outro patamar”.

Quando fala em “outro patamar”, Renatinho inclui também o aspecto financeiro. “Qual é a empresa que vai querer patrocinar um negócio com morte, confusão, destruição?”.

Líderes admitem que também têm culpa pela violência. Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

Os termos do tratado de paz

Para entender a importância do que foi combinado na reunião seria preciso conhecer a dinâmica da relação entre as torcidas, incluindo alguns simbolismos que parecem misteriosos a quem não é desse universo, caso deste repórter e da maioria dos leitores da Marco Zero. Pra começar, “sede e estádio são sagrados”. Traduzindo: uma torcida não pode atacar a sede da outra nem brigar dentro dos estádios. Isso é tão importante que o coordenador regional da Associação Nacional das Torcidas Organizadas (Anatorg), Adriano Costa, incluiu esse item na pauta da reunião.

O primeiro a garantir que seu grupo vai se manter longe da sede das rivais foi o torcedor do Náutico. “Pra gente, isso acabou, não vai ter mais”, cravou Arthur. Durante o debate desse ponto, alguém do auditório falou que “se forem na nossa sede vão ser recebidos à bala…”

Ivison Tavares, também conhecido como Pastor, um evangélico que foi líder das brigas de rua e hoje é advogado, defendendo tanto torcedores organizados quanto PMs acusados de crimes, cortou a fala enfaticamente: “não tem mais isso ‘se forem lá…’, não, não tem de ter. Acabou. Ponto. Fim”.

Antes de chegar a notícia que o clássico do próximo sábado será com torcida única, os torcedores debateram exaustivamente como reduzir os riscos das brigas nas ruas e avenidas a caminho do estádio. Aqui cabe uma explicação: a maior parte dos confrontos violentos acontece no trajeto dos “bondes”, ou seja, os grandes grupos que saem dos bairros de ônibus, metrô ou mesmo a pé. Ficou claro que o “pessoal dos bairros” preocupa – e muito – as lideranças das torcidas. Teria sido um desses grupos que emboscou o ônibus do Fortaleza no Curado.

Se a torcida do Sport puder ir ao clássico no Arruda, ficou acertado que os tricolores só vão iniciar seu deslocamento às 13h, quando os rubro-negros estiverem todos concentrados diante da sede do Sport, na Ilha do Retiro. Os líderes rivais assumiram o compromisso de manter a transparência, avisando uns aos outros onde estão os “bondes”. Nas ruas do entorno dos estádios, também está acertado que as lideranças vão ficar atentos para “apagar os incêndios”, principalmente apartando pequenas brigas que podem se tornar em pancadaria generalizada antes ou depois do jogo.

Serão enviados ofícios a PM pedindo escolta, informando horários, trajetos e pontos de concentração. Mesmo que seja negado, todos consideraram importante a formalização para “resguardar juridicamente as diretorias das torcidas”.

Se realmente a próxima partida acontecer com torcida única, as lideranças da Jovem se comprometeram a deixar o caminho livre para os tricolores, mas admitem que há sempre o risco de grupos isolados – ou, no caso da torcida do Sport, a oposição à atual diretoria da torcida – tomarem a iniciativa de atacar alguém.

Também ficou pactuado que o acerto vale para todos os jogos de agora em diante.

Em relação à torcida única, o advogado Renan Castro, da Comissão de Direitos Humanos da OAB e integrante do Centro Popular de Direitos Humanos (CPDH), acompanhou a reunião e, no final, disse estar à disposição caso as organizadas queiram dar entrada numa Ação Civil Pública para tentar assegurar o direito da torcida do Sport ir ao jogo no Arruda. E vice-versa.

Sem consenso

Um ponto, no entanto, ficou em aberto, sem que os torcedores alcançassem um consenso: o que fazer se integrantes da torcida, isolada ou coletivamente, violarem o acordo de paz?

Os participantes reconhecem que, ao menos em um primeiro momento, será inevitável que isso aconteça. Para Pastor, o que vai determinar o sucesso do pacto será a resposta das diretorias das organizadas que, em meio a outras tentativas de pacificação, teriam sido complacentes com os violentos ou mesmo recomeçando a “guerra”. O advogado da Jovem pediu que se considerasse a possibilidade de “entregar” os nomes dos responsáveis para ajudar o trabalho da polícia.

“Não que eu seja a favor disso, mas é preciso fazer algo diferente porque o que está em jogo é a existência das nossas instituições e a liberdade das lideranças porque a nova Lei Geral dos Esportes responsabiliza os dirigentes de torcidas pelos danos causados”, alertou.

O alvirrubro Arthur descartou a possibilidade de agir dessa maneira: “não vamos ser x-9 [o mesmo que dedo-duro, delator]”. O coordenador da Explosão/Inferno havia dito que “a gente tá preferindo ter 500 caras que honrem o bagulho [a instituição] do que 4.000 maloqueiros”, mas não deixou claro qual a posição da sua organizada.

Adriano Costa explicou a Anatorg se posicionou contra a delação e explicou o porquê: “O Estado vai garantir a vida dos dirigentes de torcidas que entregarem seus componentes para a Polícia? Não vai”.

No final, Costa, anunciou que a entidade pretende organizar um encontro de todas as torcidas organizadas do estado ainda este ano.

Enquanto posavam juntos para a foto simbólica, os participantes do encontro comentavam que o sucesso do tratado de paz neste momento é decisivo para as organizadas. Ao menos entre os “cabeças” há um certo cansaço das cenas de violência: “a gente também tem famílias, queremos viver nossas vidas”, comentou o rubro-negro Renatinho.

AUTOR
Foto Inácio França
Inácio França

Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.