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Coletivas online sem interação criam zona de conforto para governos e ameaçam qualidade da informação

Raíssa Ebrahim / 09/04/2021

Crédito: Heudes Regis/SEI/Arquivo

Por questões de segurança, a pandemia impôs adaptações nos canais de comunicação entre o poder público e a imprensa, responsável pela mediação das informações de interesse público. O prolongamento da crise sanitária da covid-19 transformou em “normal” o que foi criado para ser exceção, ameaçando o direito constitucional à informação e a transparência da gestão pública, elementos imprescindíveis à credibilidade, sobretudo em momentos de crise.

Em Pernambuco, assim como em diversos outros estados, o governo suspendeu, desde o início da pandemia, as entrevistas coletivas de imprensa presenciais para falar sobre o enfrentamento à covid-19. Aqui, o formato passou a ser apenas virtual, com transmissão ao vivo pelo YouTube, com área de comentários fechada durante a live, num modelo que não permite interação entre jornalistas e gestores nem mensagens dos cidadãos enquanto o evento é transmitido.

As perguntas precisam ser enviadas com uma ou duas horas de antecedência num grupo de WhatsApp, porém os jornalistas sequer sabem quais os assuntos que serão tratados pelos gestores. Os nomes dos secretários que estarão presentes são uma das poucas informações antecipadas aos participantes.

Assim, sem interação, o Governo de Pernambuco segue realizando coletivas que mais parecem pronunciamentos oficiais. As coletivas, por definição, pressupõem diálogo com porta-vozes sendo questionados em tempo real com espaço para réplicas e tréplicas, tendo os jornalistas como mediadores das demandas da sociedade e do interesse público. Os veículos que ainda precisem de informações ou queiram rebater as respostas precisam enviar a demanda para as assessorias de imprensa das secretarias. A maioria das respostas chega através de notas.

Queixas nas redes sociais

Nas redes sociais, jornalistas que acompanham as ações governamentais na pandemia por dever profissional já apontam o risco desse modelo para a qualidade de informação que chega à sociedade. Em seu perfil no Twitter, uma pessoa que trabalha numa TV local postou, no dia 25 de março, a primeira de uma série de críticas ao engessamento das coletivas: “Parece que a única coisa que o @governope não vai flexibilizar é o modelo de ‘coletiva’ de imprensa que adotou durante a pandemia. Há quase um ano, ela é virtual e os jornalistas precisam enviar perguntas com antecedência, às vezes, deduzindo o que vai ser tratado porque o assunto principal não é divulgado com antecedência. Sem a presença – sequer virtual – dos jornalistas, não há chance para questionamentos com base naquilo que foi apresentado. Temos que nos contentar com a resposta sem chance de réplica ou avanço naquela questão imediatamente”.

Na terça-feira, 6 de abril, o tuíte de outra pessoa que trabalha em jornal identificou a incoerência entre a flexibilização das medidas restritivas e o rigor das entrevistas online: “Governo de Pernambuco não faz coletiva de imprensa sobre a covid-19 presencial. Mas faz evento, com bem mais gente, além do governador e da imprensa, pra começar a vacinar os profissionais da segurança. Como explicar?”

Não demorou muito para uma outra terceira pessoa de outra TV local comentar: “Se fizer coletiva presencial, os coleguinhas vão poder perguntar o que quiserem, sem mandar nada previamente, para dar tempo de pensarem nas respostas. E ainda tem direito a réplica, tréplica…”

Além das redes sociais, a Marco Zero Conteúdo conversou, ao longo da última semana, com seis jornalistas, entre repórteres e editores, todos debruçados, há mais de um ano, na cobertura da pandemia em Pernambuco. Eles foram unânimes em dizer que o modelo de coletiva compromete o trabalho da imprensa e consequentemente a informação que chega à população, porém pediram para terem suas identidades preservadas por receio de retaliação do governo.

“É um retrocesso em relação à liberdade de imprensa, porque não permite o básico de uma entrevista coletiva”, disse uma das pessoas, queixando-se de não ter conhecimento prévio do que será anunciado nos eventos e do que chamou de “comodismo” dos porta-vozes. “Fere o trabalho do jornalista, fere a sociedade e prejudica até a imagem dos veículos”, avaliou.

“Coletiva é onde você pode perguntar, isso (o formato) é pronunciamento”, comentou outra profissional, destacando que “o governador nunca está presente, nem mesmo quando são ações positivas”. De fato, diferente de outros estados, como São Paulo e Bahia, o governador Paulo Câmara (PSB) não protagoniza esses momentos coletivos semanais transmitidos do Palácio do Campos das Princesas. Quem comanda os anúncios é o secretário de Saúde, André Longo, acompanhado de outros gestores.

“Uma coisa é entrevista, outra coisa é entrevista coletiva. São dois formatos diferentes”, comenta uma das pessoas ouvidas. “Em outros países, é uma coisa preocupante para a democracia. O modelo de coletiva (em Pernambuco) não foi adaptado para o Plano de Convivência, segue o mesmo desde o início. Se fechar para informação, é se fechar para a população”, defende. No Plano de Convivência de 2020, o retorno das coletivas estava previsto na fase 11, a partir de 10 de outubro, mas não aconteceu.

Fenaj vê prejuízo à sociedade

Na avaliação da presidenta da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), Maria José Braga, a institucionalização das coletivas remotas é uma medida necessária de proteção à vida dos jornalistas e das autoridades, mas, ao adotar essa prática, não se pode descaracterizar a essência das coletivas de imprensa. “Sem diálogo, não há coletiva. Sem diálogo, há pronunciamento. Sem diálogo, há respostas a perguntas previamente indicadas”, define.

“A vantagem das tecnologias atuais é que elas permitem essa interação, mesmo sem a presença física. Então o Governo de Pernambuco está pecando por, partindo de uma situação excepcional, que é a pandemia, de alguma forma, restringir o acesso dos jornalistas às autoridades, aos funcionários públicos, e, portanto, restringir o acesso dos jornalistas às informações que são devidas à população”, comenta.

“É claro que isso tem prejuízos ao trabalho dos jornalistas, que acarreta em prejuízo para a população”, resume Maria José.

Em entrevista à MZ, na terça-feira, 30 de março, a jornalista, professora e presidenta da Comissão de Ética do Sindicato dos Jornalistas de Pernambuco (Sinjope), Andréa Trigueiro, destacou alguns pontos do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros (ver abaixo) que ela avalia estarem sendo atingidos com o formato de coletiva virtual adotado pelo estado. Os artigos falam sobre temas como o direito fundamental à informação e a divulgação da informação precisa e correta como dever dos meios de comunicação.

Com base nos relatos feitos pela reportagem, Andréa, que hoje é professora universitária e já não atua em redação atualmente, questionou: “Como o cidadão vai ter acesso a essa informação se o jornalista, que é mediador, não consegue dialogar com quem está na gestão? Porque mandar perguntas previamente não é diálogo”. “A apuração das informações termina ficando comprometida, uma vez que não é possível fazer perguntas sobre o que você não sabe o que é”, complementou.

O código fala também sobre a prestação de informações pelas organizações públicas e privadas como uma obrigação social. “Isso não está sendo prestado da maneira adequada. Há um cerceamento explícito da atividade do jornalista na medida em que não se pode fazer perguntas como deveriam ser feitas”, comenta, frisando que a situação contribui ainda mais para a precarização do fazer jornalístico.

A avaliação de Andréa não é um julgamento nem um posicionamento da comissão, que precisaria legalmente ouvir as partes envolvidas para poder emitir um parecer com juízo de valor.

A jornalista e professora Fabiana Moraes, tem uma avaliação na mesma linha. Para ela, é preciso entender que o contexto da pandemia, do afastamento social e dos cuidados sanitários, com consequente aumento de demandas da imprensa, forçaram mudanças de formatos, sobretudo no início, quando não se sabia exatamente como lidar com a questão. Mas, por outro lado, diz, também é preciso entender que, justamente por conta desse contexto, as demandas da imprensa refletem as demandas e as dúvidas da sociedade.

“Uma vez que esse canal (das coletivas de imprensa) se torna mais difícil, tem-se aí uma interrupção ou um funcionamento mais precarizado desse canal. Essas perguntas deixam de ser feitas e aí, obviamente, essas respostas não chegam”, pontua Fabiana, que também é colunista do The Intercept Brasil e conselheira da Agência Pública e do coletivo Énois.

“Outra questão é que o fundamental espaço para o contraditório é, nesse sentido, impedido de acontecer. Sem saber o que será especificamente anunciado nos eventos, algumas abordagens acabam ficando no limbo”, define.

Secretário diz que “modelo é o mais democrático

A MZ conversou, por telefone, com o secretário estadual de Imprensa, o jornalista Eduardo Machado. Ele afirmou desconhecer “essa reclamação generalizada a respeito do formato das coletivas” e também desconhecer “qual é o governo do estado que esteja fazendo coletivas via Zoom”. A plataforma foi citada especificamente porque a reportagem deu esse formato como exemplo na conversa.

Confira mais abaixo como têm feito os outros oito Estados do Nordeste e também São Paulo, que concentra a maior quantidade de jornalistas, veículos e correspondentes do Brasil.

Machado explicou que, desde o dia 18 de março de 2020, a gestão adotou um “canal adicional para se comunicar com a imprensa”, através das coletivas online, que antes eram diárias e passaram a ser semanais, somando até agora mais de meio milhão de visualizações e oportunidade para que veículos do interior direcionem seus questionamentos e suas exibições para suas respectivas áreas de atuação.

Esse seria, na visão do governo, o formato “mais democrático” para este momento. O gestor reforçou que, além das coletivas, o secretariado, assim como seus assessores de imprensa, estão sempre disponíveis para entrevistas e informações a todo tempo. Durante a conversa, Machado frisou várias vezes que as coletivas não são o único meio de comunicação do governo com a imprensa.

“Não teve um dia nesta pandemia que a gente não tivesse um secretário de Estado num veículo de comunicação ao vivo em Pernambuco”, acrescentou. Ele lembrou que, somente no último mês, o governador Paulo Câmara (PSB) deu entrevistas para veículos como Rede Globo, TV Jornal, TV Clube, TV Asa Branca, CBN e Globo News, exemplificou – todos de rádio ou TV.

O secretário citou ainda que o governador esteve recentemente dando entrevistas ao visitar equipamentos públicos como o Compaz Ariano Suassuna e o Hospital Alpha, “com repórteres tendo direito a perguntar, fazer réplica e tréplica”, “sobre qualquer assunto”. Foram ocasiões em que, disse Machado, o chefe do Executivo “deu entrevistas de meia hora, 40 minutos sendo questionado sem qualquer tipo de ingerência”.

Sobre a falta de interação, que permite réplica e tréplica e define o formato das coletivas, o secretário demonstrou preocupação com a duração da entrevista. “Quando vamos terminar essa coletiva?”, indagou. Machado respondeu com uma evasiva sobre o não detalhamento prévio do assunto das coletivas: “Nossas coletivas aqui toda semana são todas sobre o enfrentamento da covid”.

“Não sei onde tem algum tipo de cerceamento à liberdade de imprensa no estado de Pernambuco”, provocou. Quando questionado sobre que avaliação faz, enquanto jornalista de formação e com base no código de ética da profissão, das colocações da presidência da comissão do Sinjope, Machado revelou ter ligado para Andréa Trigueiro antes de telefonar para conceder a entrevista à reportagem.

Machado disse repudiar insinuações de que as coletivas online seriam um cerceamento à atividade jornalística: “Estou aqui para democratizar informação”.

As coletivas de covid-19 no Nordeste e em São Paulo

Na pandemia, cada Estado adotou seu formato de coletiva. Alguns com mais restrições, outros com menos.

  • Na Bahia, as coletivas vinham acontecendo presencialmente, comandadas pelo governador Rui Costa (PT). Por conta do aumento de casos de covid-19, foram suspensas em fevereiro. Desde lá, o chefe do Executivo baiano tem falado mais através do chamado #PapoCorreria, programa semanal ao vivo em que a população pode enviar perguntas ao governador. Até então, as coletivas tinham também transmissão via, com transmissão no Youtube e nas redes sociais. Os microfones dos jornalistas eram abertos em tempo real para que cada um fizesse a sua pergunta ao vivo.
  • No Maranhão, governado por Flávio Dino (PCdoB), as coletivas são lives transmitidas no Youtube e nas redes sociais, geralmente às sextas-feiras com temática previamente divulgada. As perguntas precisam ser enviadas antes, cada veículo pode mandar um questionamento e há uma quantidade limitada de participação, a prioridade é por ordem de envio.
  • Já no Ceará, governado por Camilo Santana (PT), as transmissões, com divulgação prévia do assunto específico, são ainda mais restritivas do que em Pernambuco, pois não têm interação e a imprensa não tem acesso a canais para envio de perguntas.
  • No Estado de Sergipe, onde o governador é Belivaldo Chagas (PSD), os jornalistas podem acompanhar as coletivas presencialmente ou de casa. Os assuntos não são especificados previamente, mas há possibilidade de enviar perguntas durante o evento, em tempo real, através do WhastApp.
  • Em Alagoas, cujo governador é Renan Filho (MDB), as coletivas sobre a pandemia têm sido num modelo híbrido. É possível comparecer presencialmente ou acompanhar pela internet. Os temas são anunciados de forma genérica, mas é possível enviar perguntas durante o evento por WhatsApp ou redes sociais.
  • No Piauí, por sua vez, gerido pelo governador Wellington Dias (PT), a maioria das coletivas tem sido online, mas algumas abrem para presença dos jornalistas. Porém, não há qualquer possibilidade de interação.
  • No Rio Grande do Norte, onde a governadora é Fátima Bezerra (PT), as coletivas são presenciais, num pátio aberto de uma escola pública, com presença de jornalistas e transmissão ao vivo nos canais oficiais. Mas quem não está presente não tem como perguntar.
  • Na Paraíba, governada por João Azevêdo (Cidadania) e onde as coletivas de covid-19 têm ficado cada vez menos frequentes, os eventos costumam ser online, com o envio de perguntas com antecedência ou na hora, via WhatsApp. Mas algumas vezes as coletivas acontecem apenas no formato presencial.
  • Já em São Paulo, governado por João Dória (PSDB), cotado para concorrer à presidência em 2022, existe a possibilidade de comparecer presencialmente ou acompanhar virtualmente os anúncios do governador João Dória (PSDB), realizados três vezes por semana. Quem participa online precisa se registrar antes e também enviar as perguntas com 30 minutos de antecedência. Com o assunto previamente divulgado, seja presencial ou virtualmente, as perguntas são lidas pelos próprios jornalistas com microfone aberto em tempo real via plataforma Zoom.

AUTOR
Foto Raíssa Ebrahim
Raíssa Ebrahim

Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com