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Com 664 infectados e seis mortos por Covid-19, presídios seguem rotina de desamparo em Pernambuco

Raíssa Ebrahim / 02/07/2020

(ilustração: Thiko Duarte/Marco Zero Conteúdo)

As unidades prisionais brasileiras têm um histórico de superlotação, altos níveis de estresse e acesso precário a água e saúde. Com a pandemia, as visitas de familiares, órgãos de monitoramento e movimentos sociais foram proibidas. O acesso de advogados está restrito e há muita falta de informação. O combo ativou o cronômetro da bomba-relógio que é o sistema penitenciário brasileiro.

O aumento nas taxas de contaminação pelo novo coronavírus nos presídios, entre maio e a metade do mês de junho, bateu a marca de 800%, de acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Segundo a última atualização do órgão, de 12 de junho, havia 2,2 mil casos confirmados.

Em Pernambuco – onde mais de 31 mil pessoas privadas de liberdade se espremem num sistema com capacidade que não chega a 14 mil -, já há 664 casos oficialmente confirmados e seis óbitos. Os dados são desta quinta-feira (2 de julho). Como não há testes para todos, existe a forte suspeita de subnotificação. O estado também contabiliza quatro suicídios de abril até junho.

(infográfico: Thiko Duarte/MZ Conteúdo)

As visitas presenciais foram suspensas no dia 20 de março e seguem assim pelo menos até 31 de julho. Até agora, somente 9.208 detentos e detentas tiveram acesso ao contato virtual com os familiares, através de videoconferências. É menos de um terço do total das pessoas privadas de liberdade, num sistema que já não tem o hábito de garantir informações.

As videoconferências só tiveram início em 11 de maio, atendendo à resolução conjunta do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) e do Conselho Nacional dos Secretários de Estado da Justiça, da Cidadania, Direitos Humanos e Administração Penitenciária (Consej). A comunicação acontece uma vez por semana, com duração de até três minutos, sob supervisão, numa sala reservada, onde fica o tablet ou o celular disponibilizados pelo estado.

No caso dos encontros com advogados, o protocolo do direito de garantia constitucional de atendimento jurídico, foi ainda mais protelado. Os parlatórios virtuais só começaram no dia 22 de junho. A Secretaria Executiva de Ressocialização (Seres) só registrou, até o momento, 13 encontros, que acontecem com supervisão de um servidor.

A ação é um termo de cooperação técnica entre a Secretaria de Justiça e Direitos Humanos e a Ordem dos Advogados do Brasil em Pernambuco, que disponibilizou os tablets.

LEIA TAMBÉM: A vida delas: as histórias de mães e esposas de presos na penitenciária “modelo” de Pernambuco

Água e saúde: faltam direitos essenciais

As unidades prisionais não costumam ter torneiras nas celas. O cárcere geralmente vive em função dos baldes. A água é ligada três vezes ao dia, manhã, tarde e noite. É necessário racionar e gerenciar o uso internamente, cela a cela, e conviver com a insalubridade. Uma cama costuma ser dividida para duas pessoas, as demais dormem no chão.

“A maioria da população carcerária tem baixa imunidade devido à má qualidade da água e da alimentação e ao estresse. Tomam pouca água e não têm suprimento de vitaminas. Não existe isso de distanciamento”, relata uma das três egressas do sistema beneficiadas com a prisão domiciliar durante a pandemia.

Ela tem data prevista para voltar, início de agosto. “Só Deus mesmo para proteger. Até porque existem os trabalhadores que entram e saem todos os dias podendo levar o vírus. E aí fica muito fácil se espalhar”.

Na semana passada, o portal G1 publicou um vídeo que mostra presos com a Covid-19 deitados em corredor da penitenciária de Petrolina, no Sertão.

(Crédito: foto extraída do vídeo publicado pelo portal G1)

Thaisi Bauer, advogada do Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop), enfatiza o quanto as limitações de acesso e de informação dificultam a atuação dos mecanismos de fiscalização. Segundo ela, há denúncias de falta de acesso à saúde e diminuição da alimentação. Eram as famílias que levavam muitos do itens de comida e higiene pessoal. “Sem visita, isso tem sido um problema”, diz.

Amanda Cavalcante, integrante do coletivo Além das Grades, também vê como complicado o acesso a informações. Ela defende a necessidade de um boletim das unidades prisionais. “Dependemos do governo e das unidades prisionais, mas nem todas estão disponíveis para enviar informações, assim como não têm orçamento para ações e coisas básicas”.

“Menos da metade das pessoas privadas de liberdade tem acesso a acompanhamento de saúde dentro do sistema carcerário e com atendimentos médicos pontuais. Por questões óbvias, tem se evitado o encaminhamento de pessoas em situação de cárcere para o sistema de saúde externo”, pontua Thaisi. Assim a situação de quem já tinha comorbidades vai se agravando.

Wilma Melo, coordenadora e fundadora do Serviço Ecumênico de Militância nas Prisões (Sempri), atua na área há 30 anos, e avalia que “o sistema prisional está em convulsão social pela Covid-19”.

Ela comenta que “a prisão já tem uma superlotação inquestionável. As famílias sabem o que acontece, as mortes, os castigos, os enforcamentos. A Covid-19 traz interrogações e elas ficam angustiadas porque sabem o que pode acontecer com o distanciamento”. “O momento é de muita cautela para que essas prisões não explodam”, acredita.

Questionado pela reportagem, o governo do estado disse que não dispõe de informações sobre enforcamentos nesse período.

As famílias têm um papel fundamental porque são elas, juntamente com as ações de solidariedade, que continuam complementando o que o estado fornece. “Não existem só pessoas com a Covid-19, mas com outros problemas de saúde. São as famílias que continuam ajudando o sistema a funcionar”, pondera Wilma.

Outra mulher egressa detalhou à Marco Zero Conteúdo que, na unidade onde estava, é uma detenta quem fica, fora do horário de expediente da funcionária responsável, com a chave de acesso ao local onde há remédios.

“A única coisa que dão para a gente é paracetamol. Qualquer coisa nos jogam no ‘pote’ (local do castigo) para ficarmos 10 dias isoladas, jogadas, tomando água que só Deus sabe de onde vem”, detalha. “As meninas que continuam lá estão com muito medo, à mercê da doença. São eles que passam a doença para a gente, né? Porque a gente não sai para a rua”.

Em março, a negligência tirou a vida de Elimy Cassiana Ramos do Nascimento, apelidada de Mel. Ela estava na cela de “castigo” na Colônia Prisional Feminina de Abreu e Lima (conhecida como Cotela) quando as colegas notaram que estava passando mal, mas as agentes penitenciárias não lhes deram atenção. Três horas depois, perceberam que Elimy havia morrido sem socorro.

Foi o Liberta Elas que recebeu a denúncia e encaminhou o caso para o GT de desencarceramento, resultando numa portaria do Ministério Público, que iniciou as investigações. Para arrecadar dinheiro para comprar mais kits de higiene e limpeza para as mulheres encarceradas como medida mínima de proteção à vida e à saúde, o Liberta Elas está com uma Vakinha online.

(charge: Thiko Duarte/MZ Conteúdo)

Histórico de omissão e cenário de caos

O Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) publicou um informe, na semana passada, em que mostra o resultado do monitoramento do sistema de privação de liberdade com informações por estado. Um dos trechos sobre Pernambuco aponta problemas históricos e fala da falta de rotina e informação:

O histórico do sistema prisional de Pernambuco é de omissão extrema. As unidades são superlotadas e com um baixo número de profissionais atuantes. A lógica estabelecida no estado é a de que os chaveiros (presos reconhecidos para a “função” de controle de abertura e fechamento dos cadeados) administrem as alas e celas das unidades superlotadas e os funcionários não adentrem nas unidades. Essa situação faz com que não haja garantia da distribuição de remédios, materiais de higiene e até alimentação e água.

O cenário de caos nas unidades e a falta de rotina institucional faz com que as informações não sejam seguras. As informações públicas dão conta de que são 8.029 casos confirmados de COVID-19 no sistema prisional. Há um risco extremamente elevado de subnotificação.

Para conter a disseminação do coronavírus nas unidades prisionais, os presos que estão em regime semiaberto, suspeitos ou não da Covid-19, e que iam progredir para o regime aberto ou obter o livramento condicional até o dia 31 de julho, estão sendo beneficiados com a prisão domiciliar.

Segundo dados da Seres, 2.119 detentos que se enquadram nessa situação foram liberados judicialmente para a prisão domiciliar por conta da pandemia. O benefício também contempla idosos (acima de 60 anos – menos de 1% da população carcerária), pessoas com comorbidades e pensão alimentícia.

A medida tem como base a Recomendação nº 62 do CNJ, que trata das ações adotadas para a prevenção e o tratamento da Covid-19 nos estabelecimentos prisionais e socioeducativos do país. Por conta da situação crítica, ela foi renovada por mais 90 dias.

Após pressão da sociedade civil, o uso de contêineres para isolamento nas unidades prisionais foi descartado. Cada local tem implementado um formato utilizando outras estruturas, a exemplo das escolas. Na Cotela, a quarentena de quem chega tem sido feita na “espera”, espaço em que as mulheres já ficavam antes de descer para o pavilhão e onde passam por atendimento da equipe técnica e de saúde.

“O problema é que, nas unidades superlotadas, os isolamento são coletivos”, crava Wilma. Testes, assim como aqui fora, só existem para quem tem sintomas gripais. A Marco Zero Conteúdo solicitou à Secretaria Estadual de Saúde (SES-PE) o quantitativo de testes realizados, mas não teve retorno desse dado.

Preocupa também a situação das oito mulheres gestantes dentro do sistema prisional de Pernambuco. O estado garante que “Todas estão em isolamento sendo acompanhadas pelas equipes de saúde”.

A ativista dos direitos humanos Sara Rodrigues, mãe de uma crianças de cinco anos e presa em junho acusada de tráfico e associação ao tráfico, é uma delas. A defesa nega a acusação da polícia e sustenta que a legislação em favor de mulheres como Sara não está sendo considerada pela Justiça.

Thaisi, do Gajop, lembra ainda que as transferências de presos entre unidades continuam reiteradamente, assim como as novas prisões. Nas delegacias, não costuma haver isolamento. No sistema socioeducativo, o clima também é tenso, agravado pelos mesmos motivos: falta de visitas e poucas atividades pedagógicas. Houve rebeliões no Cabo de Santo Agostinho e em Caruaru.

Sobre as transferências, a Secretaria Executiva de Ressocialização (Seres) informa que “há um protocolo para cada unidade prisional praticado pelo setor psicossocial”. Mas “todas são orientadas a não comunicar a transferência no momento em que ela ocorre por questões de segurança”.

“A escola parou, o trabalho parou. Tínhamos feito uma cota no pavilhão para comprar uma bola, mas eu preferia ficar dormindo para não me envolver em confusão e estresse”, conta uma das mulheres egressas que conversou com a reportagem.

Estado diz reforçar medidas nas unidades

Em nota, a Seres informou que, entre as medidas de prevenção na unidades prisionais, estão “distribuição e exigência do uso de máscaras em tecido a todos os detentos, reforço na higienização com hipoclorito em toda a unidade prisional, em especial, nos pavilhões onde ficam os casos confirmados, suspensão das visitas presenciais, testagem rápida, isolamento e monitoramento dos detentos assintomáticos”.

A Seres e a Secretaria Estadual de Saúde informam que “as pessoas privadas de liberdade que apresentem sintomas gripais são submetidas ao diagnóstico laboratorial, isoladas e acompanhadas diariamente pelas equipes de saúde lotadas nas unidades. Caso ocorra agravamento dos sintomas, são encaminhadas para assistência em unidade de referência da Rede de Atenção à Saúde (RAS). A SES ainda pontua que em todas as unidades prisionais estão sendo realizados exames para diagnóstico da Covid-19”.

Em nota, a SES detalhou que os reeducandos isolados “são acompanhados diariamente pela Equipe de Atenção Primária Prisional (EAPP) da unidade, composta por médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem”. A pasta da saúde também elaborou a nota técnica para orientar as equipes e os profissionais de saúde sobre o papel do serviço no manejo e controle da infecção, além do “processo contínuo de capacitação para os profissionais de saúde das EAPPs (Equipes de Atenção Primária Prisional) e para os policiais penais com o objetivo de qualificar estes técnicos para o adequado acolhimento e acompanhamentos dos casos”.

A pasta informou ainda que “desde o início da epidemia a SES-PE ampliou o funcionamento das Unidades Básicas de Saúde Prisional, garantindo às PPLs (Pessoas Privadas de Liberdade) o atendimento necessário durante os finais de semana e feriados”.

Assista ao minidocumentário “Como o coronavírus afeta os presídios no Brasil”, produzido pelo canal MOV.doc, do UOL:

Atualizado em 3/7/2020, às 21h13

AUTOR
Foto Raíssa Ebrahim
Raíssa Ebrahim

Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com