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Crédito: Géssica Amorim/MZ Conteúdo
Esta semana, fui até o Alto do Moura, bairro da cidade de Caruaru considerado o maior centro de artes figurativas do continente, para visitar e conhecer o trabalho de três dos ceramistas caruaruenses que vivem da arte que produzem usando o barro: Dona Nicinha Otília, Ratinho e Humberto Botão.
Os três artistas vivem num ambiente de tradição, onde a arte é hereditária, passada de geração para geração. Apesar disso, possuem estilos de modelagem e abordagens livres da estética e dos modelos tradicionais. Suas obras são bastante diferentes das imagens que estão caraterizados no imaginário do público quando o assunto é o artesanato de Caruaru e os famosos bonecos do Mestre Vitalino.
No Alto do Moura, a maioria dos artistas começou a modelar as suas peças ainda crianças, moldando os seus próprios brinquedos ou retratando cenas e personagens do cotidiano: os carros de boi, os trios de forró, os cangaceiros e diversos personagens do nosso folclore – foi assim, inclusive, que Vitalino começou.
Com dona Nicinha não foi diferente. As suas primeiras peças foram produzidas quando ela tinha apenas sete anos. Agora, aos 64, ela conta que fazia com o barro os seus brinquedos e que começou a produzir incentivada pelo pai. “A gente começa brincando com o barro, fazendo os nossos brinquedos. Fazendo panelinha, bonequinhos pra brincar. Eu aperreava muito os meu pais pra ter uma boneca igual as que eu via as meninas brincando, mas eles não tinham condição de me dar. Aí meu pai, um dia, pegou um bolo de barro e colocou nas minhas mãos, me mandando engolir o choro e dizendo que, a partir daquele momento, eu tinha uma fábrica nas mãos, pra fazer as minhas bonecas e os meus brinquedos. Foi assim que eu comecei e não parei mais”.
A produção de Nicinha se divide entre a arte figurativa, a produção de peças utilitárias e trabalhos mais autorais e contemporâneo, que ela aprendeu no convívio com o Mestre Galdino, ceramista, poeta e precursor da modelagem diferente da tradicional . “Tem a arte figurativa, que foi o Mestre Vitalino que deixou pra gente e eu me orgulho de trabalhar com ela, mas eu gosto, mesmo, é do imaginário. Gosto de criar. Eu sou seguidora de Mestre Galdino, aprendi muita coisa com ele. Foi ele quem me ensinou a ler, inclusive. E eu sempre puxo pra esse lado da imaginação”.
Em 2019, Nicinha foi uma das palestrantes do TEDxAltodoMouraED, primeiro evento TEDx do interior de Pernambuco, que homenageou os artistas do Alto do Moura. Durante a palestra, ela falou sobre a organização das mulheres ceramistas do Alto do Moura. “No TEDx, eu falei sobre o Flor do Barro, grupo só de mulheres ceramistas que fundamos aqui. Nós percebemos que no Alto do Moura nós encontramos mais mestres homens. E cadê as mulheres que trabalham tanto, também? Hoje, somos 20 mulheres ceramistas no grupo”, conta. O grupo foi fundado em 2016, com o propósito dar visibilidade ao trabalho das mulheres ceramistas do Alto do Moura e preservar e valorizar a arte e cultura locais.
Perto da casa e ateliê da Mestra Nicinha, na rua Mestre Vitalino, está localizado o ateliê do ceramista Rafael Costa, 35, conhecido como Ratinho, que trabalha com o barro há mais de dez anos, desde que se mudou do centro de Caruaru para o Alto do Moura. As suas peças são únicas, ele não costuma reproduzi-las.
O primeiro contato de Ratinho com o barro aconteceu em 2012, numa visita do artista a Severino Vitalino, filho de Mestre Vitalino. Na ocasião, Ratinho descobriu como se manuseava o barro, desde a sua modelagem à queima, e começou a usar a sua imaginação, modelando as suas próprias peças. “Eu não sabia muito sobre o barro. Eu não tinha a informação de que o barro poderia ser queimado, por exemplo. Só fui saber disso em 2012, quando visitei Mestre Severino. Foi aí que comecei a me interessar pelo material e a trabalhar com ele”.
Ratinho conta que, quando chegou com o seu trabalho no Alto do Moura, inicialmente, teve dificuldades para se localizar. Chegou a ouvir que as suas peças não seriam vendidas. “Vinha alguém e falava: ‘a galera gosta de cavalo, de cangaceiro. Essas peças ninguém compra, são peças de doido’. Mas eu continuei. Até que, um dia, fiz uma escultura e um amigo meu disse que parecia com as de Mestre Galdino. Eu não sabia quem era, ele me levou ao museu e, quando vi a arte dele, que também era diferente, entendi que eu podia fazer arte do jeito que eu quisesse. Fiquei animado, motivado. Acreditei, mergulhei”.
Quando perguntado sobre as suas referências e o que influencia a sua arte, Ratinho diz que são a música e o cinema. “São as músicas, os filmes que eu assisto. Eu gosto de muita música massa e de filme antigo. A cada melodia, por exemplo, vão aparecendo os detalhes da peça na minha mente e eu vou juntando. É de onde vem a minha criação. E tudo isso abre portais de energias que mexem comigo e me fazem criar”.
O trabalho de Ratinho também é inovador na técnica. Para o processo da queima do barro, depois que as peças são modeladas, ele é o único ceramista do Alto do Moura que utiliza um forno elétrico. Nos demais ateliês, são usados fornos a lenha. Para Ratinho, o investimento de pouco mais de 7 mil reais vai além da praticidade que o seu forno lhe oferece. “Eu acho que todo artesão devia ter um forno desse. Por causa da nossa mata, que já está toda desmatada, né? E quem desmata é o próprio artesão. A questão é que o investimento é muito alto, não é todo artesão que tem condição.”
Outro artista que inova na concepção e na criação com o barro é Humberto Botão, de 42 anos. Por meio do seu trabalho, ele procura buscar a união dos ceramistas no Alto do Moura, visando uma maior valorização da categoria, que sempre levou o nome de Caruaru para o resto do mundo. “Eu acredito muito no trabalho coletivo. Muitos artistas, como Mestre Galdino e o próprio Mestre Vitalino, morreram de forma negligenciada. Isso, com relação a falta de retorno, de valorização econômica. As pessoas sempre acharam o trabalho deles bonito, mas isso não enchia a barriga das pessoas das suas famílias. E eu vejo que isso vem de uma vida isolada, individual. E a gente tem tentado mudar isso, através da união, de trabalhos coletivos dessa nova geração, buscando incentivo”.
O encontro com Humberto foi nas instalações da sua exposição Vias e Territórios, no SESC Caruaru. Durante a nossa conversa, ele revela que a exposição é autobiográfica. As peças que estão expostas se relacionam contando parte da sua história, desde a infância, quando produzia os seus próprios brinquedos, até a fase artística atual, como morador e ceramista do Alto do Moura.
Humberto se considera um forasteiro na cidade. Ele é natural de Fortaleza, no Ceará. Antes de começar a trabalhar com o barro em Caruaru, já morou no Maranhão, no Recife, até chegar ao agreste pernambucano. Antes do barro, sua produção artística passou pelo desenho, pela pintura e até pela escultura em concreto. O artista define o barro como um organismo vivo, com o qual consegue construir o que quer comunicar. “Com o barro, eu consigo falar o que quero, o que preciso expressar. A cerâmica, a água que tem nela, a terra que tem nela, o fogo que tem nela, o vento que tem nela. Eu tento me fundir a esses elementos e construir a narrativa estética e conceitual que eu quero construir”.
Quando perguntado se existiu algum tipo de resistência para conseguir espaço para o seu estilo no meio tradicional da arte figurativa, Humberto conta que, embora tenha havido no início, existiu, também muito acolhimento. “Existiam divergências na questão da estética, de início, mas existiu também o acolhimento. As pessoas de Caruaru, do Alto do Moura, são pessoas de coração muito grande. Tudo o que eu sou hoje, devo a Caruaru. Tive a oportunidade de morar fora do país por um tempo, mas preferi voltar. Aqui é o lugar que amo, que já faz parte da minha essência”.
A “Vias e Territórios” reúne 45 trabalhos de Humberto Botão, com curadoria de Carlos Lima, expografia de Caju Galon e mediação de Wellington Marcone. A exposição fica aberta ao público na Galeria Mestre Galdino, no SESC Caruaru, de segunda à sexta, das 10h até às 17h, até o dia 28 de fevereiro.