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Com tiros, ameaças e fake news, cresce violência contra os xukuru-kariri em Palmeira dos Índios (AL)

Raíssa Ebrahim / 24/11/2025
A foto mostra um grupo de homens indígenas do povo Xukuru-Kariri realizando uma dança tradicional ao ar livre. Eles estão alinhados lado a lado, em movimento, com expressões concentradas e postura firme. Todos usam saias feitas de folhas trançadas, cocares coloridos com penas e têm o corpo pintado com desenhos geométricos em tons escuros. Alguns seguram bastões ou instrumentos nas mãos. O chão é de terra batida e, ao fundo, aparecem árvores altas e outras pessoas observando. O céu está azul, indicando que a cena ocorre durante o dia.

Crédito: Mário Vilela/Acervo Funai

O município de Palmeira dos Índios, no agreste de Alagoas, a 130 quilômetros de Maceió, virou palco de ameaças, constrangimentos, agressões e fake news por causa do processo de homologação da Terra Índigena (TI) Xukuru-Kariri. A violência escalou nas últimas semanas com servidores da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) ameaçados e até uma escola alvejada. A comunidade indígena relata que os constrangimentos são diários.

Um grupo anti-indigena formado por lideranças políticas locais, posseiros, empresários e produtores rurais vem tentando impedir o andamento do processo demarcatório na região alegando que são donos das terras. Alguns chegam a dizer que chegaram ao local antes mesmo dos indígenas.

Há aproximadamente três meses, uma equipe de trabalho da Funai está em Palmeira dos Índios fazendo o levantamento de benfeitorias na área já demarcada para futuras indenizações. Isso porque, após um tenso e longo levantamento fundiário, agora o processo de demarcação xukuru-kariri entrou na fase de indenização aos chamados “ocupantes de boa fé” que estão dentro da TI e precisarão sair.

No entanto, fundação e indígenas denunciam que estão sendo alvo de campanhas difamatórias orquestradas para deslegitimar tanto o processo de homologação quanto o direito indígena ao território. Nesta segunda-feira, 24 de novembro, uma manifestação organizada pelo presidente do partido Solidariedade em Alagoas, Adeilson Teixeira Bezerra, marchou pelas ruas do centro de Maceió rumo à Assembleia Legislativa de Alagoas para uma audiência pública que pedia a suspensão do processo de demarcação.

A imagem mostra um grupo de seis homens reunidos em uma rua sob céu azul e ensolarado. Eles conversam entre si, parecendo participar de um evento público ou manifestação. Dois deles vestem camisetas brancas com estampas verdes; um usa boné e óculos escuros. Outro homem, de terno preto, aparece de costas, conversando com o grupo. Um dos participantes veste uniforme que lembra o de forças de segurança. Ao fundo, aparecem prédios comerciais, calçadas e postes, indicando que a cena ocorre em uma área urbana movimentada.

Na foto, Adeilson aparece com um boné escrito “Não à demarcação em Palmeira dos Índios”

Crédito: Reprodução/Instagram @adeilsonteixeirabezerra

No último dia 13, ele também organizou um protesto que tomou as ruas de Palmeira dos Índios pedindo o cancelamento da demarcação com os mesmos cartazes, bonés e camisas desta segunda (23), com frases como “não à demarcação em Palmeira dos Índios”, “nossa terra, nossa vida, não à demarcação” e “terra para quem nela vive e trabalha”. Há quem defenda que Palmeira dos Índios mude de nome e passe a se chamar apenas Palmeira.

Adeilson é político, advogado, atual diretor do Instituto de Assistência à Saúde dos Servidores do Estado de Alagoas (Ipaseal Saúde) e candidato a deputado federal. Já foi superintendente da Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU) e ex-secretário de Infraestrutura de Alagoas. Ele cotuma dizer que a demarcação da TI Xukuru-Kariri “deixará desabrigados e desalojados milhares de pequenos agricultores, que herdaram as terras de seus antepassados ao longo de décadas”.

Sem recuo

“Isso tudo é uma tentativa de anulação histórica da presença indígena na terra de Palmeira dos Índios”, resume o coordenador regional da Funai, Cícero Albuquerque. Mesmo diante do aumento da violência, ele afirma que a fundação não pensa em cancelar o processo de homologação das terras. “As ameaças têm fortalecido em nós a convicção de que esse trabalho é importante e tem que ser continuado”, frisa.

“Os indígenas estão muito decididos de que não irão recuar na luta pela homologação, inclusive estão com uma comitiva para ir a Brasília novamente. E a Funai tem agido para mediar esse conflito e evitar que ele se agrave”, diz Cícero.

A TI Xukuru-Kariri foi declarada de posse permanente da comunidade indígena em 2010. A demarcação física da área foi concluída em 2013. O território, de aproximadamente 7 mil hectares, é habitado por cerca de mil indígenas e 1,5 mil não indígenas, segundo o Censo de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Segundo a Funai, atualmente existem pelo menos 400 ocupações de não indígenas dentro da TI. O movimento anti-indígena espalha um número muito mais elevado, de que mais de 10 mil pessoas seriam prejudicadas por precisarem deixar suas terras.

  • Conheça, ao final desta matéria, que fases compõem o processo de demarcação.

Servidor da Funai intimado e escola indígena alvejada

Na última sexta-feira, 21 de novembro, o chefe da Unidade Técnica Local (UTL) da Funai em Palmeira dos Índios foi intimidado por motoqueiros que circularam e ficaram rondando sua casa. A UTL da Funai é uma das responsáveis por dar o suporte no processo de demarcação, que agora tem sido executado por meio do levantamento das benfeitorias.

As equipes da Funai têm sido acompanhadas pela Polícia Militar de Alagoas, uma vez que a superintendência da Polícia Federal no estado, segundo Cícero, declinou da segurança alegando não ter efetivo suficiente.

Na noite do domingo 9 de novembro, a escola indígena Pajé Miguel Celestino, na aldeia Fazenda Canto, foi alvo de um atentado a tiros, cujas marcas ainda estão no portão principal e nas paredes. O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) alertou que “o atentado foi uma escalada das agressões sofridas pelo povo no decorrer deste ano”.

A imagem mostra, vista de cima, a estrutura da Escola Pajé Miguel Celestino, composta por vários prédios térreos com telhados de cerâmica alaranjada distribuídos ao redor de um pátio central. As construções têm formato simples e estão conectadas por caminhos cimentados. No centro há um prédio maior, com telhado em formato octogonal, onde se vê um grupo de pessoas reunido sob uma área coberta. A escola está cercada por um muro branco, e ao redor há extensa vegetação verde com árvores e plantações, além de uma estrada de terra estreita que leva ao fundo da propriedade.

Escola Pajé Miguel Celestino foi alvejada durante a madrugada

Crédito: Reprodução

Em nota, indígenas xukuru-kariri informaram que “os invasores estavam num automóvel de marca Fiat, cor preta”. O responsável pelo ataque teria sido identificado dias depois pela polícia alagoana. Segundo Cícero, trata-se de um posseiro com histórico de enfrentamento aos indígenas.

“A escola é um dos locais sagrados para nosso povo, violar esse espaço é algo inaceitável. Em nenhum momento no processo de negociação do nosso território, realizamos qualquer forma de ameaça e intimidação aos ocupantes, logo repudiamos toda e qualquer forma de agressão, violência e invasão de nossas terras como uma estratégia de criar um clima de insegurança local, medo e instabilidade”, disse nota xukuru-kariri.

“Solicitamos que a Polícia Federal, o Ministério Público e a Funai tomem as providências necessárias para que ações como essa não voltem a se repetir, inclusive pela gravidade do atentado num prédio público, onde crianças, adolescentes e profissionais da educação se fazem presentes”, diz outro trecho da nota.

O caso xukuru-kariri também se transformou numa guerra judicial com proprietários de imóveis sobrepostos à TI requerendo no tribunal a suspensão da demarcação física e das avaliações de benfeitorias já realizadas pela Funai. Na argumentação, os autores da ação usaram a Lei do Marco Temporal (lei 14.701/23) para afirmar que o procedimento estaria em desacordo com a legislação. Mas a Justiça Federal indeferiu, no último dia 5, um pedido liminar de oito proprietários nesse sentido.

Em agosto do ano passado, a Justiça Federal de Alagoas proibiu quaisquer atividades de construção, implementação de polos industriais, parques aquáticos ou qualquer empreendimento privado dentro TI xukuru-kariri. A decisão foi fruto de uma ação da Funai que pediu que o município de Palmeira dos Índios fosse condenado a cessar definitivamente todas as obras, construções e atividades em andamento.

A prefeitura tinha feito a compra direta de imóvel dentro dos limites do território indígena em janeiro de 2023. Em março do mesmo ano, o município alagoano desmembrou o imóvel em 11 lotes, um parque aquático e uma área remanescente. A parte destinada ao parque aquático foi doada a um particular que deu início às obras irregulares, violando o direito de posse dos indígenas.

“A justiça tem sido muito clara, é preciso que a Funai continue os trabalhos. Quem é contrário entrou na Justiça tentando anular esse trabalho de homologação, mas perdeu”, explica o coordenador Cícero.

“Na verdade, o que nós esperávamos era a homologação do governo Lula, mas essa homologação não saiu. Palmeira dos Índios estava na lista de prioridades do período de governo de transição. Eram 14 áreas, Palmeira era a quarta. Mas aí o peso da influência política de Alagoas, um estado minúsculo, acaba tendo, no cenário político nacional, um peso grande nos últimos tempos”, explica.

O que está acontecendo em Palmeira dos Índios é reflexo ainda da herança de uma estrutura coronelista. O coordenador regional Cícero lembra que “o coronel é, antes de tudo, alguém com propriedade rural, porque não existe coronelismo sem posse de terra e sem uso de violência associado ao comando político”.

“Com o avanço da posse indígena sobre o território de Palmeiras dos Índios, nós estamos mexendo com riqueza, porque terra é riqueza, estamos mexendo com poder, porque terra é poder, e estamos mexendo com o prestígio social, porque terra é prestígio social. Essa combinação é inflamável”, diz Cícero.

Etapas da demarcação 

As fases do procedimento demarcatório das terras tradicionalmente ocupadas são definidas pelo Decreto 1.775/1996. O processo só é finalizado com a homologação, registro da área no cartório de imóveis e incorporação ao patrimônio da União, com usufruto exclusivo dos povos indígenas. Confira as etapas:

Em estudo: fase na qual são realizados os estudos antropológicos, históricos, fundiários, cartográficos e ambientais, que fundamentam a identificação e a delimitação da área indígena.

Delimitadas: fase na qual há a conclusão dos estudos e que estes foram aprovados pela presidência da Funai através de publicação no Diário Oficial da União (DOU) e do Estado em que se localiza o objeto sob processo de demarcação.

Declaradas: fase em que o processo é submetido à apreciação do ministro da Justiça, que decidirá sobre o tema e, caso entenda cabível, declarará os limites e determinará a demarcação física da referida área objeto do procedimento demarcatório, mediante portaria publicada no DOU.

Homologadas: fase em que há a publicação dos limites materializados e georreferenciados da área por meio de Decreto Presidencial, passando a ser constituída como terra indígena.

Regularizadas: fase em que a Funai auxilia a Secretaria de Patrimônio da União (SPU), como órgão imobiliário da União, a fazer o registro cartorário da área homologada.

Além das fases mencionadas, pode haver, em alguns casos, o estabelecimento de restrições de uso e ingresso de terceiros para a proteção dos direitos dos povos indígenas isolados, mediante publicação de portaria pela Presidência da Funai, ocasião em que há a interdição de áreas nos termos do artigo 7º do Decreto 1.775/1996.

Fonte: Funai

AUTOR
Foto Raíssa Ebrahim
Raíssa Ebrahim

Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornais de bairro do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com