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Crédito: Victor Moura
por Victor Moura*
Na semana mais crítica das chuvas em Pernambuco, olhava o celular e via as atualizações de novos deslizamentos e inundações que resultaram na morte de 130 pessoas e mais de 70 mil fora de suas casas, desalojadas ou desabrigadas. Era fim de maio, e a mídia inteira se mobilizava para noticiar as vítimas de uma tragédia climática anunciada. Iam para o pé das encostas, margem dos rios, abrigos improvisados. Adentravam o continente em direção à periferia das cidades atingidas.
No sentido oposto, decidi ir à praia com uma bicicleta e uma capa de chuva azul. Quis entender como as alterações na zona costeira podem intensificar os problemas urbanos já existentes e causar desastres possivelmente maiores no futuro, caso nada seja feito hoje. Segundo relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), Recife, capital do estado, é a cidade mais vulnerável do Brasil ao aumento do nível do mar. A 16° do mundo. São vários os elementos que colocam a cidade nessa posição. Ela possui fragilidades naturais, como o alto número de cursos d’água dentro do território, e uma baixa altitude média (quatro metros) em relação ao Oceano Atlântico, em alguns trechos da planície muito próxima a zero e, até mesmo, abaixo do nível do mar.
No momento, porém, o que mais tem pesado contra a cidade é o histórico de ações humanas, como supressão de manguezais e vegetação de restinga, impermeabilização do solo e alterações do desenho natural da praia. Uma ocupação urbana que avançou sobre o mar, levando concreto a áreas que deveriam ter sido preservadas.
Esse movimento não se restringe à capital. É acompanhado pelas cidades litorâneas que formam o Grande Recife. À sua maneira, cada qual já tem sentido o impacto das mudanças climáticas aceleradas pela ação humana. Quando cheguei à Ilha de Itamaracá, no litoral norte de Pernambuco, a chuva havia diminuído. Mas o acúmulo de água criava pequenas ilhas dentro da ilha maior. Os moradores limpavam as portas das casas com rodos, pás e vassouras. Enquanto que, na beira-mar, os trabalhadores de bar organizavam a bagunça após a combinação de maré alta, chuva e ventos fortes. Alguns me relataram preocupação com o avanço do mar, uma vez que “na Ilha não tem muito do que sobreviver”, além do turismo praiano.
Do Forte Orange, no sul de Itamaracá, fui pedalando rumo ao norte pela extensão do litoral, que tem sofrido com a erosão costeira. O cenário é especialmente crítico em áreas estuarinas, onde a água doce encontra a salgada. Assim que atravessei a foz do rio Jaguaribe, com a ajuda de uma balsa, vi raízes de coqueiro saindo do solo e os destroços de um bar.
“Foi tão rápido, visse? Foi tudo tirado na última hora, até arriscado o bar cair por cima da gente, para salvar alguma coisa”, diz Maria Bethânia, de 52 anos, ao recordar a madrugada chuvosa em que ninguém dormiu. O bar na praia do Sossego era um sonho compartilhado com o marido. Era também o ganha pão da família. Empregava filhos, sobrinhos e noras. Mas a estrutura esfarelou em abril, como se fosse feito de papel, e não de tijolos. Seu Heraldo, de 61 anos, chegou a gastar mais de R$ 5 mil em sacos de areia, na esperança de interromper o avanço do mar. Não adiantou. “Minha renda é zero. Não estou vendendo nada. O que eu tenho é R$ 400 do auxílio. Pago R$ 1.300 de aluguel. E agora fui obrigado a dizer à dona que não tenho como pagar”, relata, e acrescenta que só não tem passado necessidade graças à ajuda de parentes e clientes.
O casal, mais conhecido como “Mozão” e “Mozona”, conta que existia uma longa faixa de areia na praia, que começou a desaparecer após uma suposta obra irregular feita no Pontal de Jaguaribe, praia vizinha a do Sossego.
Marcus Silva, professor de Oceanografia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), explica que diques de contenção irregulares e/ou ineficazes são recorrentes no litoral pernambucano, sejam eles construídos por prefeituras ou pelos próprios moradores. Essas obras barram os sedimentos que vêm de sul para norte e transferem o problema da erosão de uma praia para a outra.
“Além do mar estar avançando, está faltando areia. Esse processo ocorre por conta da ocupação desordenada, do barramento dos rios, da impermeabilização das praias. A ação humana, hoje, é muito mais causadora de erosão do que o avanço do mar pelas mudanças climáticas”, explica, e salienta a importância de se respeitar a dinâmica natural, a fauna e a flora de um ambiente de praia.
Com o vento batendo nos nossos rostos, Maria Bethânia contou que tem trocado o dia pela noite, temendo que a água salgada atinja a sua casa, agora ameaçada. Uma casa simples, alugada, mas sobretudo “ilhada” em meio às casas de veraneio e condomínios de luxo. Moradores disseram que muitas “pessoas importantes” possuem casas na praia do Sossego, inclusive a vice-governadora do Estado, Luciana Santos. Busquei confirmar essa informação via Lei de Acesso à Informação (LAI), mas recebi uma negativa por “se tratar de informação pessoal que vai de encontro à LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados)”.
Mas é fato: os tomadores de decisão sabem que o litoral pernambucano vem desaparecendo, impactando a vida de todos os cidadãos, mas especialmente aqueles que têm a praia como fonte de sobrevivência.
“A gente é que nem formiga: trabalha no verão para comer no inverno. Se acaba o turismo aqui dentro, acabou todo mundo. Dependemos de quem vem de fora”, diz Maria Bethânia, que começou a vender frutos do mar caminhando pela areia aos 16 anos. Hoje caminha por uma praia que não é nem 1/3 do que foi um dia. Mesmo a água não dando sinal de recuo, ela e “Mozão” pretendem reconstruir o bar na região por ter ali uma rede de apoio estabelecida.
O sossego em si é raro de ser encontrado, não só em Itamaracá, como em toda a zona costeira do Grande Recife. Ao pedalar cerca de 150 quilômetros, pude ver diversos trechos (praias e rios) sofrendo com a erosão. A vulnerabilidade é maior no centro metropolitano, justamente devido a fatores sociais, como adensamento populacional, verticalização à beira-mar e uma profunda desigualdade.
“A gente não pode dissociar o elemento social do elemento ambiental ou ecológico. Não, as duas coisas vão juntas. As populações mais vulnerabilizadas pelo desenvolvimentismo vão ter dificuldades de enfrentamento às mudanças do clima por conta de todo processo de assujeitamento e de injustiças socioambientais e por despossuírem acessos a infraestruturas urbanas”, explica Teresa da Silva Rosa, geógrafa com doutorado em sociologia e coordenadora do Núcleo de Estudos Urbanos e Socioambientais (Neus) do programa de Pós-graduação em Sociologia Política da Universidade Vila Velha (UVV-ES).
Quando atravessei a orla de Jaboatão dos Guararapes, ao sul do Recife, no dia 3 de junho, em nada parecia com a cidade que estampava o noticiário internacional. As pessoas caminhavam pelo calçadão sem nenhuma demonstração de medo diante do tempo nublado. Não tão longe dali, dentro do mesmo município, a ausência de infraestrutura urbana havia matado 64 pessoas. Jaboatão dos Guararapes foi a cidade que mais teve vítimas fatais no estado, apesar de ter menos da metade da população da capital.
“Aqui no litoral e na Zona da Mata, o período de chuvas é, em média, seis meses. Entretanto, já se pode observar alterações no padrão de chuvas. O ciclo hidrológico mudou com as mudanças do clima. Precisamos de um rumo pautado numa nova realidade. O que não pode é a gente continuar fazendo de conta que nada mudou. E, como naquela cena de Titanic, mandar a orquestra tocar mais alto porque já se sabe que estamos em rota de colisão com o iceberg”, diz Francis Lacerda, climatologista e pesquisadora do Instituto Agronômico de Pernambuco (IPA), ao criticar a vista grossa que os atores políticos do estado fazem para a emergência climática. Recentemente, o estudo da World Weather Attribution apontou que as chuvas em Pernambuco foram cerca de 20% mais intensas que o normal devido a mudanças no clima.
Graças à ciclovia recém instalada, pedalar por parte da orla de Jaboatão foi uma das poucas experiências tranquilas do trajeto. O que seria positivo, caso o concreto não estivesse sobre praias que passaram por um processo de engorda, e necessitam de manutenção periódica. Em 2013, foram gastos R$ 41 milhões, com boa parte do dinheiro vindo do Governo Federal, para retirar sedimentos do fundo do mar e alargar a faixa de areia. A água batia na porta dos prédios. Os mesmos prédios que ainda hoje ajudam a barrar os sedimentos que vêm naturalmente pelos rios, ventos e marés.
Como resposta a uma ação humana, a engorda na orla de Jaboatão foi considerada exitosa. Porém, no início deste ano, foram colocadas estruturas fixas nesse ambiente, o que é altamente desaconselhável. Mesmo com o risco batendo à porta, as construções continuam avançando sobre o mar.
Ao mesmo tempo, elas afastam as populações mais pobres, que muitas vezes não só moram como trabalham nas regiões de praia. É o caso de Ageu, de 59 anos, que há mais de três décadas vive numa comunidade pesqueira em Barra de Jangada. Uma região cobiçada entre as moradias de luxo da Reserva do Paiva e os espigões das praias de Candeias e Piedade. “O negócio de peixe agora está parado (por causa das chuvas). Mas o pessoal corre para o mangue para pegar um aratu, um siri, uma ostra, um sururu, um marisco, uma unha de velho, uma taioba, aí é bom por isso”, conta, ao destacar a riqueza do manguezal na foz do rio Jaboatão, em frente à ilha do Amor. Para morar tão perto de onde tira seu sustento, ele e a companheira, que é marisqueira, pagam R$ 400 de aluguel.
Sob a garoa e ainda não recuperado de uma gripe, Ageu saiu de casa para me mostrar os resultados da força das marés na região. De quebra, também aproveitou para levar o cachorro Beethoven, de 1 ano e 8 meses, para passear. O cachorro, preto e branco, parecia incomodado com o tanto de pedra e metralha em uma das margens do rio Jaboatão, só correndo de verdade ao passarmos por uma faixa de areia, cada vez mais fina e rara.
“Ele brinca que só. Fica doidinho quando vê a areia”, diz o pescador, que notou a mudança no perfil da “prainha” pouco antes do início da pandemia. Hoje, são muitas as rachaduras nas construções à beira-rio. Em dias de chuva e maré alta, os barcos que ficam amarrados no mourão, uma espécie de tronco, têm se desprendido. “A água tem força. Se os políticos, se o pessoal do meio ambiente, não intervir nisso aí, vai ficar bem pior. Eu mesmo não vejo melhora em avanço de mar em lugar nenhum. Quando o pessoal ajeita, cai. Ninguém sabe se é a natureza, ou se é obra mal feita”, questiona. Na verdade, é a junção das duas coisas. A urbanização inadequada é a principal culpada pelo atual cenário. Porém, o oceano está aquecendo. As chuvas extremas tem aumentado. E isso faz parte de um processo climático global.
O professor Marcus Silva explica que o Oceano Atlântico vem aquecendo desde a década de 1980. E sempre que ele bate um recorde de temperatura, com o aumento da taxa de evaporação, acaba precipitando mais fortemente na Zona da Mata nordestina, região com maior índice populacional. O calor das águas tropicais também é a causa por trás da elevação do nível do mar. Funciona assim: os oceanos trabalham como um grande “trocador de calor” que regula o clima do planeta. A água quente se desloca dos trópicos até os pólos por cima. E a água fria, mais pesada, vem dos pólos até os trópicos por baixo. A água quente, ao chegar ao Ártico, por exemplo, congela e afunda. Porém, ela tem chegado tão quente, mas tão quente, que está ajudando a derreter as geleiras.
O resultado é mais água doce no oceano. Mas, no caso da elevação do nível do mar, esse é um problema irrisório, de poucos centímetros. Isso porque o volume das geleiras é pequeno quando comparado ao volume de todos os oceanos.
Na verdade, o problema central da elevação é o enfraquecimento das trocas de calor entre os trópicos e os pólos. A água quente tem se acumulado na região tropical do Planeta, onde se encontra o Grande Recife. “Você soma dois processos: a dilatação do oceano devido ao aquecimento da água superficial e a intensificação dos ventos alísios. O vento alísio de sudeste tende a empilhar água na borda oeste do oceano, na margem do Nordeste do Brasil. Essa é a consequência da mudança climática na elevação do nível do mar”, explica Marcus, e destaca que o cenário tem acontecido no mundo todo, mas que alguns territórios são mais críticos.
Do início do século XX até os dias atuais, o nível médio do oceano subiu 25 centímetros. A previsão era de que ele fosse subir mais meio metro até 2100. Mas a previsão acabou sendo revista para 2050. Parece pouco, mas já é o suficiente para alagar diversas planícies pernambucanas, sobretudo quando o número se soma à maré que pode chegar a quase três metros. Além disso, a elevação do nível do mar impacta não só quem mora próximo à praia. Quando o mar sobe, os rios e canais também sobem e dificultam o escoamento de água dentro das cidades.
Pedalando em meio à chuva intermitente, sempre que parava na rua para limpar os óculos e conferir o mapa, aparecia o alerta de risco de enchentes na região. Mas estando na orla, um território em geral com melhor infraestrutura, o máximo que cheguei a ver foi um ou outro alagamento. O olho do furacão se encontrava nas periferias, nas bacias dos rios. Quando o céu abria e a maré baixava, a água voltava para o mar trazendo objetos, barro e muito lixo. No istmo de Olinda, ao norte do Recife, a praia Del Chifre estava completamente suja.
Ao lado dela, se encontra a Ilha do Maruim, uma favela à beira-mar localizada na foz do rio Beberibe. Por causa da baixa altitude, esse é o pedaço de Olinda mais vulnerável à elevação do nível do mar. Uma vulnerabilidade que é climática e também social. “Se o mar der uma ressaca, um vendaval, vai deixar a gente bem longe, só o cadáver. Aqui, a área é dele, é do mar. A gente está aqui porque não tem para onde ir. Se der pelo menos um aviso antes para poder correr, aí ‘tá’ bom. Mas, e se ele vier de uma vez?”, questiona seu Manoel, de 70 anos.
Na comunidade desde 1966, ele viu a Ilha crescer com pequenas melhorias feitas pelos próprios moradores. Viu enchentes históricas, como a de 1975, derrubarem palafitas, que logo eram reconstruídas no mesmo lugar. Hoje não existem mais palafitas. Porém, não é difícil encontrar barracos frágeis na favela, especialmente numa pequena faixa de terra às margens de um braço do Beberibe. A área está localizada a 100 metros do mar, sendo conhecida como “paredão”.
“Só mora ali [no “paredão”] quem não tem mesmo aonde ir”, diz o seu Manoel, que ajudou a construir uma das pontes que une a Ilha do Maruim ao Oceano Atlântico. Mesmo tendo mais de meio século na comunidade, o serralheiro aposentado conta que, se tivesse condições, se mudaria com a família para outro lugar. Ao contrário de outros endereços, morar a poucos metros da praia nunca lhe garantiu serviços e infraestrutura básica.
Da sua casa, sozinho, ele caminha todos os dias pela areia, antes das 6 horas da manhã. Vai até as imediações do Porto do Recife, uma intervenção urbana no estuário dos rios Beberibe e Capibaribe. No século anterior, a reforma e ampliação do porto barrou o transporte de sedimentos que alimentavam as praias de Olinda. Atualmente, para conter a erosão, cerca de 60% da orla da cidade possui estruturas rígidas de proteção costeira. O que não é o caso da Praia del Chifre, menos impermeabilizada, sendo uma das poucas onde ainda é possível encontrar areia e fragmentos de vegetação.
“Esse lugar é muito abençoado. Mas o mar está muito violento. Vê em Itamaracá como está avançando. E eu só fico pensando: e quando vir para cá? Antes, a gente andava, cansava, para chegar na praia. Não tinha ondas do tamanho que tem hoje não”, relata dona Edileuza, também de 70 anos, esposa do seu Manoel. Por trás das grades de casa, ela contou ter bastante medo do mar, sobretudo quando a água salgada chega perto do paredão que separa a Ilha fluvial do oceano. O medo da dona Edileuza se fundamenta, uma vez que os eventos extremos têm se intensificado. Segundo o IPCC, entre 2010 e 2020, houve 15 vezes mais mortes no mundo em razão de secas, tempestades e inundações.
Em 2019, o Recife se tornou a primeira cidade do Brasil a decretar estado de emergência climática. Antes, em 2014, ela já havia criado uma política de sustentabilidade e enfrentamento às mudanças do clima. Porém, quando passei de bicicleta pelo litoral, a realidade demonstrava ser diferente. Na região central da cidade, havia construções sendo erguidas no Cais de Santa Rita e no Cais José Estelita, na confluência de quatro rios. A região é inundável em um cenário de elevação do nível do mar, logo, em teoria, não deveria ser impermeabilizada com mais concreto.
“O Recife vem crescendo desordenadamente. Fora isso, existe o problema da concentração de renda e um modelo urbano totalmente inadequado para uma cidade que tem essas vulnerabilidades. A cidade tem um plano diretor que parece não ser seguido. Uma cidade que a cada dia você vê surgir espigões de 30 andares, 40 andares”, critica a climatologista Francis Lacerda, ao destacar as contradições que estampam a paisagem da Capital.
Moradora da zona norte, a cerca de cinco quilômetros do oceano, ela conta que vê com frequência peixes de água salgada sendo capturados no leito do Rio Capibaribe. Sinal de que o avanço da água do mar em direção ao continente também ocorre pelo subterrâneo, num fenômeno conhecido como intrusão da cunha salina. Ele acontece especialmente por interferências humanas, que causam alterações ambientais como a salinização da água doce.
“Aquacêntrica”, caso o nível do mar suba “apenas” 0.5 m, a cidade do Recife pode perder, segundo este estudo, 25.3 km² dos seus cerca de 50 km² de planície. Boa parte deste território que pode sumir está na área central, onde está o patrimônio histórico e cultural da capital estadual mais antiga do Brasil.
Segundo o Fórum Internacional Recife Exchanges, o impacto da elevação recairá sobre 62 dos seus 94 bairros, onde vivem quase 850 mil pessoas. Um dos mais vulneráveis é Brasília Teimosa, uma comunidade de origem pesqueira localizada entre a Bacia do Pina e o Oceano Atlântico.
Quando passei pela avenida à beira-mar, ao contrário dos dias anteriores, as nuvens escuras tinham sumido. “O ruim da Brasília é a questão do vento. Maré baixa, alta, acima de 2.50m, não chega a alagar, não. Agora em agosto (mês de ressacas mais fortes) ela às vezes chega a 2.70m, 2.80m, que é um pico alto de maré, aí a água bate com mais frequência no paredão. E chega mais ou menos até ali (próximo da pista)”, diz Andreia Lopes, de 31 anos, após parar o que estava fazendo. Assim como suas vizinhas, ela se apressava para estender as roupas úmidas no varal, aproveitando o sol a pino.
Por morar bem em frente à orla, contou que precisou trocar o telhado de casa três vezes no inverno passado. O vento vem com muita força. A água também. Só que ela é contida pelos aterros, pedras e paredão que protegem a entrada da comunidade. Antes de a Brasília passar por uma requalificação urbana, na primeira década deste século, as ondas avançavam e destruíam as palafitas.
O marido de Andreia, Adilson, de 37 anos, viveu esse tempo de extrema pobreza durante sua infância e adolescência. “Quando acordava, eu ia lá na praia buscar o café ou o almoço. Pegava saúna. Chegava em casa e falava ‘mainha, peguei um bocado’. Mainha dizia ‘trata, vou fazer cuscuz’, conta, salientando que o mangue e o mar já ajudaram a matar muita fome. Hoje, porém, a fonte de alimento anda escassa devido à poluição. Motivo pelo qual deixou de ser pescador. Para conseguir pagar o aluguel de R$ 600, trabalha como pedreiro. Já Andreia cuida de um menino pequeno. Morar na Brasília tem sido difícil. A ocupação de baixa renda é vizinha ao metro quadrado mais caro do Recife. Apesar de vir de uma família de pescadores, Adilson pensa em ir para os morros, pelo sonho da casa própria. No Grande Recife, a ocupação à beira-mar tem se tornado, quase que na totalidade, uma exclusividade de pessoas ricas.
São poucas as comunidades que continuam de pé. Como a Brasília, que leva Teimosa no nome por ter ocupado um território estuarino e resistido a diversas tentativas de demolição. Um exemplo de atuação coletiva que deu certo, e agora deve ser retomado pensando no cenário de mudanças climáticas.
“A gente não pode negligenciar a capacidade de participação, e de pressão, dessa população, apesar de os atores econômicos e políticos procurarem não escutar os movimentos sociais. No caso das populações vulnerabilizadas, elas são populações que têm uma forte incidência de um recorte de gênero, racial. Elas vão ser as primeiras e as mais atingidas pelas mudanças no clima por todo o processo que a gente experiencia desde a colonização, com a escravidão da população negra e também indígena”, diz a geógrafa Teresa da Silva Rosa, que destaca a importância da informação e da educação nesses territórios, como parte essencial do enfrentamento aos eventos extremos que estão em curso.
Emergência climática continua sendo ignorada
As chuvas de maio e junho mostraram que a desigualdade precisa ser combatida, uma vez que ela determina a vida ou a morte de uma pessoa. Só uma parte da população sabe, de verdade, o que é ter medo da chuva, do vento, da maré. Porém, isso não exclui o fato de que todos os quatro milhões de moradores da Região Metropolitana do Recife, com ou sem recursos, se encontram em um cenário de vulnerabilidade climática. Logo, é de se estranhar que construções “pé na areia” continuem aparecendo, com a chancela de equipes técnicas e órgãos ambientais. O mercado imobiliário continua expandindo para o litoral, apesar de boa parte das praias pernambucanas se encontrar em avançado processo erosivo e a elevação do nível do mar ameaçar as planícies costeiras.
“Infelizmente a gente só vê a presença e preocupação [do poder público] depois da tragédia. Mas isso é novidade? Não. Já se sabia que este ano seria de chuvas intensas? Sim. Se tomou alguma precaução? Não. As cidades precisam enxergar que toda e qualquer intervenção precisa levar em consideração as mudanças climáticas. Se a sociedade se conscientiza e cobra, é uma maneira de botar pressão no poder público, nas diferentes esferas”, diz o professor de Marcus Silva, ainda esperançoso, apesar de os tomadores de decisão não se comprometerem com a pauta. Depois da tragédia, sobram medidas paliativas e emergenciais, e faltam planos urbanísticos a longo prazo que abarquem todo o litoral e o conjunto das bacias hidrográficas. O oceano está aquecendo, e não vai parar se as pessoas não olharem para ele. A nova realidade pede ações e soluções preventivas de mitigação e adaptação. É preciso chamar a academia. Chamar a população. E ouvi-las. Esta e as próximas gerações dependem disso.
*Victor Moura elaborou esta matéria com uma bolsa de jornalismo fornecida pela parceria entre o ClimaInfo com o apoio financeiro do Instrumento de Parceria da União Europeia com o Ministério Federal Alemão para o Meio Ambiente, Conservação da Natureza e Segurança Nuclear (BMU) no contexto da Iniciativa Climática Internacional (IKI). Os conteúdos desta publicação são de inteira responsabilidade dos seus organizadores e não necessariamente refletem a visão dos financiadores.
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