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Crédito: Mariano Hebenbrock
por Mariano Hebenbrock, de Hamburgo (Alemanha)
“Vai pra tua terra, raça de merda”, “Brasil é uma cria mal parida”, “Brasil é um país de samba e futebol”. Ouvir frases dessa natureza se tornou comum no cotidiano dos brasileiros residentes em Portugal. Outras frases que também podem representar muito bem parte da sociedade portuguesa e que não diz respeito apenas aos brasileiros, mas a todos imigrantes de países considerados por ela, pobres, e que podem ser ouvidas com frequências em cafés, reuniões familiares, grupos estudantis e amigos, rodas de samba e até em discussões politicas, são: “precisamos de mão de obra qualificada e não de analfabetos”, “precisamos de um maior controle de fronteiras”, “deve haver um número de contingente em relação a nacionalidades”, “esses imigrantes estão invadindo Portugal”.
De acordo com a socióloga e cientista política Maria João Adão, da Universidade de Lisboa, para se desvendar os entraves e as engrenagens que movem as sociedades, desde os tempos antigos até o moderno, foram criadas as ciências sociais, que devem dar cabo de todas as questões pertinentes à sociedade ao longo da história, moldando assim as relações humanas que se conhecem hoje. É partindo deste pressuposto que esta reportagem foi guiada, para entender de perto o processo de racismo, xenofobia e aporofobia contra a imigração brasileira em Portugal.
A quantidade de reportagens, de vídeos na internet, posts em redes sociais, número de publicações em jornais e blogs, denunciando atos de racismo, preconceito, xenofobia e “aporofobia” são constantes, engrossando os números de denúncias em órgãos competentes e aumentando uma lista que não para de crescer.
Segundo dados da Comissão para Igualdade e Contra a Discriminação Racial do governo de Portugal, as denúncias de xenofobia contra imigrantes brasileiros cresceram mais de 500% até o final do ano passado, em relação a 2022. Já de acordo com dados da Agência para Integração Migração e Asilo (AIMA), divulgados também no ano passado, os brasileiros documentados somam quase 400 mil, isto sem contar os brasileiros que possuem dupla nacionalidade, chegando a aproximadamente 200 mil residentes. Já os números de não documentados ultrapassam 100 mil brasileiros, muitos deles presas fáceis para a realização de trabalhos precários e mal pagos, e ainda reféns de grupos criminosos, que oferecem papéis oficiais em troca de dinheiro.
Relatos de agressões físicas e verbais são constantes. Depoimentos de testemunhas oculares, como o do assistente de produção Marcelo Constantino, 49 anos, natural de Belo Horizonte, residente em Portugal há quase uma década, dão conta que o preconceito, a homofobia e a xenofobia são constantes. Ele, por ser negro, gay e brasileiro, explica já haver passado por várias situações dessa natureza. “Uma vez, no intervalo do almoço eu estava voltando do banheiro e passei por um grupo de quatro portugueses, colegas de secção, quando escutei um deles falar ‘já não gosto de zuca e paneleiro é foda!’ Antes de voltar ao meu departamento, resolvi explicar o que havia acontecido para o meu chefe direto, o qual me respondeu: ‘vocês também são complicados, não suportam uma brincadeira’,”, relata.
Já o assistente administrativo Ricardo Ferreira, 57 anos, companheiro do Marcelo, afirma nunca haver passado por situações de racismo ou xenofobia, porém sabe que o preconceito existe e é constante. “Mesmo eu sendo negro, homossexual e brasileiro, nunca sofri nenhum tipo de racismo declarado, como no Brasil, por exemplo. O que eu percebi quando cheguei, foi uma determinada resistência ao se alugar uma casa, pois eu não possuía os documentos completos,” conclui.
A falta de documentos, o dinheiro curto e a ausência de apoio para quem chega é um prato cheio para a exploração. Foi justamente isto que aconteceu com Maria do Socorro, 34 anos, oriunda da periferia de Salvador. O sonho de uma vida melhor através de um trabalho em uma residência, como ajudante de técnica de enfermagem, terminou em pesadelo. “Além das horas exaustivas de trabalho, em diversos turnos e a uma baixa remuneração, os patrões ainda queriam me induzir a fazer sexo com os seus filhos adolescentes. Eles diziam: qual o problema, brasileiras não gostam de sexo!?”, enfatiza Socorro.
Para o antropólogo e professor universitário aposentado, Ângelo Lattelli, proveniente do sul do Brasil e residente em uma “colônia” europeia no sul de Portugal, no Algarve, o racismo pode até existir, mas é algo que está fora do seu alcance. Segundo o acadêmico, pelos fatos de ser branco, ter passaporte italiano, ter aprendido a falar o português de Portugal e conviver entre europeus, o racismo, o preconceito e a xenofobia não fazem parte de seu dia a dia. “O fato de o brasileiro ter um modo de vida, um comportamento diferente do português e não se inserir em sua cultura, isto já os coloca do outro lado. Nós sabemos que nem todos os brasileiros têm uma educação que é compatível com a europeia, inclusive de algumas regiões do próprio Brasil. Outro fator que é preponderante para a expansão do racismo e da xenofobia, é o fato do brasileiro ter uma formação abaixo da portuguesa e realizar trabalhos para os quais não são qualificados, segundo padrões da sociedade portuguesa.” enfatiza.
Seguindo esta mesma linha de pensamento, a boleira recifense Tatiana Gomes, residente em Portugal há aproximadamente sete anos e portadora de um passaporte português, afirma que “o que este país mais precisa é de mão de obra qualificada e não de profissionais meia boca”, especulando ainda que a grande massa de brasileiros que entraram em Portugal nos últimos cinco anos, é resquício da política de manutenção da pobreza do PT praticada no Brasil.
Quando perguntada pelo motivo que leva Portugal a não atrair profissionais qualificados, a pernambucana afirma que o principal problema é a falta de moradia e de segurança que a imigração descontrolada vem causando, e não o valor baixo do salário que é de 760 Euros. Quando confrontada com a posição de Portugal no ranking do país mais pobre e mais corrupto do ocidente europeu, ela conclui que esta posição pode mudar, desde que o povo português entenda o verdadeiro objetivo do partido politico de extrema-direita Chega, e que apenas este pode fazer frente aos socialistas que atualmente regem o país.
Em uma reportagem publicada em 15 de janeiro deste ano, pelo correspondente Vicente Nunes, a agência de notícias AFP revela que o partido Chega, que tem à frente o líder da extrema-direita André Ventura, é radicalmente contra a imigração para Portugal, sendo também adepto de uma deportação em massa. Este partido tem crescido justamente com a adesão de muitos brasileiros que possuem dupla nacionalidade, brasileira e portuguesa, os quais são em sua maioria evangélicos das classes média e alta.
O estudante de doutorado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Marcelo Casalunga, que fez um estágio de investigação na Universidade de Lisboa, afirma que nunca sofreu atos racistas. Segundo pensa, por circular em um meio de pós-graduação, possuir um filho branco, ter como esposa uma professora convidada e possuir um poder cultural que funciona como uma blindagem contra esse tipo de comportamento contra estrangeiros, principalmente oriundos do Brasil.
O jornalista e pesquisador em Descolonialização, Natalício Batista, 56 anos, estudante de doutorado na Universidade de Coimbra, explica que o racismo em Portugal é multifacetado e que as especificidades são devidas ao seu processo histórico colonial, chegando às guerras de libertação de suas ex-colônias, nos anos 1970. Quando perguntado sobre haver passado por algum ato racista, afirma que o racismo em Portugal é estrutural. “Independente de eu ser um investigador negro, minha nacionalidade vem em primeiro plano. Os órgãos oficiais são extremamente racistas e estruturais, inclusive os de imigração. Nestes órgãos, a maioria é de brancos. Nas universidades, inclusive nas pós-graduações, a quantidade de negros nos corpos docente e discente são ínfimas”.
O pesquisador ainda arrisca opinar que a situação do racimo, xenofobia, aporofobia e preconceito em Portugal tende a aumentar, devido ao número cada vez maior de imigrantes, inclusive do mundo muçulmano e asiático.
Para se entender o comportamento dos brasileiros residentes em Portugal, em sua maioria oriundos do eixo sul-sudeste do Brasil, em relação à xenofobia, racismo, aporofobia e preconceito, podemos recorrer ao pensamento de alguns cientistas sociais, tendo em vista que estes têm o dever de desvendar as obscuridades da sociedade. O filósofo e cientista social antilhano Franzt Fanon, em seu livro Pele Negra, Máscaras Brancas, escreve que “Todo o povo que teve sua língua e cultura massacrada e inferiorizada por uma nação civilizadora, encontra na aceitação da linguagem da metrópole uma forma de se afastar do estado de selvageria, tentando se aproximar do ideal de ser humano.”
Através do olhar de Fanon, pode-se entender que o sentimento de despertencimento do próprio grupo brasileiro é decorrente de uma crise existencial, de saber que estando perto de um “branco” haverá uma série de discriminações e julgamentos do tipo “não civilizado”, “feio”, “assustador”, por exemplo. E que os elogios sempre virão acompanhados de expressões como “apesar de sua nacionalidade, cor, origem, religião ou sexualidade”. Ou seja, o imigrante, o preto, o pobre, o latino, o homossexual, não tem espaço na sociedade para ser medíocre. Esse seria o motivo de tantos brasileiros de peles claras, ou brasileiros que assumem uma outra nacionalidade, tentarem se afastar ao máximo do seu país de origem e, consequentemente, daquilo que o colonizador chamaria de cria mal parida.
A filósofa espanhola Adela Cortina Orts, não descarta o perigo da xenofobia nem do racismo, porém para ela o que está em jogo na atualidade das sociedades modernas é a aporofobia, ou seja, o rechaço ao pobre, independentemente da cor de sua pele e do seu país de origem. No momento das entrevistas, das conversas, das leituras e conhecendo Brasil e Portugal por lá ter vivido, observo que não apenas o imigrante brasileiro, mas todos os imigrantes, que através da lupa portuguesa podem ser classificados como pobres, além de sofrerem com o que o francês Marc Augé chama de “Não Lugar”, ou seja, um lugar sem identidade e sem relações sociais e históricas, também sofrem com o mal do século XXI, como explicou o cientista inglês, Stuart Hall, o racismo cultural.
Para que alguns imigrantes brasileiros possam entender o seu papel na sociedade portuguesa há uma alusão bastante pertinente com o filme brasileiro Bacurau, onde, em uma cena, os americanos confrontam a branquitude brasileira e suas origens. “Somos como vocês!”, afirma a personagem vinda do sul do Brasil para os estrangeiros infiltrados em solo pernambucano com o intuito de caçar os moradores locais. “Como a gente? Eles não são brancos, são? Como podem ser como a gente? Eu não sei, eles meio que parecem brancos, mas não são. Os lábios e o nariz dela entregam, tá vendo? Eles estão mais para mexicanos brancos. Sim, estão mais para latinos”, debocham os estrangeiros.
Neste sentido, algumas denúncias de racismo protocoladas em blogues, redes sociais e em órgãos governamentais, por brasileiros de pele clara advindos da classe média/alta e procedentes de regiões tidas como ricas no Brasil, podem ser classificadas apenas como preconceito na metrópole.
O fato desta comunidade nunca haver passado pelo crivo do racismo brasileiro, da não aceitação e do questionamento de sua etnia, por se verem como descendentes diretos de europeus, faz com que tais imigrantes esperem uma maior complacência de seus irmãos lusos com suas presenças em solo português. Quando perceberem que os próprios portugueses também não são considerados brancos em uma Europa ariana nórdica, talvez se deem conta que ser aceito pelo outro é o que menos importa para a aceitação de si próprio.
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