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Como podemos enfrentar a emergência climática em uma metrópole desigual?

Marco Zero Conteúdo / 31/07/2024
A imagem mostra uma área urbana alagada com água barrenta cobrindo o chão. Duas pessoas estão em uma jangada improvisada feita de tábuas e destroços, aparentemente tentando se deslocar pela água. Várias construções, possivelmente casas ou comércios, estão parcialmente submersas. Há uma placa de rua visível, também parcialmente submersa, indicando que normalmente é uma via pública. No canto superior esquerdo, há uma placa azul com texto branco que diz “Eleições” e Observatório das Metrópoles

Crédito: Reprodução/WhatsApp

por Patrícia Geittenes Tondelo* e Fabiano Rocha Diniz**

O crescimento urbano na metrópole do Recife esteve frequentemente acompanhado de problemas de ordem social, econômica e ambiental que levaram à exposição da população mais pobre a diversas condições de vulnerabilidade, que tendem a se agravar devido às mudanças climáticas. O que assistimos neste ano de 2024 no Rio Grande do Sul já ocorreu no Recife em diversas ocasiões, como a cheia de 1975 que é lembrada até hoje. No contexto em que vivemos, diariamente vemos se confirmarem os impactos previstos do câmbio climático, com a ocorrência cada vez mais frequente e intensa de eventos extremos, como chuvas, inundações, deslizamentos e o aumento do nível da água do mar. Assim, cabe-nos questionar: o risco inerente aos aspectos climáticos é ampliado pelas condições de pobreza e precariedade nas cidades? Ou seria o contrário, nos lugares de extrema pobreza, as situações de precariedade urbana são exacerbadas pelas mudanças climáticas?

A cidade do Recife tem um histórico no qual os melhores locais para se viver sempre foram disputados (e conquistados) pelas camadas sociais de maior poder aquisitivo, enquanto que restaram as terras menos atrativas (morros ou áreas alagáveis, como mangues e bordas de rios) para as camadas de baixo rendimento. Segundo levantamento realizado pelo Governo Federal, o Brasil tem 1.942 municípios com grande suscetibilidade, com áreas frágeis, mais predispostas a desastres como deslizamentos de terras, enxurradas e inundações. Entre esses estados, Pernambuco é o terceiro com maior proporção da população residente em áreas de risco, 11,6% do total.

No Recife e na sua região metropolitana, os moradores das cidades presenciam todos os anos os transtornos causados pelas chuvas fortes, principalmente a ocorrência de alagamentos e deslizamentos. No entanto, essas consequências não são sentidas igualmente por todas as pessoas. Se, por um lado, os edifícios em altura com garagens nos pavimentos próximos ao solo são uma alternativa para morar na várzea inundável pelas classes de maior rendimento, por outro, as construções improvisadas nas encostas e margens de rios não são uma boa alternativa, porém é a única que existe para grande parte das classes de mais baixa renda.

A imagem mostra uma paisagem urbana durante uma enchente significativa. No primeiro plano, há um grande edifício de vários andares com telhado plano, cercado por água que inundou as ruas e submergiu parcialmente os veículos. Além deste edifício, é visível um bairro densamente povoado com várias pequenas construções, também afetadas pelas águas da enchente. Ao fundo, vê-se o horizonte da cidade com prédios mais altos envoltos em névoa, indicando chuva ou neblina. O céu está nublado, e a atmosfera geral parece sombria e úmida.

Edifícios em altura possibilitam maior segurança para morar em locais alagáveis.

Crédito: Captura de imagem/G1

A vulnerabilidade, como o grau de fragilidade de indivíduos ou comunidades, não é apenas resultante da exposição a riscos ambientais, mas uma condição que decorre também de processos históricos e sociais de consolidação das cidades. Assim, a vulnerabilidade pode ser ao mesmo tempo social e ambiental. No Recife, cidade das mais desiguais do país, essa situação ficou bastante evidente com os eventos climáticos ocorridos em maio de 2022, em que comunidades periféricas, precariamente consolidadas, foram fortemente atingidas por inundações e deslizamentos que levaram ao colapso do solo encharcado nas terras altas, inundaram áreas baixas, destruíram parte das moradias e acarretaram perdas de vidas humanas.

Esse foi o caso de Vila Arraes e Jardim Monte Verde, duas comunidades fortemente atingidas por inundações e deslizamentos provocados pelas chuvas. No mês de maio de 2022, morreram mais de 20 pessoas em Jardim Monte Verde, num total de mais de 130 mortes em toda região metropolitana.

Neste contexto de mudanças climáticas, muito se tem dito que a cidade precisa e deve ser resiliente, por isso precisamos entender melhor: o que é ser resiliente?

Comumente, este termo é traduzido com a capacidade que as pessoas, as organizações humanas ou as cidades têm de se recuperar, se reconstruir, após um acidente ou desastre. Entretanto, já se compreende que este “renascer das cinzas” não é mais suficiente. É preciso ir além, o verdadeiro desafio é reduzir ou erradicar as situações de risco, conviver com elementos que são vistos como hostis e causadores de problemas, como as águas das chuvas e dos rios. Objetivamente, construir sobre morros e sobre as águas (em palafitas, casas flutuantes ou sobre pilotis) é possível, se isso for feito de modo seguro e capaz de produzir um habitat de qualidade e culturalmente apropriado. Mas, para que isso aconteça, defendemos que o planejamento urbano, o controle urbanístico-ambiental e as medidas para reduzir a desigualdades e vulnerabilidades devem estar a serviço dos que mais precisam, os moradores dos assentamentos precários e vulneráveis.

Jardim Monte Verde cenário dos deslizamentos de barreira ocorridos em maio de 2022

As comunidades e as zonas de especial interesse social (CIS e Zeis, como são chamadas) são os territórios que necessitam receber a atenção prioritária das gestões municipais. Sua urbanização, com implantação de infraestruturas e serviços urbanos de qualidade, com melhoria ambiental e qualificação das moradias e dos espaços públicos devem ser realizadas urgentemente.

Em ano de eleição municipal, oferece-se uma oportunidade aos futuros gestores da metrópole de considerar e, acima de tudo, reconsiderar propostas de intervenções urbanísticas que contribuam e promovam a resiliência climática e o direito à cidade. O urbanismo como campo profissional dedicado à organização e melhoramento das condições de vida nas cidades, é uma ferramenta a ser mobilizada para mitigar os impactos do clima e proporcionar cidades mais equitativas, saudáveis e com menos riscos para a população. É preciso valorizar e resgatar os esforços que deram origem ao Manual de Ocupação dos Morros desenvolvido pelo Programa Viva o Morro (Convênio Nº 082/1999), cuja produção é fruto de um esforço conjunto da universidade pública, das prefeituras municipais da Região Metropolitana do Recife, do Governo do Estado de Pernambuco e da sociedade civil, com apoio de profissionais de múltiplas disciplinas.

O manual citado apresenta uma série de ações de resposta e prevenção aos acidentes em locais de risco, aplicáveis às regiões de morros do Recife e da RMR. São ações a longo prazo que envolvem estruturação do espaço urbano, dotando-o de infraestrutura urbana, regulação e controle da ocupação habitacional compatível com a fragilidade ambiental dos morros. O manual também busca romper com paradigma predominante de que os morros são inacessíveis e não favoráveis à urbanização e mudar a forma como são vistos e tratados pelos agentes públicos. Entende-se que os morros constituem um espaço parcialmente edificável, que precisa de orientação técnica para serem lugares de moradia seguros se requalificados, a partir da análise crítica de práticas consolidadas por parte da construção pública ou auto promovida pela população (FIDEM, 2004).

Mas por que estamos resgatando esse manual?

Primeiro, o material é um excelente exemplo de produção que considera o contexto local, abrangendo questões relativas ao relevo, geologia, clima, modo de construção e a cultura e a condições de habitar os morros da RMR. Segundo, o material vai ao encontro dos objetivos das atuais bases federais com o retorno do ministério das Cidades em 2023 e a criação da Secretaria das Periferias (Decreto nº 11.468, de 5 de abril de 2023).

De acordo com o artigo IV do decreto de criação, compete à Secretaria da Periferia “coordenar e apoiar as atividades relacionadas à redução de desigualdades e de riscos de desastres e as ações destinadas ao enfrentamento de necessidades habitacionais nos territórios urbanos vulneráveis, com foco na urbanização de assentamentos precários, na regularização fundiária urbana e na melhoria habitacional”. Com a criação do Programa Periferia Sem Risco, a recém instituída secretaria também já se posiciona diante das mudanças climáticas, cujo objetivo é fortalecer o desenvolvimento de capacidades locais de infraestrutura, planejamento, informação e participação social para enfrentamento das desigualdades e redução das vulnerabilidades relativas a riscos de deslizamento e inundação nas periferias brasileiras.

Deixamos aqui uma reflexão final: entendemos que relançar a luz sobre o Manual de Ocupação dos Morros nos permitiria perceber que não estamos na estaca zero frente às mudanças climáticas. Muito já foi feito e muito ainda está à espera da oportunidade para ser resgatado e aplicado nos territórios periféricos. Sabemos que habitar os morros reflete o dilema de muitas metrópoles brasileiras de Norte a Sul do país, cujo crescimento decorre de processos históricos de ocupação pelas populações mais carentes. Sugerimos irmos além da escala local e considerar também o potencial do Programa Viva os Morros, com adaptações, para aplicação em outros contextos nacionais.

A imagem é um guia informativo sobre a ocupação de morros na Região Metropolitana do Recife. No centro, há o título “Guia de Ocupação dos Morros”. A imagem contém várias ilustrações e fotos aéreas mostrando casas coloridas em áreas montanhosas densamente povoadas. Também há diagramas e mapas que parecem ser ferramentas de planejamento urbano para essas áreas. O texto está em português e inclui frases como “Programa Viva o Morro”, indicando uma iniciativa social ou governamental.

Recortes do Manual de Ocupação dos Morros da Região Metropolitana do Recife

Crédito: Reprodução Fidem

*Arquiteta e Urbanista, doutoranda no programa de Pós-Graduação de em Desenvolvimento Urbano (MDU) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e pesquisadora do Observatório das Metrópoles (Núcleo Recife).

**Professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFPE, pesquisador do Observatório das Metrópoles (Núcleo Recife) e da Comunidade Interdisciplinar de Ação, Pesquisa e Aprendizagem (CIAPA)

AUTOR
Foto Marco Zero Conteúdo
Marco Zero Conteúdo

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