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Comunidade no Cordeiro deve ter o maior número das 150 desapropriações da ponte Casa Forte-Cordeiro

Maria Carolina Santos / 05/11/2025
A foto mostra uma reunião pública noturna, realizada sob uma tenda. Várias pessoas estão sentadas, de costas para a câmera, assistindo a uma apresentação projetada em uma tela. Uma mulher em pé, à direita, segura um microfone e aponta para o slide, que exibe um mapa e o título “DESAPROPRIAÇÕES – Ponte”. No slide, aparecem dados sobre o bairro Cordeiro, indicando a quantidade de imóveis afetados: 102 edificações e 5 terrenos, totalizando 107. O ambiente é iluminado principalmente pela luz da projeção, e há um projetor sobre uma mesa à esquerda. A cena transmite um clima de reunião comunitária ou audiência pública para discutir intervenções urbanas.

Crédito: Maria Carolina Santos/Marco Zero

Depois de muita mobilização dos moradores de Santana, na zona norte, a prefeitura do Recife realizou na noite de terça-feira, 4 de novembro, uma reunião na comunidade para apresentar o projeto da ponte Casa Forte-Cordeiro. Com a licitação em andamento e o pregão já marcado para o dia 4 de dezembro, o projeto tem a previsão de 107 desapropriações para a estrutura da ponte e do canteiro de obras para a construção dela. Para a implantação do sistema viário, serão 12 desapropriações totais, 13 desapropriações parciais e 18 recuos de muro.

As obras estão previstas para começar no primeiro semestre de 2026 e apresentação foi feita por técnicos da Autarquia de Urbanização do Recife (URB). Do lado da zona norte, a mudança será bem menor e foi encarada como uma vitória parcial pelos moradores: serão apenas três imóveis com desapropriação total.

Até agora sem nenhuma mobilização por parte dos moradores, o lado do Cordeiro vai sofrer a maior parte do impacto nas moradias: todas as 107 desapropriações para a construção da ponte serão lá, além de 32 desapropriações para o sistema viário, sendo nove imóveis totalmente retirados, 10 com desapropriação parcial e 13 com recuo de muro. Na reunião pública, a prefeitura não mostrou no mapa, nem informou, quais serão os imóveis atingidos. Mas, como se pode ver pelo projeto, o impacto na zona oeste será bastante significativo.

As desapropriações da ponte Casa Forte-Cordeiro

Desapropriações para a ponte: 

Somente no Cordeiro:
Edificações: 102
Terrenos: 05
Total: 107

Desapropriações para o sitema viário

Cordeiro
Edificações com desapropriação total – 9
Edificações com desapropriação parcial – 10
Edificações com recuo de muro – 13

Santana
Edificações com desapropriação total – 3
Edificações com desapropriação parcial – 3
Edificações com recuo de muro – 5

Total: 43 (sendo, 12 total, 13 parcial e 18 somente o muro)

Fonte: Apresentação da URB na comunidade de Santana

Ainda não foi marcada nenhuma reunião com os moradores do Cordeiro. Havia um pequeno grupo de lá na reunião em Santana – pessoas que ficaram sabendo da reunião organizada pela prefeitura do Recife por conta de um amigo que mora do outro lado da ponte. Ao verem na apresentação o número de desapropriações no Cordeiro, ficaram indignados. No local onde vai passar o sistema viário da ponte, existe há décadas a comunidade Cocheira, que leva esse nome porque teve início com a criação de cavalos.

“A gente está sabendo da possibilidade desse projeto há muitos anos. O problema é que só chegam lá para fazer estudo de solo, medição de área… E não falam nada. Eles tiraram medidas de umas oito casas, pelo que sei. Inclusive, uma delas é a minha”, criticou o morador Luiz Agostinho. Segundo ele, a comunidade está em pânico com a perspectiva de remoção e apreensiva com a falta de informações — assim como os moradores de Santana estavam meses atrás. “Nunca a prefeitura fez reunião com a gente. Pelo que vimos do traçado do projeto, vai embora mais da metade da comunidade”, alerta Agostinho.

A imagem mostra um mapa técnico colorido, possivelmente de um projeto de engenharia urbana. No centro, há um rio largo em azul que divide o mapa horizontalmente. Sobre ele, passa uma ponte representada por linhas verdes e vermelhas paralelas, ligando as duas margens. Em torno da ponte e nas vias próximas, há várias áreas destacadas em rosa e roxo, que indicam zonas de desapropriação ou intervenção. As ruas ao redor estão desenhadas com linhas finas, mostrando o traçado do bairro. À esquerda, um retângulo listrado em vermelho marca uma “área a ser desapropriada”, identificada como “canteiro de obras”. A imagem combina elementos urbanos, topográficos e de infraestrutura para mostrar o impacto territorial do projeto.

Print de parte do projeto da ponte Casa Forte-Cordeiro. Em roxo, as áreas que serão desapropriadas, com impacto majoritariamente no Cordeiro.

Crédito: Reprodução

A prefeitura não informou na reunião quais as edificações do Cordeiro serão desapropriadas e existe a suspeita de que até o Conjunto Habitacional Cordeiro poderá ser atingido. Segundo o morador, a comunidade Cocheira conta hoje com mais de 60 famílias. “Hoje de manhã eu já falei com dez vizinhos. E todos se prontificaram em fazer uma reunião entre nós para poder ver o que é pode ser feito. Não queremos perder nossas casas”, diz o morador. “Muitos acharam que esse projeto nunca ia sair do papel. Agora, não sabemos se ainda pode ser feita alguma coisa. A prefeitura nunca nos disse nada sobre remoções”, lamenta Agostinho.

Uma preocupação do grupo do Cordeiro é de que, assim como do lado de Santana, não há regularização fundiária na comunidade. Como os moradores possuem apenas documentação de compra e venda, e não escritura, isso pode reduzir o valor das indenizações pagas na desapropriação. A Marco Zero entrou em contato com a prefeitura do Recife para saber quando vai ser a reunião com os moradores do Cordeiro, mas ainda não obteve resposta.

A função da ponte Casa Forte-Cordeiro

A obra pretende conectar Casa Forte e bairros vizinhos da zona norte a Boa Viagem, na zona sul, num fluxo mais curto, passando pelas avenidas General San Martin e Recife, sem precisar passar pela avenida Agamenon Magalhães. A ponte é parte da terceira perimetral da cidade, corredor viário planejado desde a década de 1980.

Santana quer realocação

A reunião em Santana foi perto da capela, em um toldo montado na rua Henrique Machado. A comunidade compareceu em peso, e, apesar da conquista no pequeno número de desapropriações, há vários questionamentos que os técnicos da prefeitura não conseguiram esclarecer, o que desapontou os moradores. Não foi apresentado, por exemplo, quais serão exatamente os três imóveis que serão parcialmente desapropriados nem os cinco que terão o muro recuado.

As três construções que serão derrubadas para abrir espaço para o novo sistema viário ficam no cruzamento da rua Dona Olegarinha com a Henrique Machado É um mercadinho, o único da comunidade, e duas construções multifamiliares. Moradora do imóvel colado ao mercadinho, Maria de Fátima Bonfim já temia que a casa dela fosse afetada. A confirmação veio pouco antes da reunião. “Eu moro aqui há 63 anos. Aqui não tem assalto, não tem briga. E, se tiver briga entre os moradores, todo mundo se reúne e acalma tudo. Porque a gente aqui é como se fosse todo mundo parente. E, na verdade, muitos são parentes mesmo. Não quero sair da minha casa”, lamentou, desolada.

Para os moradores que serão afetados pelas desapropriações, os técnicos da prefeitura – nenhum gestor compareceu à reunião – afirmaram que as opções são a indenização (valor ainda não informado) ou uma vaga no habitacional Caiçara, no Cordeiro, do outro lado do rio, que vai contar com 192 apartamentos. Maria de Fátima ficou revoltada com as opções. “Na minha casa moram cinco famílias. São duas embaixo, duas em cima, e no quintal tem mais uma casa. A indenização não vai pagar uma outra casa pra mim aqui. É tudo caro, se paga pelo metro quadrado. Não quero de jeito nenhum morar em habitacional, ainda mais fora daqui”, reclamou.

A foto mostra uma mulher em pé na calçada, à noite, em frente a uma casa simples de dois andares com paredes brancas e aparência desgastada. Ela veste uma camisa sem mangas listrada em vermelho, preto e branco, com o escudo do Santa Cruz Futebol Clube. Ao lado dela há um carro preto estacionado e, à direita, um poste com muitos fios elétricos entrelaçados. A fachada da casa tem janelas e portões com grades de ferro; na parede há o número “47F” pintado em amarelo. O ambiente é urbano e residencial, iluminado por luzes artificiais.

Imóvel onde Maria de Fátima mora será desapropriado

Crédito: Maria Carolina Santos/Marco Zero

Unida, a comunidade não quer perder nenhum dos seus moradores. Sugeriram à prefeitura duas opções: a primeira é que nada seja derrubado. Para isso, concordaram em não ter carros estacionados nas ruas do sistema viário da ponte. Uma equipe da CTTU foi ontem lá, antes da reunião, e ficou de repassar a análise para a URB – mas vale lembrar que foi dito pelos técnicos que vários estudos de tráfego foram feitos para a elaboração do projeto. Um morador, porém, contestou a atualização desses estudos, já que um deles usou dados de 2013 e outro de 2018.

A outra sugestão dos moradores é que o mercadinho e as famílias desapropriadas se mudem para dentro da própria comunidade, já que há dois terrenos públicos lá que estão sem uso há décadas. A prefeitura ficou de ver a análise da CTTU, mas nada foi dito sobre os terrenos na comunidade. Com poucas informações concretas repassadas pelos técnicos na reunião pública, foi informado pela prefeitura que uma equipe da assistência social vai visitar cada imóvel afetado para conversar e dar mais informações individualmente aos moradores. Tremendo possíveis manobras, a associação dos moradores de Santana se comprometeu a acompanhar essas visitas.

A união fez a força

Em época de desarticulação social, a comunidade de Santana mostrou que a mobilização pode sim fazer a diferença. A mobilização da comunidade não é recente. Em 1990 foi fundada a associação de moradores do bairro, que teve como primeira presidente Adeline Areias. Ela segue envolvida nas articulações políticas e sociais de Santana. “Esse projeto da ponte poderia ser bem mais perverso, porque poderia tirar até metade da comunidade. Sabemos que uma ponte não é para Santana, é para toda a cidade, é um projeto macro, mas o que estamos aqui reivindicando é que a gente permaneça no nosso lugar de origem, onde a gente nasceu”, diz Adeline.

A imagem mostra uma reunião comunitária ao ar livre, sob uma grande tenda branca, com dezenas de pessoas sentadas em cadeiras plásticas, voltadas para uma tela de projeção. Algumas usam máscaras, indicando cuidados com a saúde. A apresentação exibida na tela tem o título “Projeto Urbanístico” e inclui um texto explicativo e uma imagem aérea de um bairro. O ambiente é simples, cercado por muros e vegetação, sugerindo que o evento ocorre em uma área residencial. Algumas pessoas estão em pé próximas à tela, provavelmente organizadores ou apresentadores.

Moradores da comunidade participaram em peso da reunião de apresentação do projeto

Crédito: Maria Carolina Santos/Marco Zero

A união dos moradores da comunidade – pessoas da classe trabalhadora, que resistiram à gentrificação ao redor – tem origem também na própria formação dela. “Em 1917, meus avós saíram da Paraíba e foram os primeiros moradores daqui, a família Sobral. Tem 1,2 mil moradores cadastrados na UPA daqui e muitos deles são parentes”, conta Aldeline. “A vida aqui é tranquila, movimentada politicamente, é uma comunidade ativa. Um lugar realmente das pessoas, que vem passando de família para família e a gente pretende manter isso. Porque a violência lá fora está muito grande e a gente quer esse aconchego que Santana tem e é uma coisa ímpar. É o conhecimento da vizinhança, nossas festas na rua. Queremos manter esse novo jeito de viver”, conta.

Para a historiadora Rosely Bezerra da Silva, moradora de Santana, a articulação foi a forma de resistir à falta de transparência e diálogo da prefeitura. “O modelo da gestão de João Campos hoje é fazer as coisas dizendo que vai beneficiar a cidade, mas não há uma consulta, um diálogo com o povo. No Cordeiro, a quantidade de desapropriação é imensa porque justamente não houve essa mobilização que a gente fez. Mas isso não significa que a população não precisa ser consultada, pelo contrário. Se vai haver um projeto, é dever da gestão consultar as pessoas, principalmente as que vão ser afetadas”, afirma.

Também integrante da associação de moradores, a comerciante Márcia Santos faz coro sobre a necessidade da articulação para evitar mais impactos. “Esse ‘impacto mínimo’ aqui, como é que está sendo falado, foi por conta da luta que a gente vem travando há mais de um ano, buscando esse direito, esse respeito.Mas a gente queria ter participado da construção do projeto e não recebê-lo já pronto, mastigado, pra gente ter que engolir”, critica a comerciante. “A gente até tentou contato com o pessoal do Cordeiro, mas as pessoas que a gente visitou não abraçaram a causa, e ficamos independentes. Mas, de início, a luta era com os dois bairros para evitar esse impacto. Com certeza a falta de articulação do Cordeiro fez com que eles fossem, vamos dizer, varridos no projeto”, lamentou Márcia.

AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org