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Crédito: Géssica Amorim/Coletivo Acauã
por Géssica Amorim, em parceria com o Coletivo Acauã
“Quem tiver suas promessas, pague antes de morrer. Porque nós não somos Jesus, que morreu e voltou a viver”. É assim que começa um dos cantos benditos que introduziram uma roda de São Gonçalo realizada na Vila Agrícola 5, na zona rural do município de Ibimirim, a 337 quilômetros do Recife, no sertão pernambucano).
A festa é dedicada ao santo português São Gonçalo de Amarante – na verdade, oficialmente, um beato da igreja Católica – e costuma acontecer somente em ocasiões em que há pagamento de promessas de seus devotos, estando vivos ou não.
A roda festejada em Ibimirim foi arranjada pela família de dona Eunice Moura, agricultora aposentada que faleceu antes de conseguir pagar uma promessa que tinha com o santo. Ela partiu de repente, vítima de um acidente vascular cerebral e teve o pagamento da sua promessa garantido pelos seus familiares num ritual de música e dança, no terreiro da casa onde vivia, com a presença de boa parte dos moradores da comunidade.
Gonçalo de Amarante foi um missionário festeiro, que gostava de música e rodas de viola. Atualmente, é tido como santo de todas as causas, principalmente às relacionadas à cura de doenças, mas já foi conhecido, especificamente, como um santo casamenteiro e padroeiro dos violeiros e das prostitutas. Historiadores contam que no século XI, em Amarante, cidade portuguesa localizada ao Norte do país, Gonçalo usava a sua viola para espalhar o evangelho pelas ruas e, aos sábados, costumava ir a prostíbulos tentar ocupar o tempo das mulheres tocando viola e as fazendo dançar a noite inteira. Ele acreditava que, cansadas da dança da noite anterior, não teriam disposição para se prostituir aos domingos. Nessas ocasiões, o santo colocava pregos em seus sapatos, para não esquecer do real objetivo de suas ações enquanto tentava converter mulheres que, para a igreja, viviam em pecado.
A roda de São Gonçalo de Amarante é vista como um acerto de contas entre o santo e o promesseiro beneficiário de alguma graça. Para celebrar e agradecer o pedido atendido, a festa é organizada como forma de pagamento ao santo, que, segundo os seus devotos, além de festeiro, é muito exigente.
O ritual começa com uma refeição, oferecida por quem paga a promessa, aos integrantes da roda que vêm participar do “pagamento”. Em seguida, com todos dispostos no terreiro, a dança é embalada por pelo menos 12 canções e 12 coreografias diferentes que são chamadas de “jornadas”. Cada jornada tem um nome específico, que pode sofrer variações, dependendo da região em que a festa é celebrada.
Em Ibimirim, no sábado, 4 de fevereiro, os festeiros da roda que acompanhamos cantaram e dançaram 12 jornadas com os nomes de “currupi”, “jornada da cruz”, “planta de feijão”, “trancelim de vara”, “dois ombros”, “um ombro só”, “jornada da venda”, “jornada do casamento”, “dança da toalha”, “trancelim de roda”, “margarida” e “dança do pilão”. O nome de cada uma pode ter relação com os passos das coreografias, com as letras das músicas cantadas ou com algum pedido que pode ser feito ao santo, geralmente relacionado à lavoura dos agricultores ou ao desejo que alguém pode ter de se casar.
Para cumprir cada jornada, o grupo se organiza em duas fileiras voltadas para o altar onde é colocada uma imagem de São Gonçalo. Uma fila é composta por homens e outra composta por mulheres. Cada uma é liderada e dirigida por um violeiro, um mestre e um contramestre que ditam os passos da dança.
A roda deve ter, pelo menos, 16 participantes e cada jornada pode durar mais de meia hora, a depender do número de integrantes e da execução dos passos de cada coreografia. Se houver algum erro na sequência dos passos, a jornada precisa recomeçar, até que seja cumprida com perfeição – o que seria uma exigência do santo.
O pagamento de uma promessa feita a São Gonçalo de Amarante gera para o promesseiro um gasto financeiro considerável, já que é necessário arcar com as despesas do deslocamento e alimentação do grupo que irá compor a roda, além da compra de velas e fogos de artifício que são estourados ao final de cada jornada.
O grupo que dançou na roda de São Gonçalo organizada pela família de dona Eunice, em Ibimirim, é composto por integrantes de diferentes povoados do município e de uma cidade próxima, Tupanatinga. Viajando pela PE-336, os 64 quilômetros entre as duas cidades pode ser vencida em uma hora e meia. Mas, no dia da festa, saindo de Tupanatinga e passando pelos povoados de Canela e Jirau, para reunir todos os integrantes da roda e seguir para a Vila Agrícola 5 em Ibimirim, em estrada de chão, a viagem durou três horas.
Uma das filhas de dona Eunice Moura, a autônoma Claudenice Moura, de 46 anos, mora em São Paulo e aproveitou as férias para vir a Ibimirim pagar a promessa da mãe. É a primeira vez que ela participa de uma roda de São Gonçalo, e já como pagadora. “Ela [sua mãe] faleceu de repente e ficou devendo essa promessa. Nós, os filhos dela, nos reunimos como foi possível para pagá-la. Quem mora fora e pode vir, veio ajudar a organizar. Como é a primeira vez que a gente faz essa festa, nós ficamos meio perdidos no começo, mas deu tudo certo. Fizemos os contatos, reunimos os integrantes da roda e fizemos o jantar para receber todo mundo. Tenho certeza de que a nossa mãe está feliz e em paz, agora, com a realização dessa festa”, conta.
Segundo o agricultor aposentado e mestre de roda de São Gonçalo Gerônimo de Oliveira, 75, popularmente conhecido pela região como Seu Geruzo, quem morre sem pagar uma promessa feita a São Gonçalo tem uma grande dívida com o santo até a realização da festa. “São Gonçalo é um santo muito bom, não tem pedido que ele não atenda. Mas o camarada também tem que pagar a promessa que fez, de organizar a dança. Se não fizer a festa, fica em agonia, sofrendo. Pode até perturbar os vivos. Por isso, é importante pagar direito. Quem morre antes de pagar, deixa a dívida pra família e os que ficam pagam por quem morreu. Se a família não souber da promessa, o morto pode vir em sonho pedir”, explica o mestre, que lidera rodas de São Gonçalo há mais de 30 anos.
A tradição da roda de São Gonçalo de Amarante chegou ao Brasil com os colonizadores. O primeiro registro da festa no país seria de 1718, em Salvador, na Bahia. Hoje, apesar de não ser muito conhecida do público urbano, a celebração pode ser encontrada em praticamente todas as regiões do país, principalmente no Nordeste, com suas particularidades e semelhanças variando de estado para estado.
Nas manifestações religiosas populares dos devotos, não há uma data fixa para homenagear São Gonçalo. Os fiéis não fazem romarias e nem festas para o santo anualmente, como acontece em memória e celebração de outros padroeiros. Apenas oferecem a festa, como pagamento pelas graças alcançadas, cumprindo a parte do trato feito com o santo.
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