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“Democracia para sempre”

Marco Zero Conteúdo / 01/01/2023
Lula sobe a rampa do Palácio do Planalto de mãos dadas com pessoas comuns que representam a população brasileira

Crédito: Ana Pessoa/Mídia Ninja

por Vasconcelo Quadros*, especial para a Marco Zero

As 16h53m deste domingo, 1º de janeiro de 2023, numa caminhada de dois minutos, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, subiu a rampa do Palácio do Planalto, recebeu a faixa verde e amarela presidencial, ajeitada em seu peito pela catadora de papelão Aline Souza, dirigiu-se ao parlatório para falar ao país durante 28 minutos e, logo em seguida, sentou na cadeira cujo símbolo foi tão desrespeitado nos últimos quatro anos.

Lula encerrou assim a cerimônia do capítulo mais importante de sua trajetória de 42 anos na política, calando extremistas de direita que há dois meses ocupam o Quartel General do Exército, em Brasília, para pedir golpe militar em cima do delirante bordão “não vai subir a rampa”. Lula subiu com tranquilidade duas rampas, a do Congresso, onde foi formalmente empossado, e a do Planalto.

No discurso de 28 minutos no parlatório, o segundo do dia, chorou várias vezes ao falar da volta da miséria, mas prometeu um amplo governo de reconstrução cuja tônica será o combate às desigualdades, justiça social, solidariedade e amor ao próximo, práticas que nos quatro anos de seu antecessor, sobretudo na eleição, deram lugar ao ódio, desesperança e mentira.

“A ninguém interessa um país em permanente pé de guerra, ou uma família vivendo em desarmonia. É hora de reatarmos os laços com amigos e familiares, rompidos pelo discurso de ódio e pela disseminação de tantas mentiras. O povo brasileiro rejeita a violência de uma pequena minoria radicalizada que se recusa a viver num regime democrático. Chega de ódio, fake news, armas e bombas. Nosso povo quer paz para trabalhar, estudar, cuidar da família e ser feliz. A disputa eleitoral acabou”, afirmou o presidente.

Desde que subiu a rampa, Lula se manteve sempre ao lado da primeira dama, Janja, do vice-Geraldo Alckmin, da mulher deste, Lu, e de um grupo que representou o povo brasileiro na transmissão da faixa presidencial, o mais conhecido deles o cacique caiapó Raoni. “Não existem dois brasis. Somos um único país, um único povo, uma grande nação. (…) Juntos, somos fortes. Divididos, seremos sempre o país do futuro que nunca chega, e que vive em dívida permanente com o seu povo.”, observou.

Lula afirmou que o Brasil voltou a ser um dos países mais desiguais do mundo. “Há muito tempo não víamos tamanho abandono e desalento nas ruas. Mães garimpando lixo em busca de alimento para seus filhos. Famílias inteiras dormindo ao relento, enfrentando frio, a chuva e o medo. Crianças vendendo bala ou pedindo esmola, quando deveriam estar na escola vivendo plenamente a infância que tem direito”, disse o presidente que, voz embargada, não conseguiu conter o choro quando citou o dilema de desempregados. “Trabalhadores e trabalhadoras desempregados, exibindo nos semáforos cartazes de papelão com a frase: por favor, me ajude”, lembrou o presidente, se comprometendo a cuidar de todos os brasileiros, independentemente do partido ou candidato em quem votaram.

O otimismo de Lula

Ele prometeu acabar com a fome, que está de volta e atinge cerca de 33 milhões de brasileiros, 5% a mais do que encontrou em 2003, ao assumir o primeiro mandato, e resgatar da pobreza mais de 100 milhões de pessoas à beira da miséria. “Reassumo o compromisso de tirar o pobre da fila do osso para colocá-lo novamente no orçamento da União”, garantiu.

Foi um discurso otimista cujas linhas básicas, da economia às necessidades sociais, reforçam a intenção de ampliar a democracia tantas vezes ameaçadas, reconstruir as políticas públicas desmontadas ao logo dos últimos quatro anos, dinamizar a economia e atrair investimentos estrangeiros tirando o Brasil da condição de pária internacional em decorrência da permissividade do governo anterior com crimes ambientais. Prometeu que o país voltará a níveis de desmatamento e emissão carbono zero, se ajustará às políticas climáticas e fará a roda da economia voltará a girar com o consumo da população no papel central.

O presidente garantiu que vai valorizar o salário mínimo, acabar com as filas no INSS e, do diálogo entre governo empresários e sindicatos, proporá uma nova legislação trabalhista ao país, conciliando liberdade de empreender com proteção social. O plano de economia inclui também investimentos na indústria do conhecimento, estratégia conectada ao diálogo com o setor produtivo, bancos públicos e estatais no estímulo a pesquisa.

A herança do bolsonarismo, segundo o presidente, é um legado de destruição dos órgãos públicos e de uma economia com reservas de R$ 370 bilhões deixadas pelo governo petista. “Infelizmente, muito do que construímos em 13 anos foi destruído em menos da metade desse tempo. Primeiro, pelo golpe de 2016 contra a presidenta Dilma. E na sequência, pelos quatro anos de um governo de destruição nacional cujo legado a História jamais perdoará: 700 mil brasileiros e brasileiras mortos pela covid-19, 125 milhões sofrendo algum grau de insegurança alimentar, de moderada a muito grave, 33 milhões passando fome”, disse.

O presidente citou um trecho do relatório produzido pelo grupo de transição mostrando que o país bateu recordes de feminicídios, as políticas de igualdade racial sofreram severos retrocessos, houve desmonte generalizado das políticas de juventude ao mesmo tempo em que os direitos indígenas “nunca foram tão ultrajados na história recente do país”. Segundo ele, não há recursos para merenda escolar ou para a Defesa Civil combater acidentes e desastres, nem chegaram a ser editados os livros didáticos para este ano letivo, faltam remédios no programa Farmácia Popular e, enquanto a pandemia da covid-19 dá sinais de retorno, não há estoques de vacinas no país.

“Quem está pagando a conta deste apagão é o povo brasileiro”, afirmou Lula. O presidente não poupou críticas a Bolsonaro, mas garantiu que não agirá com ressentimento ou revanchismo e que os crimes praticados serão investigados pelas instituições e seus responsáveis punidos na forma da lei. “A liberdade que eles pregam é a de oprimir o vulnerável, massacrar o oponente e impor a lei do mais forte acima das leis da civilização. O nome disso é barbárie”, apontou Lula.

“Não carregamos nenhum ânimo para ódio de revanche contra os que tentaram subjugar a nação a seus designíos pessoas e ideológicos, mas vamos garantir o primado da lei. Quem errou, responderá por seus erros, com amplo direito de defesa. O mandato que recebemos, frente a adversários inspirados no fascismo, será defendido com os poderes que a Constituição confere à democracia”, afirmou, se referindo às tentativas golpistas da direita inconformada com a derrota. “Ao terror e a violência responderemos com a lei e suas mais duras consequências”, afirmou, lembrando que se no processo de redemocratização o slogan era “ditadura nunca mais!”, diante dos desafios impostos pelo bolsonarismo é necessário um novo bordão: “Democracia sempre!”, enfatizou.

Lula repetiu a necessidade de reconciliar políticos, recuperar as instituições e remontar os programas sociais interrompidos, sem deixar de lembrar que a direita tentou destruí-lo através de ações da Operação Lava Jato, o impeachment sem motivação de sua correligionária Dilma Rousseff, em 2016, sua prisão, em abril de 2017, e condenações que o impediram de se candidatar em 2018, anuladas no mesmo período em que o juiz de Curitiba que o sentenciou, o senador eleito Sérgio Moro, foi julgado parcial pelo Suprem Tribunal Federal (STF) por ter politizado e usado artifícios ilegais no processo dirigido contra o petista. O desafio mais recente de calá-lo, lembrou, veio da avalanche de crimes eleitorais praticados pelo antecessor com uso escancarado do Estado para tentar evitar uma derrota desenhada desde que deixou a prisão, em novembro de 2019, depois de 580 dias de encarceramento em Curitiba.

Mulher negra, de tranças e camiseta branca, coloca a faixa presidencial verde e amarela no corpo de Lula, sob o olhar do cacique Raoni, que usa grande cocar amarelo com pena vermelha ao fundo da foto.

Crédito: Ricardo Stuckert/Presidência

Desafios: a economia e os militares

Ao assumir o governo para um inédito terceiro mandato pelas urnas, Lula terá pela frente uma série de desafios na área econômica, entre eles o controle da inflação, a reforma tributária que terá de negociar com governadores e Congresso e a reconstrução das pontes destruídas por Bolsonaro na relação com países importadores como a China, Estados Unidos e União Europeia, que já aprovou sanções contra produtos brasileiros que se originem de áreas desmatadas ou alvo de crimes ambientais.

Na política, o presidente vai enfrentar uma oposição que não saiu das ruas e, ruidosa, ameaça com ações violentas numa nova tentativa de gerar caos na vã tentativa de atrair forças militares para o golpismo. Uma fonte do PT disse que ninguém acredita que o extremismo encontre apoio para aventuras autoritárias, mas lembrou que é necessário ficar atento a movimentos que possam fomentar um cenário de caos que possa gerar instabilidade entre governo e Congresso. Nesse sentido, o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, em 2016, serve como alerta para as novas conspirações: os golpes não se dão mais com tanques nas ruas, mas pela via parlamentar.

Especialistas ouvidos pelo Marco Zero avaliam que o maior desafio do presidente Lula, diante das arruaças e ameaças de atentados a bomba por manifestantes acampados em frente aos quartéis, será a relação que o novo governo terá com as Forças Armadas. Do golpe que derrubou a monarquia, em 1889, à derrocada do projeto de poder com a derrota de Bolsonaro, o militarismo é um enclave na política que, graças à fragilidade e o medo de governantes civis, se colocou acima das demais instituições, ora como protagonista, como na ditadura de 21 anos que se encerrou em 1985, ou como uma espécie de eminência parda ameaçadora durante os quatro anos em que Bolsonaro flertou, sem sucesso, com a aventura autoritária.

O projeto golpista não foi em frente porque Bolsonaro recuou por temer represálias do Supremo Tribunal Federal, onde se sobressaíram as decisões do ministro Alexandre de Moraes, presidente do TSE, bastante aplaudido quando seu nome foi citado na posse de Lula neste domingo no Congresso.

Embrião de organizações paramilitares, os extremistas de direita, formado em seu núcleo principal por empresários do agro, militares da reserva e ex-policiais, encontraram voz e inspiração no silêncio condescendente de Bolsonaro. É no mínimo simbólico que esses grupos tenham escolhido áreas de controle militar para acampar e, um surrealismo sem paralelo, pedir intervenção das Forças Armadas para impedir a posse de um governante legitimamente eleito diante do silêncio constrangedor dos comandantes militares.

Porta dos fundos

Bolsonaro passou o ano novo em Orlando, nos Estados Unidos, para onde viajou dois dias antes do encerramento do mandato, com retorno em aberto e incerto diante do cerco judicial do qual é alvo por uma série de crimes, que vão da sabotagem ao combate da pandemia ao uso desbragado da máquina pública para tentar evitar a derrota. Sem imunidade, o ex-presidente teme uma prisão dada como certa por seus advogados. Repetindo gestos antidemocráticos que marcou seu governo, abandonou o país e a liturgia para não entregar a faixa presidencial a Lula. Esperava-se que o então vice, Hamilton Mourão o fizesse.

O senador eleito também se desviou, mas não deixou passar a oportunidade de, à véspera da posse, fazer um pronunciamento em rede nacional de rádio e televisão, no qual, muito diferente do silêncio de quatro anos, sem citar o nome, criticou duramente Bolsonaro por este ter estimulado manifestantes que pediam golpe militar.

“Lideranças que deveriam tranquilizar e unir a nação em torno de um projeto de país deixaram com que o silêncio ou o protagonismo inoportuno e deletério criasse um clima de caos e de desagregação social e de forma irresponsável deixaram que as Forças Armadas de todos os brasileiros pagassem a conta, para alguns por inação e para outros por fomentar um pretenso golpe”, disse Mourão, num sinal de que tem apoio de parte da cúpula militar para abandonar Bolsonaro e se colocar como possível candidato presidencial em 2026 na guerra intestinal pelo controle do eleitorado de direita.

O capitão e o general que comandaram o insólito governo não inovaram na quebra da liturgia: o marechal Floriano Peixoto e o general João Batista de Figueiredo em gestos igualmente arrogantes já haviam deixado o governo pela porta dos fundos, sem entregar a faixa aos sucessores. Lula deixou claro que não via relevância além do cumprimento do ritual do poder, mas aproveitou a deixa para homenagear o povo brasileiro: preferiu receber a faixa de um grupo formado pelos grupos que mais foram perseguidos ou ignorados pelas políticas públicas no governo que se encerrou. O presidente evitou de tratar da questão militar nas solenidades de posse, mas tem apoio da classe política para definir um novo papel às Forças Armadas.

* foi correspondente do Jornal do Brasil, entre 2005 e 2006, na Amazônia; entre 2006 e 2002, em São Paulo, com passagens pela Agência Estado, Folha da Tarde, Diário Popular, sucursal do Jornal do Brasil e revista IstoÉ; de 2002 até 2019, já em Brasília, passagens pelas sucursais da IstoÉ, Estadão, Jornal do Brasil, entre outros, sempre atuando na editoria de Brasil (antiga Nacional ou Geral).

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