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Denúncia de tentativa de censura na TV Universitária ganha contornos de crise na UFPE

Marco Zero Conteúdo / 23/03/2021

Trecho do vídeo produzido pela coordenação de jornalismo da TVU da UFPE

A denúncia do historiador e professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Marco Mondaini mobilizou parte da sociedade civil e diversas entidades ligadas ao jornalismo e à comunicação pública. Após avaliar que sofreu censura por parte da reitoria da universidade, ele entregou o cargo de diretor do Núcleo de TV e Rádios Universitárias (NTVRU) da UFPE depois de aproximadamente um ano na função. 

O fato aconteceu na última sexta-feira (19) depois de ir ao ar um vídeo, produzido pela coordenação de Jornalismo da TV Universitária, com diversas manchetes de portais sobre o cenário da maior crise sanitária da história do país, enaltecendo o trabalho da ciência e fazendo um apelo para que a população faça a sua parte ficando em casa. 

Uma dessas manchetes tinha o nome do presidente Jair Bolsonaro (sem partido): “Bolsonaro diz que lockdown ‘não dá certo’ e volta a criticar governadores”. O vídeo, no entanto, está sendo veiculado em seu formato original na programação da TV, sem modificações ou edições.


Após divulgar o material com seus contatos de WhatsApp, incluindo um grupo de gestão ampliada da universidade, no qual está o reitor Alfredo Macedo Gomes, no cargo desde outubro de 2019, Mondaini recebeu uma ligação da Superintendência de Comunicação da UFPE, a pedido do reitor, sugerindo que a referência a Bolsonaro fosse retirada do vídeo.

O diretor não aceitou e, como resposta, enviou, por meio da superintendente, o aviso de que seu cargo estaria à disposição. Na sequência, veio, quase de imediato, a resposta do reitor aceitando a sua decisão.

“É um fato muito grave, não tenho notícias – dou aula desde 2004 na UFPE -, de uma denúncia de censura dentro do espaço acadêmico e universitário. E essa partiu agora do próprio reitor”, comentou Mondaini em entrevista à Marco Zero Conteúdo. Ao contrário de outros casos de perseguição a professores que criticaram Bolsonaro em universidades federais, a tentativa de intervenção do reitor da UFPE não foi motivada por qualquer interferência de Brasília, seja dos ministérios da Justiça e da Educação, da Advocacia Geral da União ou mesmo da Polícia Federal.

O professor defende que não se tratava de uma peça institucional da universidade, e, sim, da diretoria responsável pela comunicação pública. “O núcleo (NTVRU) é outra coisa, é um espaço de comunicação pública, não é uma TV da UFPE. Existe para falar com a sociedade, e não para falar da UFPE”, coloca.

“Não foi uma referência aleatória (a Bolsonaro), o vídeo tem uma linearidade e um encadeamento de ideias”, complementa. Na opinião de Mondaini, há uma necessidade de nomear e tornar explícito neste momento quem é o responsável pelo Brasil ter chegado à atual situação da pandemia.

A UFPE se posicionou através de nota em que, logo no início, reitera, que “tem se posicionado abertamente em defesa da vida, da ciência, do isolamento social e do uso de máscaras, como é notório pelas medidas adotadas institucionalmente”. Confira a íntegra da nota mais abaixo.

Monadini diz não ser crítico, salvo algumas exceções, às posturas que a universidade tem tomado em relação à pandemia, mas acredita que “tentar censurar a referência ao nome do presidente da República de maneira não adjetivada, em uma matéria de jornal, mostra o descompasso entre as medidas tomadas e a responsabilização de como a gente se encontra”.

A Comissão de Ética do Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Pernambuco (Sinjope) se manifestou com preocupação a respeito do episódio. Em nota publicada nesta segunda (22) e subscrita por diversas entidades e nomes das mais diversas áreas da sociedade, o posicionamento chama a atenção “para que não haja censura em nenhum veículo e para que a comunicação social no Brasil, seja ela pública, privada, comunitária, independente ou outra, seja o espaço para a informação de qualidade, para o bom jornalismo, exercido com ética e respeito aos direitos humanos”.

“Nesse momento de pandemia que atravessamos, quando o Brasil se aproxima da marca de 300 mil vidas perdidas para a Covid-19, a liberdade de imprensa é direito fundamental, assegurado em diferentes dispositivos legais, que se mostra imprescindível para a democracia e efetivação da transparência pública. Os meios de comunicação têm exercido seu papel de garantir o direito à informação do povo brasileiro e lhe é direito tratar dos fatos e dados”, traz o texto.

“É fundamental lembrar que a TV Universitária se configura uma emissora pública, com relevante papel na proteção e na promoção de direitos ligados à diversidade, pluralidade e à democratização dos meios de comunicação no país, premissas que fundam a sua identidade enquanto meio de comunicação”, afirma a nota. 

Em conversa com a reportagem, a jornalista e professora Andréa Trigueiro, que faz parte da Comissão de Ética do Sinjope, uma comissão autônoma dentro do sindicato, frisou que o posicionamento é “em defesa do bom jornalismo”. 

“É um fato que nos preocupa, uma pessoa narrando que houve um pedido para que um determinado conteúdo fosse editado e retirado um trecho. Independente do mérito da questão ou da instituição onde tenha sido, não podemos nos silenciar”, defende Andréa. 

UFPE estranha decisão e falta de diálogo

No trecho em que fala sobre o caso especificamente, a nota da UFPE afirma que a instituição está pautada numa gestão democrática, no diálogo e na construção participativa. Por isso, estranhou a decisão de Mondaini e esperava mais diálogo.

Reforçando o respeito ao trabalho do núcleo e a proteção à liberdade de cátedra e de imprensa e à pluralidade de ideias, a universidade reforça no texto que trabalha para fortalecer a comunicação pública e o protagonismo e a representatividade da sociedade civil.

Ao final, a nota, em nome da atual gestão, agradece o trabalho desenvolvido pelo professor e reitera o respeito por todas e todos que fazem o NTVRU.

Confira a nota da UFPE na íntegra:

A Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), ao longo de toda a pandemia, tem se posicionado abertamente em defesa da vida, da ciência, do isolamento social e do uso de máscaras, como é notório pelas medidas adotadas institucionalmente e como foi reforçado na nota divulgada no dia 18/03/2021.

No contexto de radicalização da sociedade e de negação da ciência, a UFPE tem também se posicionado de forma inequívoca em defesa de políticas públicas e pautas sociais que fortaleçam a Universidade Pública; tem lutado contra os cortes orçamentários; contra os vetos ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT); defendido a autonomia universitária e o respeito à decisão da comunidade na escolha do/a reitor/a eleito/a; defendido a continuidade das cotas e respeito ao meio ambiente; criticado a falta de coordenação nacional no enfrentamento da pandemia, dentre outras pautas importantes e urgentes.

O episódio em tela faz referência a vídeo institucional que faz parte da campanha mais ampla que a UFPE vem promovendo para elevar o compromisso e a conscientização de toda sociedade no enfrentamento da covid-19. O objetivo é falar para todas as pessoas, superar a gramática da polarização, visando a sensibilização da sociedade neste momento de tentativa de desqualificação das instituições da república.

Por realizar uma gestão democrática, com capacidade dialógica e construção participativa da universidade pública, inclusiva, plural, diversa e laica, causou estranhamento a posição do ex-diretor do Núcleo de TV e Rádios Universitárias (NTVRU) de colocar o cargo à disposição sem procurar dialogar. A gestão da UFPE sempre respeitou e trabalhou para o fortalecimento da autonomia do Núcleo, o que é atestado na forma democrática de construção da minuta de seu Regimento Interno do Conselho Curador do NTVRU, que será apreciada em breve pelo Conselho de Administração.

A orientação da comunicação institucional que projetamos deve refletir o espírito de resistência dialógica e republicana, fundamentada em leitura mais ampla da quadra histórica que estamos vivendo. Neste sentido, a UFPE trabalha para fortalecer a Comunicação Pública e o protagonismo e a representatividade da sociedade civil neste processo.

A UFPE reafirma o respeito e a proteção à liberdade de cátedra e de imprensa e à pluralidade de ideias, garantias irrenunciáveis do Estado de Direito. A gestão agradece o trabalho desenvolvido pelo professor Marco Mondaini, reiterando o respeito por todas e todos que fazem o NTVRU.

Mondaini cita episódios anteriores

O professor Mondaini conta que, em dois episódios anteriores, “já pode perceber que havia, dentro da gestão da UFPE, algo de autocensura”. Um deles, quando ainda não estava no cargo de diretor, aconteceu quando um release intitulado “Um novo golpe em curso?”, sobre o projeto Trilhas da Democracia, coordenado por ele, não foi publicado no boletim da universidade. O material tinha entrevistas com o presidente da CUT em Pernambuco, Paulo Rocha, e com o ex-deputado federal e professor da universidade Paulo Rubem Santiago.

“Quando fui à reitoria resolver outro problema, fui à assessoria e me foi informado que havia uma orientação para que esse tipo de tema não fosse divulgado pelo boletim de comunicação da UFPE”, relata, dizendo que, apesar da leitura negativa do fato, resolveu relevar.

O outro episódio aconteceu quando Mondaini já estava no cargo de diretor do NTVRU. “Me foi comunicado e sugerido que eu tivesse um diálogo com as professoras que coordenam o Fora da Curva (programa de rádio) para tornar o programa mais plural, menos explicitamente antibolsonarista”, conta, dizendo que não chegou a fazer o encaminhamento.

Para ele, a nota da UFPE sobre o caso do vídeo é “indecente”, pois procura responsabilizar aquele que sofreu o ato de censura por ter sofrido a censura. “É uma estratégia típica de responsabilizar quem sofre a violência por ter sofrido a violência”, além de “procurar tratar uma questão política no campo da personalização”, defende.

AUTOR
Foto Marco Zero Conteúdo
Marco Zero Conteúdo

É um coletivo de jornalismo investigativo que aposta em matérias aprofundadas, independentes e de interesse público.