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Dez pontos para entender o machismo estrutural no futebol espanhol

Marco Zero Conteúdo / 23/08/2023
treinador espanhol - homem branco, de cabelos curtos escuros com fios brancos, com barba e bigode ralos, de casaco preto, abraça jogadora que usa uniforme esportivo, ao mesmo tempo em que, com a mão esquerda, apalpa o seio direito da atleta.

Crédito: Captura do YouTube

por Flávio Carvalho*

“Afinal de contas, não tem cabimento” (Desesperar Jamais, música de Ivan Lins).

  1. O Presidente da Federação Espanhola de Futebol, Luís Rubiales, procedente das Ilhas Canárias é um ex-jogador de futebol (medíocre), que substituiu o anterior, corrupto, que permaneceu 25 anos no poder, apesar de todas as denúncias e questionamentos.
    Seu principal opositor, Javier Tebas, presidente da La Liga de Fútbol, está igualmente há décadas sentado no cargo, carregado de escândalos e denúncias. E é famoso por suas declarações políticas fascistas, como o apoio publicamente declarado a VOX (e ao privilegiado time do Real Madri).
  2. Além de não reconhecer o erro, Rubiales ordenou que a assessoria de comunicação da Federação preparasse nas pressas uma mentirosa declaração com a inventada conivência da jogadora “beijada”, ainda que ela houvesse demonstrado seu incômodo logo após o ato machista que deu a volta ao mundo.
  3. Rubiales ganha mais de 700 mil euros (sem contar os dinheiros não declarados, frutos de outros “contratos”, como a parceria com a empresa do ex-jogador do Barça, Gerard Piqué). E Rubiales ainda insiste em cobrar 3 mil Euros para pagar o aluguel da sua residência. Apesar de ser um organismo não público, recebe milhões de subvenções com recursos públicos, além das caras cotas das milhares de escolinhas – como a que eu, redator deste texto, pago a cada mês pela Escola de Futebol Base do meu filho. Conheço de perto, portanto, estes assuntos. E me envergonho, cada dia do machismo e racismo, ambos estruturais (assim como o fascismo) neste país.
  4. A Espanha, um dos líderes mundiais do futebol, destino da maioria dos principais brasileiros que jogam no exterior, país de onde surgiram os primeiros apoios e vacilos em relação aos casos de Dani Alves (hoje preso, mas logo apoiado pela imprensa esportiva espanhola machista) e de Robinho (hoje apoiado pelos antirracistas, mas logo insultado por esta mesma imprensa racista como sendo provocador e vitimista), está passando a gastar mais horas de jornais em: primeiro analisar – submeter a mais machismo – a postura, corporal inclusive, da jogadora; ofuscar o mérito coletivo pelo troféu; entrar na vida íntima das jogadoras como o caso dos relacionamentos homoafetivos de muitas delas.
  5. Este caso mediático esconde outro escândalo, de igual ou pior proporção. O coletivo de 15 jogadoras da elite do futebol feminino espanhol que se negaram a participar de todas as competições (mesmo sabendo que estariam entre as favoritas para ganhar esta Copa do Mundo Feminina), enquanto o atual treinador – apoiado por Rubiales e pelos meios de comunicação assumidamente machistas – seguir com suas práticas “duvidosas”. Espera-se para os próximos dias que venham à tona a revelação de porque estas jogadoras se negaram a ser treinadas por este homem.
  6. Ontem, Rubiales foi saudado com frieza pelo atual Presidente Pedro Sánchez, que declarou publicamente que o Presidente da Federação cometeu um gesto inaceitável. Ao que toda a imprensa espanhola perguntou, “Qual deles?”. Pois nesta mesma final do Mundial de Futebol Feminino, as câmeras de TV flagraram Rubiales comemorando com o típico gesto espanhol de agarrar-se o pênis por cima da calça, exibindo-o ao mundo. “Por mis huevos”, tal como se costuma dizer na Espanha. Ao seu lado, estava a Rainha Letícia e a princesa Leonor. Teria sido este o gesto inaceitável, mais que o “beijo roubado”?
  7. O machismo espanhol não nasceu casualmente. É fruto da mais longa ditadura europeia, a de Franco, o terceiro grande ditador europeu. Hitler foi assassinado ou suicidou-se para não ser preso. Mussolini foi enforcado em praça pública. Franco morreu de velhinho, com honras de chefe de estado e seu legado estrutural nunca foi absolutamente questionado nem desmontado pela inacabada “transición española”. O futebol foi uma arma fascista nas mãos do franquismo, durante décadas.
  8. Nada foi mais machista que a corrupta monarquia espanhola, cujo rei fugiu para a Arábia (abrigado por reis árabes milionários que o corromperam, supostamente), depois de escândalos de traição à Rainha. Uma monarquia medieval sustentada também por esta mesma grande mídia.
  9. A base da atual seleção espanhola de futebol feminino, tal como no futebol masculino que ganhou o último mundial para o país, é do Futebol Clube Barcelona, equipe que bateu o recorde mundial de público de um jogo de futebol feminino, no seu campo, o Camp Nou, lotado, em março do ano passado. A maioria das jogadoras que se negaram a jogar enquanto houvesse o atual machista treinador é do Barcelona, time que representa a cidade mais antiespanholista de toda a Espanha. Para entender-se esta última expressão há que conhecer o mínimo sobre o processo independentista na Catalunha.
  10. Diferentemente do trato ao futebol masculino, faltou até cerveja no ônibus que desfilava as campeãs mundiais nas ruas da Espanha. Viralizou o vídeo da jogadora do Barça, Alexia Putellas, duas vezes Bola de Ouro na sua categoria: “teremos que parar o ônibus e descer pra comprar mais cervejas no mercadinho?”.

Aquele abraço.

Barcelona, 23 de agosto de 2023

*Sociólogo e escritor pernambucano, residente na Espanha.

AUTOR
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Marco Zero Conteúdo

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