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Foto: Arquivo Pessoal
Na noite de 24 de janeiro de 2009, homens com os rostos cobertos invadiram uma casa na Praia Azul, em Pitimbu, na Paraíba. Procuravam pelo advogado e ativista Manoel Mattos. Quando o encontraram, desferiram dois tiros à queima roupa, com uma espingarda calibre 12. O crime poderia ter ficado sem resposta, como ficaram quase duas centenas de mortes na região antes do dele. Mas a execução do defensor dos direitos humanos foi emblemática: sociedade civil, políticos e organizações se uniram para que este crime não ficasse impune.
Para relembrar a trajetória de Manoel Mattos e marcar os dez anos de sua morte, familiares e amigos organizaram duas celebrações para esta quinta-feira (24). A primeira é um ato ecumênico pela manhã, a partir das 10h30, no assentamento que leva o nome dele em Itambé, na Zona da Mata. À noite, no Recife, a homenagem acontece na Igreja das Fronteiras, a partir das 19h, com uma missa.
Ex-vereador e ex-vice-prefeito do município de Itambé, quando morreu Manoel Mattos era vice-presidente do diretório estadual do Partido dos Trabalhadores e assessor parlamentar de Fernando Ferro, então deputado federal. Também era atuante na Rede de Advogados Populares.
“Manoel se tornou um mártir pela luta do direitos humanos em Pernambuco. Na advocacia popular, sua militância cumpriu um papel fundamental contra quem tentou calar os mais pobres”,
Manoel Moraes, advogado, ativista e professor de Direito
O assassinato dele estava ligado às denúncias que fez na CPI da Pistolagem, na Câmara dos Deputados, em Brasília, e em CPIs estaduais, na Paraíba e em Pernambuco, contra grupos de extermínio que atuavam na região da fronteira dos dois estados, principalmente nas cidades de Itambé, Timbaúba e Pedras de Fogo. Era a chamada “Fronteira do medo”.
Em agosto de 2000, um grupo de trabalho da Procuradoria Geral da Justiça do Estado do Pernambuco, denunciou à CPI da Pistolagem da Assembléia Legislativa do Estado de Pernambuco a ocorrência de mais de 100 homicídios de autoria desconhecida naquela região, no período de 1995 a 2000. Trinta e sete assassinatos foram praticados no município de Itambé. Todos impunes. Era uma terra de ninguém.
Como advogado atuante em Itambé, Manoel Mattos acompanhou de perto essa violência. Teve clientes mortos e ameaçados quando ganhavam ações trabalhistas ou disputas de terra contra latifundiários da região. “Era mais barato pagar a um pistoleiro do que pagar o que se devia na Justiça”, relembra o advogado Manoel Moraes, do Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social e amigo de longa data de Mattos.
“Aquela região tem o problema do latifúndio, do acesso à terra. As pessoas viviam à beira da miséria e a violência sempre foi um mecanismo do coronelismo. Mattos dizia para as pessoas que tivessem confiança na Justiça. E isso foi criando inimizades”, relembra.
A morte do advogado foi uma tragédia anunciada. Antes de ser friamente executado, Mattos já havia recebido diversas ameaças e escapado de atentados. Tudo foi levado à polícia, mas muito pouco foi feito. O primeiro atentado foi na manhã do dia 8 de outubro de 2001, durante prestação de contas do mandato do então vereador. Na própria Câmara Municipal de Itambé, Manoel Mattos foi alvo de pistoleiros, mas conseguiu escapar dos tiros. Duas semanas depois, ele quase foi atropelado pelo irmão do então prefeito. Nada aconteceu.
“Nenhuma justiça é capaz de reparar uma morte. Manoel Mattos vai ficar sempre presente na memória dos que lutam por uma sociedade mais justa e igualitária”
Marcelo Santa Cruz, advogado e defensor dos direitos humanos
Em 23 de setembro de 2002, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos/OEA indicou a adoção de medidas cautelares, solicitando que o Estado brasileiro concedesse proteção integral a Manoel Mattos, a ser realizada pela Polícia Federal, recomendando a realização de uma investigação séria e exaustiva para determinar os responsáveis pelas ameaças e atentados. No entanto,as medidas não foram integralmente cumpridas.
A mesma comissão internacional também pedia proteção para Luiz Tomé da Silva Filho, o Lula. Ex-integrante de um grupo de extermínio, Lula colaborava como testemunha da CPI da Pistolagem. O Brasil ignorou o pedido. Lula foi perseguido e sofreu um atentado em dezembro de 2002. Faleceu quatro meses depois, no Hospital da Restauração, sem nunca ter entrado no Programa Federal de Proteção a Vítimas e Testemunhas.
Além dos assassinatos de Manoel Mattos e Lula, outra testemunha da CPI da Pistolagem e do Narcotráfico da Assembleia Legislativa do Estado da Paraíba foi assassinada na época. Flávio Manoel da Silva foi executado a tiros em Pedra de Fogo, quatro dias após ter prestado depoimento à relatora especial da ONU sobre Execuções Sumárias, Arbitrárias ou Extrajudiciais. Uma das testemunhas da morte de Mattos também sofreu um atentado a bala no município de Itambé e, felizmente, sobreviveu.
Quando Manoel Mattos foi assassinado, então, a impunidade era uma realidade latente na região. Com a denúncia de policiais militares e civis participando de grupos de extermínio na Paraíba, as chances de que o caso fosse encerrado sem respostas era grande.
Seis anos após o crime, foram levados a julgamento pela Justiça Federal o sargento reformado Flávio Inácio Pereira; o ex-policial militar Cláudio Roberto Borges; José Nilson Borges; José da Silva Martins, o Zé Escrivão; e Sérgio Paulo da Silva.
Após dois dias de julgamento em abril de 2015, o júri popular condenou Flávio Inácio Pereira a 26 anos e José da Silva Martins a 25 anos em regime fechado por homicídio duplamente qualificado. A Justiça entendeu que o sargento Flávio era o mandante e José Martins o executor do crime. Os outros três acusados foram absolvidos por falta de provas. Em setembro de 2017, um dos absolvidos, o ex-PM Cláudio Roberto Borges foi morto a tiros em Itambé quando trabalhava como segurança de um vereador do município.
Para a mãe de Manoel Mattos, dona Nair Ávila, a justiça foi feita, mas poderia ter sido mais ampla. “Os executores foram presos e julgados. Mas os verdadeiros mandantes e os financiadores não foram. São pessoas ligadas à política, ao poder, uma classe mais abastada, aí o negócio complica. A investigação poderia ter sido maior, com a prisão dos financiadores dos crimes que Manoel denunciava”, diz. “Quando vi na televisão que Cláudio Roberto havia sido assassinado fiquei arrepiada. Não era o que eu queria. Minha vontade era que ele tivesse sido condenado e preso”.Até hoje ela se sente insegura ao visitar a região. “Da última vez que fui em Itambé pessoas me seguiram. Tenho mais dois filhos e netos, não quero que aconteça comigo o que aconteceu ao meu filho. É uma dor horrível perder um filho, uma saudade imensa”, diz.
“A luta pela justiça nunca acaba. A condenação foi importante porque trouxe um sentimento de justiça, quando imaginávamos que o caso seria esquecido, baseado no que víamos na região. Houve muitos entraves jurídicos, e a federalização foi emblemática para ter julgamento sem interferências”, acredita Manuella Mattos, filha do ativista.
Assim como o pai, a advocacia também foi o caminho profissional que Manuella escolheu. Recém-formada, agora luta para viabilizar recursos para o Centro Manoel Mattos, que busca oferecer assistência jurídica gratuita em Itambé. “Passamos por dificuldades de financiamento e estamosbatalhandorecursos para que o centrofuncione também com aulas para crianças”, conta.
A federalização da investigação e do julgamento dos acusados pela morte de Manoel Mattos foi pioneira: pela primeira vez, a morte de um ativista pelos direitos humanos era julgada na esfera federal. A federalização de assassinatos não é fácil na lei brasileira: nem o caso da execução da missionária Dorothy Stang, que teve repercussão internacional, conseguiu. Chamado de Incidente de Deslocamento de Competência, a possibilidade foi criada pela emenda constitucional 45/2004, para casos em que hágrave violação dos direitos humanos.
Para o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil em Pernambuco à época do julgamento, o advogado Henrique Mariano, um dos principais fatores que separam os dois casos é o empenho dos governadores dos estados envolvidos. “Os dois, tanto o da Paraíba (José Maranhão) quanto Eduardo Campos aqui em Pernambuco se mostraram favoráveis à federalização, o que não ocorreu no caso de Dorothy Stang no Pará”, conta.
A relatora da decisão favorável à federalização no Supremo Tribunal de Justiça foi a ministra Laurita Vaz. “Fomos pessoalmente fazer despachos várias vezes no STJ”, lembra Mariano. “A ministra fez um belíssimo voto pela federalização do caso, que foi acolhido pelos demais membros do STJ”, comenta. A íntegra do voto pode ser lida aqui.
Com a vitória para a transferência do caso para a Justiça Federal, o próximo passo foi o desaforamento da 2ª Vara Federal da Justiça Federal da Paraíba (JFPB) para julgamento na Justiça Federal de Pernambuco.
Além da pressão da OAB, dos governadores e do Ministério Público, a repercussão política da morte de Manoel Mattos também contribuiu para levar o caso para a Justiça Federal.
“Nós sabíamos que se fosse julgado na Paraíba as chances de condenação eram pequenas, porque o Judiciário de lá também era ameaçado. Lembro que o então ministro dos Direitos Humanos Paulo Vannuchi me ligou e perguntou: ‘Quem é esse Manoel?’, eu então mandei a foto que nós três havíamos tirado em um congresso em Brasília. Ele colocou a foto no gabinete dele, como um lembrete para a solução do caso”, conta o ex-vereador de Olinda, advogado e ativista Marcelo Santa Cruz, que era amigo próximo de Manoel Mattos e atuou como assistente da acusação no caso.
Em um momento político em que a defesa dos direitos humanos é questionada pelo próprio Governo Federal, relembrar a luta de Manoel Mattos é também um ato de resistência. “Aedição do decreto (pelo presidente Jair Bolsonaro, assinado no dia 15 de janeiro) que permite cada pessoa possuir quatro armas e que prioriza a área rural é um fator de risco também para quem atua na defesa dos direitos humanos. Os advogados de causas populares estão muito desprotegidos”, lamenta Marcelo Santa Cruz.
Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org