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Quem passou pelo Pontal de Maracaípe neste verão chuvoso ainda se deparou com o grotesco muro de coqueiros restringindo o acesso à praia. Desde maio de 2023, uma das praias mais bonitas de Pernambuco o muro de coqueiros com uma extensão de 576 metros é vigiado diuturnamente por câmeras e seguranças privados. Há um emaranhado de ações judiciais para que ele permaneça de pé, ainda que órgãos estaduais e federais já tenham condenado o muro citando uma série de danos não só ao meio ambiente, mas também aos visitantes, ao moradores e às pessoas que trabalham no pontal.
O capítulo mais recente dessa disputa judicial acontece no Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5). Depois que a Agência Estadual de Meio Ambiente (CPRH) retirou cerca de 100 metros do muro e, em menos de 24 horas o muro foi reconstruído, em 15 de janeiro, o advogado João Vita Fragoso, proprietário do terreno à beira-mar, entrou com um interdito proibitório – uma ação para proteger um bem, no caso, o muro – para impedir a CPRH de retirar novamente a muralha de troncos de coqueiros.
A 35ª Vara Federal então determinou a intimação das partes para explicações e a suspensão da derrubada do muro até decisão final sobre a ação. No final da semana passada, tanto João Vita Fragoso quanto a CPRH se manifestaram na Justiça. No processo, Fragoso, que advoga em causa própria, volta a argumentar que o muro protege contra a invasão de turistas e da erosão no Pontal de Maracaípe, “em virtude das intervenções antrópicas na margem direita do Rio Maracaípe (Enseadinha), em que houve colocação de pedras, desvio do curso do rio, aterro de mais de 19 ha de mangue”, diz trecho da argumentação.
Ainda que Fragoso afirme que o muro é para proteger a restinga, há uma quantidade enorme de areia da praia na base do muro e a equipe de Marco Zero flagrou uma barraca, com freezer, em cima de uma dessas “dunas” do muro, já do lado cercado. A reportagem entrou em contato com João Fragoso, mas não obteve resposta.
Nos autos, Fragoso, cuja família se diz dona de 80% do Pontal de Maracaípe, também afirma que sofre perseguição política por parte da CPRH, da procuradora-geral do Estado de Pernambuco, Bianca Ferreira Teixeira, da governadora Raquel Lyra e da vice-governadora Priscila Krause. Na noite da reconstrução de parte do muro que foi derrubado pela CPRH, a ação foi divulgada nas redes sociais pelo deputado federal Coronel Meira (PL), amplamente mais conhecido pelas ações violentas em protestos e partidas de futebol no Recife quando comandava o Batalhão de Choque do que por envolvimento em supostas causas ambientais.
Já a CPRH voltou a afirmar no processo o que tinha sido verificado na perícia técnica. Entre os muitos danos ao meio ambiente e a paisagem, a CPRH enfatiza que o muro impede o acesso a zonas mais elevadas da praia (restinga), utilizadas pelas tartarugas marinhas. Ao contrário do que Fragoso afirma, a CPRH diz que o muro interrompe o processo natural de transporte de sedimentos, o que pode levar a problemas como a erosão da linha da costa, já que o muro interfere no balanço sedimentar da praia.
Como todo frequentador percebe, a presença do muro e o seu trajeto irregular dificulta ou impede a passagem de pessoas pela faixa de praia em momentos de alturas de maré, afirma a CPRH. Há ainda outros pontos importantes, como o risco de poluição por conta dos sacos de ráfia utilizados na construção do muro, levando resíduos plásticos para a água ao se desfazerem e o desrespeito à legislação ambiental, já que a obra foi realizada em desacordo com a licença ambiental, ultrapassando os limites estabelecidos. Isso porque, em 2022, a CPRH autorizou que Fragoso construísse um muro com uma extensão de até 250 metros lineares e não permitia intervenções na faixa de praia – o muro foi construído na areia da praia e com mais que o dobro do autorizado.
Há nos autos do processo as perícias técnicas realizadas pela CPRH e pelo IBAMA, além de manifestação da Superintendência do Patrimônio da União – que afirma que a área onde o muro está é de seu domínio, classificada como terreno de marinha.
Para o advogado João Victor Venâncio, da Associação Fórum Suape Espaço Socioambiental, que acompanha o caso, não faz sentido o TRF cobrar uma nova perícia no local quando os principais órgãos ambientais já fizeram isso e já se posicionaram contra o muro. “É um caso que já teve estudos ambientais muito robustos. Há diagnósticos de três órgãos públicos que atestam que aquele muro é irregular por uma série de aspectos, tanto do ponto de vista dos danos ambientais que estão sendo produzidos, quanto do ponto de vista da ocupação irregular de uma área pública, de um bem de uso comum. Do nosso ponto de vista, não precisaria ser submetido ao Poder Judiciário para que o muro fosse derrubado”.
1. Danos à flora: A construção do muro afetou a vegetação rasteira de restinga, como gramíneas e salsa-da-praia. Houve supressão de vegetação nativa, que é uma área de preservação permanente. A vegetação de restinga desempenha um papel importante na estabilização de dunas e mangues.
2. Impacto na fauna: O muro impede o acesso de tartarugas marinhas à área de restinga, que é utilizada para a nidificação (construção de ‘ninhos’). Tartarugas marinhas são animais nativos e ameaçadas de extinção.
3. Poluição: Os sacos de ráfia utilizados na construção do muro se desfazem, causando poluição com resíduos plásticos, que se espalham pela praia, estuário e mangues.
4. Alteração da dinâmica costeira: A instalação do muro afeta a morfologia costeira, impactando a dinâmica natural da região e interrompendo o processo natural de transporte de sedimentos, o que pode levar a problemas como a erosão da linha da costa. O muro também impede a deposição de sedimentos na parte alta da praia, que é importante para evitar a erosão em épocas de ondas mais fortes.
5. Dificuldade de acesso: O muro dificulta ou impede a passagem de pessoas pela faixa de praia, especialmente em momentos de maré alta.
6. Desrespeito à legislação ambiental: A obra foi realizada em desacordo com a licença ambiental, ultrapassando os limites estabelecidos. O muro foi construído sem os devidos estudos técnicos e científicos e em área de preservação permanente. Além disso, a obra foi construída de forma amadora, sem a contratação de profissionais capacitados
7. Impacto na beleza cênica e no turismo: O muro afeta negativamente a beleza natural da paisagem, o que prejudica o turismo na região. O Pontal de Maracaípe é conhecido por sua beleza e atrai turistas.
8. Risco de acidentes: Os troncos de coqueiro que formam o muro podem se soltar, representando um risco de acidentes para trabalhadores e turistas. Há também o risco de ferimentos devido a pedaços de arame farpado presos aos troncos.
O que o Fórum Suape, em consonância com organizações de Maracaípe, denuncia é que há um excesso de judicialização em curso pela família Fragoso. “Formalmente, os órgãos que têm a competência para fazer esse tipo de estudo e atestaram essas irregularidades, possuem o poder de polícia para derrubar o muro. O que estamos vendo é o Judiciário, a partir da provocação e da articulação do João Fragoso e do (irmão dele) Marcílio Fragoso, buscando se imiscuir em algo que não é de sua competência”, diz João Victor. “O modo de atuação deles diante desse conflito vem sendo de criminalizar e judicializar ações contra todas as pessoas que estão se colocando como obstáculos”, destaca.
Ao acatar o pedido de Fragoso para a não derrubada do muro, o TRF-5 também afirmou que seria necessário uma perícia para ver se realmente há danos com o muro – ainda que três órgãos públicos já tenham feito isso. “Na prática, o Judiciário está dizendo que todos os estudos de órgãos públicos competentes para tanto não são suficientes. Que é preciso um perito – que vai ser um ente privado, indicado em juízo – para fazer um laudo e a partir dele é que a Justiça irá decidir. Com isso, o dano ambiental, que já foi constatado, está sendo prolongado porque o Poder Judiciário está basicamente negando ou, de alguma forma tratando como algo menor, os estudos que foram feitos por três órgãos públicos”, critica o advogado.
O advogado não sabe ao certo quanto tempo pode demorar para uma ação do tipo chegar a uma decisão final. “Um processo do tipo pode se arrastar porque a escolha da perícia pode ser um trâmite lento. E há dois aspectos fundamentais: um é que vai gerar um maior gasto para a área pública, com essa perícia privada. E o segundo elemento é que os danos ambientais desse cerco vão continuar a sumentar”, lamenta.
“A nossa expectativa é de que o Estado possa promover uma ação articulada entre os atores públicos que estão envolvidos no caso para sensibilizar o Poder Judiciário a reconhecer a legitimidade dos órgãos públicos que atestaram os crimes e os danos que estão sendo produzidos e que o muro seja retirado o mais rápido possível”, afirma João Victor.
No verão, com a praia cheia, é que o absurdo de um muro de coqueiros cortar o Pontal fica ainda mais evidente. Os visitantes têm horário certo para deixar o Pontal, pois, quando a maré sobe,ou se passa se arriscando pelo mar ou se pega uma jangada. E isso não ocorre por um avanço do mar pela areia ou porque houve erosão, como João Fragoso alegou nos autos.
O relatório do Ibama, de março de 2024, afirma que “a análise temporal de imagens de satélites realizada por este Instituto não identificou erosão costeira alegada pelo empreendedor como justificativa para a construção do muro no Pontal de Maracaípe”. A simples conferência das imagens de satélite disponibilizadas no Google Earth já mostram que o muro de coqueiros, ainda que fosse construído dez ou vinte anos atrás, já estaria na areia da praia e inclusive avançando pelo mar, a depender da maré.
Trabalhando há três anos numa das barracas que ficam rentes ao muro, Patrícia Dionísio diz que o muro prejudica os visitantes que vão passar o dia ou ver o por-do-sol. “O povo reclama que está feio. Tem cliente que chega e já vai embora, diz que não gostou da área. E tem cliente que vai embora porque tá com medo da maré encher e ficar ilhado”, conta.
Para Ana Paula Rocha, também barraqueira no Pontal, não há divisão na comunidade. Nos vídeos da reconstrução do muro era possível ver homens e rapazes com a camisa da associação dos jangadeiros do passeio para ver os cavalos-marinhos. “Mas a grande maioria da comunidade é contra o muro. Tem 15 pessoas ali que receberam um trocado para refazer o muro, falam que foi R$ 190. Muitos nem eram jangadeiros, eram parentes deles”, conta. “Estamos lutando por essa área, porque estamos vendo o que está acontecendo. A restinga dentro do muro está toda morta. O mangue lá dentro está ficando seco. Todo mundo que está acompanhando esse caso está se perguntando como esse homem (Fragoso) consegue fazer tudo isso, passar por cima de um órgão público. Como pode uma pessoa só mudar toda uma praia?”, questiona.
O muro de coqueiros é apenas a parte mais visível e ostensiva de um processo de restrições que ocorre a passos largos no Litoral Sul de Pernambuco. Com ruas estreitas – muitas da largura apenas de um carro – não há como estacionar o carro nas vias públicas do Pontal de Maracaípe. Por vezes, a paisagem se assemelha a presídios: várias propriedades da família Fragoso, como um haras à beira-mar, possuem muros altos com câmeras de segurança. A saída para o mar são estacionamentos privados que cobram R$ 30 por carro.
Para a praia do Pontal é necessário passar por dentro dos bares, estacionamentos ou pelo único acesso público de pedestres na beira-mar, que tem no seu final, na areia, um amontoado de pedras irregulares, dificultando a chegada ou saída para pessoas com mobilidade reduzida. Já na praia, depois de andar por 100 metros até o pontal, o visitante se depara com outro muro, de contenção, feito de pedras e concreto, que tem uma passagem por cima, onde o mar, na maré alta, ocupa toda a faixa de areia. Logo depois, o muro de coqueiros dá ares distópicos para a praia.
Mas não foi sempre assim. Em um passado nem tão distante, o Pontal de Maracaípe era um paraíso sem muros, onde até se acampava. Um grupo de amigos de Nossa Senhora do Ó frequenta há décadas as praias de Ipojuca e estavam indignados com as mudanças. “No mangue não tinha construções e hoje já tem casa construída lá dentro”, lamentou Lílian Nunes.
“Faz menos de um ano que viemos aqui e já notamos diferenças em relação à faixa de areia da praia. Eu acredito que a construção do muro acaba mudando o layout da praia como um todo, influenciando na mudança dos bancos de areia”, afirma o analista de sistemas Tomás Gomes. Essa mudança que ele notou está inclusive apontada como um dos riscos ambientais do muro no laudo do Ibama de 2024.
O advogado do Fórum Suape afirma que o Pontal de Maracaípe todo está sob cerco. “Quando a gente entra no mangue, vê como existe toda uma camada de violências, de ocupação de área de preservação permanente, de construção em área irregular, de instalação de câmara em área irregular, de circulação de segurança armada para intimidar pescadores e pescadoras, sobretudo mulheres que pescam ali na região e que se sentem ameaçadas. Há construções dentro da área de mangue, que são áreas de preservação permanente pelo Código Forestal, que deveriam ser preservadas. Tem mansão dentro da área de mangue. Existem muitos direitos que estão sendo violados. E é muito importante que essa atenção que está sendo dada para o muro se estenda para essas outras violências. A derrubada do muro é uma parte da reparação necessária, mas a superação do conflito em Maracaípe não vai se dar só com a derrubada dele”, alerta João Victor Venâncio.
Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org