Apoie o jornalismo independente de Pernambuco

Ajude a MZ com um PIX de qualquer valor para a MZ: chave CNPJ 28.660.021/0001-52

Distraídos venceremos

Inácio França / 05/08/2019

Foto: Camila Souza/GOVBA (Fotos Públicas)

Perdi a conta das vezes recebi mensagens, li postagens e escutei gente afirmando que a esquerda está caindo nas “distrações” ou se perdendo na “cortina de fumaça” criada por Bolsonaro e seu séquito de gente esquisita.

A tese da “esquerda distraída” não é monopólio de comentaristas de política e colunistas da mídia. Numa matéria da Folha de S. Paulo, há uns oito ou nove dias, várias lideranças de partidos de esquerda foram ouvidos sobre este mesmo mesmo. Praticamente todos praticaram um exercício público de autoflagelação. Uns mais, outros menos.

Talvez seja hora de jogar água nessa fogueira e confrontar alguns dos argumentos com que os autores desses artigos tentam encurralar o debate. Mesmo sem credenciais ou procuração para tanto, arriscarei fazê-lo.

Argumento 1: A esquerda foi pega de surpresa pela agressividade da retórica bolsonarista.

Sim, foi. Mas não foi só ela. A imprensa tradicional, que alimentou o monstro da antipolítica, também está perdida. Depois de anos construindo teses, uma parte da mídia recomeça a praticar o jornalismo, mas ainda não o bastante para anular os efeitos da máquina de mentiras que sustenta o ódio dos fãs do presidente.

E os velhos e comedidos políticos do centro e da direita? Será que esses não foram surpreendidos? Olhem só o que aconteceu com o PSDB, entregue de bandeja nas mãos do sujeito responsável pela maior traição da história política recente.

Além disso, a esquerda não tem a responsabilidade de, sozinha, combater as intenções ditatoriais da gangue de saqueadores instalada em Brasília. Erram os autoproclamados analistas “isentos” quando tentam debitar Bolsonaro na conta da esquerda e erram os esquerdistas que, por se acharem mais esquerdistas que os demais, querem impor um filtro para quem se dispõe a lutar contra os governistas.

Se Leonel Brizola, Lula e Miguel Arraes foram fundamentais para derrubar a ditadura, ela não teria caído de podre sem Teotônio Vilela, à direita, e Ulysses Guimarães e Tancredo Neves, ao centro.

Argumento 2: a esquerda está dividida.

Algum dia deixou de estar? Mesmo nos áureos tempos do governo Lula, os petistas que se consideravam mais radicais e puros arrumaram motivo para se afastar. Porém, bem menos do que poderiam estar após tantas derrotas. Se é verdade que Ciro Gomes não poupa o PT, também é verdade que não faltam bombeiros para manter as lideranças petistas afastadas do bate boca.

Aliás, PT e PDT não atuam juntos apenas no Congresso. No Ceará, continuam tão juntos e misturados que é difícil dizer se o governador petista Camilo Santana tem mais DNA da família Gomes ou do seu partido.

Não tenho dúvidas que as eleições municipais podem provocar novas rusgas, com palanques divididos em várias cidades, mas isso faz parte da tentativa de reposicionamento eleitoral de cada partido. É normalíssimo e nada parecido com o que aconteceu no governo Collor, que foi abraçado por Brizola, enquanto o PT permanecia na oposição.

Agora, se for para falar em divisão, vale registrar que os maiores grupos de mídia tradicional nunca estiveram tão divididos como no caso da Vaza Jato. Abril, Band e Folha para um lado; Globo, Estadão e as tevês caça-níquel para outro. Felizmente.

Argumento 3: a esquerda não tem projetos sustentáveis ou exequíveis.

Mesmo que os anos do governo Lula e de várias gestões bem avaliadas pelos estados e municípios provem o contrário, esse é um dos argumentos que atravessam os anos. Toma-se a parte (a falta de um projeto claro e de uma discussão mais profunda sobre a segurança pública, por exemplo) pelo todo.

Falta de projeto para o Brasil me parece mais uma verdade aplicável a Bolsonaro e sua turma, ainda que cada ministro tenha um monte de ideias excelentes para enriquecer a si mesmo e aos amigos.

Argumento 4: a esquerda perde tempo respondendo às bobagens presidenciais

Uma coisa é a massa de milhões de militantes, ativistas ou simples eleitores de esquerda que, usando as redes sociais, reagem com energia e fúria aos ataques de Bolsonaro à ciência, ao bom senso, às pessoas e à democracia. Outra coisa é a esquerda real, institucionalizada, que alimenta esse debate, mas também atua nos espaços institucionais como governos estaduais e parlamento.

Aqui, recorro à opinião alheia. Foi com alívio que li a editora do site de checagem ‘Aos Fatos’, Tai Nalon, escrever no twitter ”quando um presidente declara que não existe fome, que não há indícios sobre o assassinato de um líder indígena, ele usa da sua autoridade para dar materialidade às suas intenções. Ele está publicando cotidianamente um projeto bastante real de governo”. Eu não estava só, afinal.

O presidente, não tenho dúvidas disso, está mandando um recado claro: “matem, desmatem, atirem, expulsem, humilhem, espanquem. Eu conto com vocês, podem contar comigo”.

Se ninguém reagir às palavras, corremos o risco de normalizar o incentivo ao crime de Bolsonaro e de seus apoiadores.

Argumento 5: a esquerda não cuida do essencial

Repito o que disse lá em cima: essa responsabilidade não é apenas da esquerda.

Evitar a reforma da previdência não estava ao alcance da minoritária bancada dos partidos de esquerda. Apesar disso, o esforço de bastidores evitou, por exemplo, que a previdência fosse dado de mãos beijadas aos bancos, como queria Paulo Guedes, a troco de quê não se sabe, mas dá para imaginar.

A esquerda real, institucional, produziu também um fato inédito a partir da articulação entre sete governadores nordestinos filiados ao PT, PSB e PCdoB somados a um do MDB e outro do PSD. O Consórcio Nordeste é uma iniciativa que pode, a longo prazo, mudar o modelo de desenvolvimento do país, além de ser uma resposta imediata ao boicote do Governo Federal, que já chegou a barrar a entrada de R$ 45 milhões do Fundo Internacional para o Desenvolvimento Agrícola da ONU para a agricultura familiar no Ceará e Maranhão.

Argumento 6: é tudo estratégia de Bolsonaro

É preciso se decidir: ou ele é um asno que não consegue elaborar um pensamento mais complexo ou é um gênio da política. Não dá para ser as duas coisas ao mesmo tempo.

Pra encerrar e justificar o título tomado emprestado do livro de Paulo Leminski, uns versos do poeta curitibano (perceberam a ironia?):

Deve ocorrer em breve

uma brisa que leve

um jeito de chuva

à última branca de neve.

Até lá, observe-se

a mais estrita disciplina.

A sombra máxima

pode vir da luz mínima

AUTOR
Foto Inácio França
Inácio França

Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.