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Do 193 que não atendia às mangueiras sem água: os erros que quase destruíram o Mercado da Encruzilhada

Marco Zero Conteúdo / 04/09/2023
Vista aérea do Mercado da Encruzilhada, com parte do telhado, à direita da foto, destruído pelo fogo.

Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

por Arthur Maciel

Um dos mercados públicos mais frequentados do Recife. Um patrimônio cultural, histórico e arquitetônico que há quase um século faz parte da vida de moradores da zona norte. Uma referência para quem quer conhecer a culinária regional. Para muitos é como a segunda casa, assim como outros mercados recifenses. É onde trabalham, ganham o sustento da família, convivem com amigos, comem, fazem suas feiras e se divertem.

Toda essa tradição foi interrompida na manhã do domingo, 3 de setembro, quando um incêndio de grande proporção, talvez resultante do furto de cabos de cobre da instalação elétrica e de dados do mercado, como especularam alguns comerciantes, destruiu completamente 10 lojas e causou danos parciais a outras 20. Segundo a Defesa Civil do Recife, o laudo detalhado sobre danos e áreas que precisarão de obras deve ficar pronto em uma semana. Até lá, todo o mercado deve permanecer fechado para o público e para os comerciantes e trabalhadores.

O primeiro aviso de que o mercado estava sendo vandalizado, fios de cobre estavam sendo surrupiados diretamente da instalação das lojas, foi feito por volta das 7h10min. Um comerciante viu quando dois homens jovens subiram em uma mesa, na praça de alimentação popular, alcançaram a laje e cortaram alguns fios. Logo depois, houve um primeiro curto circuito que disparou vários disjuntores de energia.

Os ladrões desapareceram da vista do comerciante, que avisou aos colegas. Por volta das 8h30min um barulho constante passou a ser ouvido em cima de uma das cinco lojas de consertos de bolsas, cintos, malas, mochilas e sapatos da família Ferreira. Um negócio iniciado pelo sapateiro Sebastião Bernardo da Silva há 70 anos, hoje tocado por filhos e netos.

Fernando Ferreira, 39 anos, um dos netos de Sebastião, saiu em busca de socorro. Procurou a administração, ninguém na sala. De funcionários, só encontrou uma auxiliar de limpeza. Na antiga praça dos Caminhoneiros, hoje a Praça da Infância, reformada recentemente pela prefeitura, encontrou alguns guardas municipais, a quem pediu socorro para averiguar o que ocorria. Quando retornaram o fogo, já consumia o teto da loja.

Comerciantes e guardas municipais correram para tentar debelar o incêndio. A sequência dos fatos que se seguiram mais parecem uma comédia de erros, com potencial para gerar tragédias: o hidrante, quando acionado, pingava um parco fio de água; os extintores, trocados uma semana antes, estariam secos. Segundo os relatos apenas um funcionou.

Em um ambiente de tinta, cola e solventes, repleto de couro e tecido, o fogo ganhou força rapidamente. O que era um pequeno foco logo tomou conta de toda área central do mercado, destruindo completamente 10 lojas e danificando o dobro. Todo o telhado da área central do mercado veio abaixo.

O 193, telefone de emergência dos bombeiros simplesmente não dava sinal de vida, muito menos de socorro. Os comerciantes são unânimes em afirmar: apesar do quartel central dos Bombeiros ficar a aproximadamente um quilômetro do lugar, foram necessários mais de 40 minutos até que a primeira equipe de combate a incêndios chegasse ao local. “Os extintores não funcionaram, apenas um estava em operação e perceba que foram todos trocados há uma semana”, denuncia o comerciante Severino Cavalcanti, 57 Anos, dos quais 49 de vivência no mercado.

Cansado da esperar, o comerciante subiu em sua moto e foi pessoalmente ao quartel implorar ajuda. “Quando cheguei eles se assustaram pela forma que eu entrei. Não tinham ideia do que estava acontecendo. Ficaram olhando pra mim, espantados. Foi quando eu disse: o mercado tá se acabando em fogo. Somente nesse momento que eles saíram com dois caminhões”, relata.

Homem negro idoso, de camisa branca e bermuda rosa, ao lado de uma motocicleta, fotografado de corpo inteiro, de baixo para cima, com céu nublado ao fundo.

Severino Cavalcanti disse que foi ao quartel chamar os Bombeiros, pois 193 não atendia. Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

Mercadorias perdidas

Patrimônio cultural do recifense e certamente de todo pernambucano, o mercado público faz parte da história e da cultura do povo. Aos sábados, mercados como o da Encruzilhada, da Boa Vista, de São José, de Afogados, do Cordeiro, da Madalena, ficam repletos de consumidores. É um local tradicional das famílias que compram de produtos regionais a serviços como o da família Ferreira. E se reúnem nos bares e restaurantes para momentos de descontração e lazer.

“Se fosse num sábado podia ter ocorrido uma tragédia”, avalia o aposentado Antônio Ferreira Pinto, 75 anos, frequentador assíduo. É onde costuma fazer suas refeições, além de conversar com outros frequentadores e também comerciantes do lugar. As partidas de gamão são um dos atrativos para o aposentado, famoso jogador do tabuleiro.

Um dos parceiros é o comerciante José Gutemberg Nunes, 65 anos, sócio da loja Xodó do Sertão. “Têm queijos, manteiga, nata, produtos artesanais que se perdem sem refrigeração. E a gente não sabe nem como estão nossas mercadorias nem quando vamos poder retirar algo”, lamentava na manhã da segunda-feira, em frente ao mercado.

Paulatinamente, ao final da manhã, os comerciantes foram sendo convocados em pequenos grupos para retirar mercadorias perecíveis. Como a energia do mercado permanece desligada, carnes, peixes, crustáceos, queijos foram perdidos. A expectativa de alguns comerciantes era conseguir salvar parte da mercadoria.

“Espero poder, ao menos, botar gelo no freezer, retirar o que for possível. O prejuízo é incalculável. Eu trabalho de domingo a domingo, preciso pagar meu aluguel, minhas despesas”, lamenta a comerciante Maria José da Silva, 63 anos, 35 dos quais no mercado. “Perdi tudo que tinha, vou precisar ver as notas das mercadorias para saber o valor inicial do prejuízo”, afirma o proprietário de uma loja de rações para animais, Edson Monteiro, 56 anos.

Na contramão do que dizem os comerciantes, a Prefeitura do Recife afirma que “todo o sistema de prevenção a incêndios do Mercado da Encruzilhada está em perfeito estado de funcionamento. Os extintores tinham sido renovados no último dia 25 de agosto e a rede de hidrantes estava operacional, tanto que ambos estiveram à disposição do Corpo de Bombeiros para o trabalho de combate às chamas”.

No início da tarde desta segunda, o prefeito João Campos se reuniu com permissionários das lojas e anunciou um auxílio de R$ 3 mil para os comerciantes mais atingidos pelo desastre, e também a instalação de contêiners na área externa do mercado. O prefeito também anunciou a suspensão do “pagamento da taxa mensal por parte de todos os cerca de 200 permissionários do Mercado e, para os diretamente atingidos, até o final das obras. Não há data prevista para reabertura do mercado, pois vai depender da demolição da parte mais atingida. Além disso, a expectativa inicial é de que os trabalhos levem seis meses para que as obras de reforma sejam contratadas e concluídas.

A Secretaria de Defesa Social de Pernambuco investiga as denúncias de furto de cabos no lugar e as causas reais do incêndio.

A respeito da demora para a chegada do Corpo de Bombeiros, a MZ fez contato com o WhatApp do oficial que chefia a assessoria de Comunicação da corporação, mas não houve resposta até o momento de publicação desta reportagem.

Área central do mercado foi completamente destruída. Crédito: Rodolfo Loepert/PCR

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