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Crédito: MSF/Divulgação
Das 19 doenças tropicais consideradas negligenciadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil tem ocorrências de 14 delas. São doenças que têm pouca visibilidade, poucas opções de medicamentos e pouca pesquisa. Mas estão longe de serem doenças raras: de acordo com estimativas OMS, mais de 1,7 bilhão de pessoas no mundo podem estar sob risco dessas doenças, que registram 200 mil mortes por ano. No Brasil, a estimativa do Ministério da Saúde é de que há 30 milhões de pessoas sob risco. São doenças como Chagas, parasitoses intestinais, tracoma, leishmaniose, esquistossomose e hanseníase.
“Na verdade, são populações negligenciadas”, diz a médica Lúcia Brum, pós-graduada em Medicina Tropical pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e responsável médica das operações na América do Sul para a organização não governamental Médicos Sem Fronteiras. “As populações que padecem da maioria dessas doenças estão no sul global. Mercados que são de pouco interesse, ou com uma margem pequena de lucro para as big pharmas, os grandes laboratórios farmacêuticos. Os mais atingidos são os países que não têm, muitas vezes, os meios para investimento em pesquisa nacional, em soberania em tecnologia e ciência”, diz.
E o cenário para essas doenças é ainda mais temerário com as mudanças climáticas, que estão causando maior recorrência de eventos extremos. “O processo de desmatamento e as queimadas têm impacto direto na saúde. Ainda estamos entendendo a dimensão do impacto das mudanças climáticas na saúde. Mas já há consequências: hoje já se atribui 30% dos casos de dengue diretamente às mudanças climáticas causadas pelo homem. Antes, a dengue tinha um período definido de ocorrência, agora se estende praticamente por todo o ano. Estamos vendo padrões epidemiológicos alterados para todas as arboviroses ou picos de casos fora das épocas em que eram tradicionais”, alerta, lembrando que o Brasil vem batendo ano após ano os recordes de casos de dengue.
A especialista aponta também que lugares em que não havia ocorrência de doenças tropicais, já têm registrado casos de dengue, como o sul da Europa. “A amplitude térmica possibilitou a ocupação por parte desses vetores em áreas que não habitavam porque antes não havia condições climáticas propícias”, explica.
No dia 1º de agosto, às 9h, Lúcia Brum participa do debate Os impactos da emergência climática nas populações vulnerabilizadas no auditório da Fiocruz Pernambuco (Universidade Federal de Pernambuco – Campus da UFPE, Av. Prof. Moraes Rego, s/n – Cidade Universitária, Recife – PE). O evento vai debater quais são os impactos das emergências climáticas na saúde e quais são as soluções sustentáveis para enfrentar o problema. O acesso é gratuito, mediante inscrição pelo site: https://www.msf.org.br/transformacoes/recife/os-impactos-da-emergencia-climatica-nas-populacoes-vulnerabilizadas
As chamadas doenças tropicais negligenciadas incluem também condições como a picada de cobra, que causa mais de 80 mil amputações anualmente. “No dia que tiver cobras em grandes cidades europeias, pode ser que isso mude”, provoca Brum. “São patologias que ocorrem longe dos grandes centros de tomada de decisão. No caso do soro antiofídico houve investimentos, como a criação do Instituto Pasteur, para responder a demanda das então colônias, mas ainda há muito o que se aprimorar”, diz.
O Brasil, com instituições de pesquisa como a Fiocruz e o Instituto Butantan, ocupa um lugar de protagonismo na fabricação de remédios e soros para as doenças negligenciadas. No caso da esquistossomose, por exemplo, só a Biomanguinhos, da Fiocruz, fabrica o único medicamento disponível para a doença no Brasil, que é o praziquantel. “O Brasil tem buscado essa soberania nacional, tem muito a contribuir para o mundo. Mas precisamos rever várias questões que impactam a saúde dos brasileiros, como o uso de agrotóxicos. Estamos intoxicando e contaminando o lençol freático talvez mais rico do planeta, as maiores reservas de água doce. Há também a exploração de minas de forma descontrolada, com uma contaminação brutal de mercúrio, tudo isso tem um impacto enorme na saúde da população brasileira”, diz.
Em 1999, a organização Médicos Sem Fronteiras ganhou o Prêmio Nobel da Paz. O dinheiro do prêmio foi investido em uma iniciativa para a pesquisa e desenvolvimento de medicamentos para doenças negligenciadas, o DNDi. “No caso da doença do sono, por exemplo, mais comum na África, aproximadamente 15% dos pacientes que tratávamos morriam por conta da toxicidade do remédio. Hoje, temos alternativas muito melhores. No caso da doença de Chagas, quase metade dos pacientes têm reações aos remédios e é importante fazer um acompanhamento de perto”, diz Lúcia.
Lúcia Brum considera que essa emergência em saúde deve ser enfrentada de forma global. “Não existe um plano B, não existe uma segunda Terra. Temos que enfrentar juntos e o começo é pela educação. Precisamos preparar as nossas populações para uma mudança de pensamento e de paradigma da humanidade. É preciso fazer isso agora e não se pensar daqui a 50 anos. Em 2023, as ondas de calor na Europa aumentaram em 35% e houveram 35 mil mortes. É um problema de agora, para hoje”, diz.
Para isso, ela diz que é preciso formar profissionais sensibilizados, capazes de criar conexão com as comunidades vulneráveis. “Que olhem para o entorno, para fazer um diagnóstico que é para além do processo de saúde e de doença individual, é também ambiental e social”, acredita.
“Temos conseguido vários casos de sucesso, de medicamentos que foram inovadores, de fato. Agora mesmo, no Brasil, temos a tafenoquina, que é, em 60 anos, o primeiro medicamento aprovado no Brasil no combate a malária causada pelo Plasmodium vivax, tipo mais comum de malária no Brasil”, comemora Brum. O tratamento anterior levava de sete a até 21 dias de tratamento. Já a tafenoquina é de uso único, aumentando a aderência e facilitando o tratamento de populações em áreas de difícil acesso. “É um medicamento ainda não aprovado para bebê nem para gestantes, mas é um grande avanço no tratamento e o Brasil foi o primeiro país a usar essa medicação”, diz.
Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org