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Esquistossomose: os perigos presentes e futuros do declínio do praziquantel

Maria Carolina Santos / 06/01/2020

Praziquantel. Foto: MCS/MZC

Morador da Chapada Diamantina, cartão-postal do interior da Bahia, seu Josias foi levado para o posto de saúde de Lençóis com fraqueza e dores. Por duas vezes, foi diagnosticado com virose, mas não melhorava. Foi então ao hospital de Seabra, cidade com a maior população da Chapada.

Lá, recebeu uma notícia devastadora: um exame de ultrassom revelava um tumor no pâncreas. Transferido para Feira de Santana, a cirurgia para retirada do tumor foi infrutífera. Os médicos conseguiram retirar apenas uma amostra para a biópsia. Finalmente, o diagnóstico correto: não era um tumor, mas uma volumosa soma de ovos do parasita schistossoma mansoni.

Em Gravatá, agreste pernambucano, seu José viu a barriga crescer e a diarreia e intensas dores abdominais se tornarem rotineiras. Trabalhador rural, ficou impedido de exercer seu ofício. Quando finalmente foi ao médico, o diagnóstico veio rápido: esquistossomose, também chamada de barriga d’água ou xistose.

A infecção já havia atingido vários órgãos e provocado uma grave cirrose no fígado. Diagnosticado no começo deste ano, seu José passou quase seis meses sem o remédio indicado, que estava em falta na Vigilância Sanitária de Gravatá. Conseguiu o medicamento no Recife, mas precisou ficar internado por semanas em Caruaru. Anos e anos da presença do schistossoma no corpo produziram sequelas irreparáveis.

No mundo, se estima que 207 milhões de pessoas, em 76 países, estejam com esquistossomose. No Brasil, são cerca de oito milhões de infectados, em pelo menos 19 estados.

E há apenas um único remédio para o tratamento da esquistossomose. Se diagnosticada a tempo, basta uma dose única do medicamento praziquantel para que o paciente se livre do parasita.

Hoje, quem for infectado pelo schistossoma mansoni não vai conseguir comprar praziquantel na farmácia. Só e somente só o Farmanguinhos, laboratório da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), produz o remédio no Brasil. E vende tão somente só para o Ministério da Saúde, que o distribui para postos de saúde pelo país afora.

Como era de se prever, dois grandes problemas ameaçam o tratamento da doença: a falta do praziquantel no mercado e a resistência do protozoário ao remédio.

Vamos começar pelo primeiro. Antes, um pouco de história.


O praziquantel

O ano era 1975. O país, a Inglaterra. A criação do medicamento oxamniquina foi celebrada como uma grande inovação. Pela primeira vez, um remédio era realmente efetivo contra o protozoário esquistossoma mansoni. Seria um fenômeno de exportação: o laboratório Pfizer ganhou até um prêmio da rainha Elizabeth pelo desenvolvimento do medicamento.

A oxamniquina, claro, não seria muito usada na Inglaterra. A esquistossomose é uma doença da miséria. É provocada por um protozoário transmitido ao ser humano por um caramujo. É uma das poucas doenças que é estudada na escola primária: se puxar pela memória, você vai se lembrar do desenho do ciclo do schistossoma mansoni, com a água, o caramujo e o ser humano, seu principal hospedeiro.

Em 1980, mais uma revolução no combate à esquistossomose. Os laboratórios Bayer e Merck desenvolveram juntos o praziquantel. Assim como a oxamniquina, ele combatia e matava o protozoário. Ao contrário da oxamniquina, ele era barato. E também quase não dava reações adversas.

Em quase 40 anos de uso, o Brasil, a Nigéria e o Quênia são os maiores consumidores do praziquantel. Por ano, entre 600 e 800 mil doses do medicamento são produzidas pelo Farmanguinhos.

Como era mais barato que a oxamniquina – ambos igualmente eficientes, de acordo com vários estudos clínicos –, o praziquantel colocou o concorrente fora do mercado. Desde o começo dos anos 2000, a oxamniquina não é mais comercializada no Brasil. Soberano em um mercado de milhões de pessoas doentes, o praziquantel triunfou. No Brasil, moradores de áreas endêmicas recebiam o medicamento como profilaxia – prática encerrada pelo Ministério da Saúde em 2006, mas retomada pelo Estado de Pernambuco, com ganhos, em 2011.

Listado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como um medicamento essencial, o praziquantel perdeu a patente no começo dos anos 2000 e passou a ser fabricado no Brasil também pela Pfizer e pelo Farmanguinhos. Com a concorrência, o preço despencou ainda mais. A Merck desistiu da distribuição no Brasil – mas doa milhões de doses todos os anos para países da África. No ano passado, a Pfizer, que somente fabricava para vender ao governo brasileiro, também decidiu por fim à comercialização. A estrela dos anos 1980 não tinha mais a mesma demanda: se antes a esquistossomose era endêmica em 19 estados, hoje o é em apenas cinco deles.

Pernambuco é o estado brasileiro com o maior número de casos da doença, que atinge 2,35% da população. É endêmica em 101 municípios, com a maior concentração de casos em Palmares e cidades vizinhas. Antes do praziquantel, esse percentual beirava os 40%. Ao lado da Bahia, de Sergipe, Alagoas e Minas Gerais, é um dos cinco estados onde a esquistossomose ainda é endêmica. Em 2018, foram 3.767 novos casos em Pernambuco. De janeiro a setembro de 2019, mais 1.478, de acordo a Secretaria Estadual de Saúde.


Fabricação e distribuição

O schistosoma mansoni pode ser bem silencioso no corpo humano. Há casos documentados em que um mesmo protozoário permaneceu por mais de 20 anos vivo no corpo do hospedeiro. Os órgãos favoritos dele são o estômago e o fígado, mas pode por ovos até no cérebro e na medula. No estômago, faz corredores de ovos que viram varizes. No fígado, o dano mais frequente é a cirrose. É nesses casos em que a barriga do doente aumenta: os órgãos incham, em uma medida desesperada do corpo para expulsar o verme.

Farmanguinhos. Foto: Divulgação

Quando não tratada logo, a doença se torna crônica. Nesse estágio, além do praziquantel, uma série de medidas devem ser tomadas para evitar a morte do hospedeiro – desde medicação hepática, cirurgias e até mesmo transplante. Ter que esperar por meses pelo praziquantel pode significar aumento das sequelas.

No primeiro semestre de 2019, e até o começo de setembro, várias cidades de Pernambuco ficaram desabastecidas do medicamento. “Teve um período de desabastecimento porque o Ministério da Saúde não fez o repasse. Isso foi sanado, mas, mesmo assim, não recebemos ainda no quantitativo dos anos anteriores. Fomos informados que esse desabastecimento foi por conta da produção de Farmanguinhos”, conta a gestora de Vigilância da tuberculose, hanseníase e outras doenças negligenciadas da Secretaria de Saúde de Pernambuco, Rosimeyre Melo.

Diretor da Farmanguinhos, Jorge Mendonça credita as eventuais falta do medicamento na rede pública a problemas de logística. “Recentemente, o Ministério da Saúde mudou o centro de distribuição para São Paulo”, disse, em entrevista em setembro. Outro fator é que o remédio não fica nos estados: as prefeituras têm que solicitar, de acordo com a média de anos anteriores. Um terceiro motivo de atrasos é quando há demora na liberação alfandegária do princípio ativo do praziquantel, que é comprado da China. Seja por qual motivo for, a falta da medicação não é algo incomum na rede pública.

E, aqui, um parêntese sobre o praziquantel. A recomendação da OMS é de que o tratamento seja em dose única, com 40mg/60mg por quilo do paciente. A média é de 7 comprimidos por pessoa, que devem ser tomados um seguido do outro, com água. O medicamento é um comprimido grosso, com cerca de 1cm de espessura, nada palatável e extremamente amargo. Para manter o controle e evitar que os doentes deixem de tomar a dose completa, o recomendado é que o remédio seja tomado na frente de um agente de saúde.

Uma das pesquisas da Farmanguinhos, em parceria com o laboratório Merck, é uma versão infantil e também mais palatável do praziquantel. O diretor do laboratório calcula que o comprimido deve chegar ao mercado em até cinco anos.


Diagnóstico, reinfestação e resistência

Mais uma dificuldade da esquistossomose: o diagnóstico correto. Além de ser uma doença que pode ficar silenciosa por anos e pode atingir diversos órgãos, os exames diagnósticos não têm acompanhado as evoluções da doença.

Um dos maiores estudiosos da esquistossomose, o pesquisador titular da Fiocruz Naftale Katz foi o inventor, em 1980, do principal método de diagnóstico do parasita, o exame Kato/Katz. Ele diz que hoje o método, adotado pelo SUS e recomendado pela OMS, já está ficando ineficaz em alguns casos. “O exame foi criado em uma época em que as infestações eram por muito mais vermes. Como a doença diminuiu muito nessas décadas, as infestações hoje acontecem por uma quantidade menor. O método prevê o uso de três lâminas com 90mg cada. Às vezes não há ovos nessa quantidade de fezes, mas a pessoa está infectada”, alerta o especialista.

Ao contrário de vírus e bactérias, os protozoários são criaturas mais preguiçosas na evolução para reagir a substâncias letais. É por conta dessa lentidão que o praziquantel ainda se mantém altamente eficiente por 40 anos, enquanto alguns antibióticos triunfaram e caíram neste mesmo período.

Não há, ainda, vacina contra a esquistossomose. O corpo humano não tem uma defesa natural contra o protozoário. Se o praziquantel se mostrou eficiente no combate ao schistossoma dentro do corpo humano, as ações de combate ambiental não têm tido a mesma taxa de eficiência. Moluscicidas têm se mostrado ineficazes contra o caramujo – ou tão agressivos que destroem toda a flora e fauna dos cursos d’água.

Mesmo quando é eficaz, o praziquantel funciona até certo ponto. Em áreas endêmicas, não é incomum que o paciente volte a ter a infecção por mais de uma vez. A única forma de erradicar a doença é com saneamento básico adequado. “Sem saneamento, não há muito o que se fazer para realmente erradicar a esquistossomose”, diz Naftale Katz.

A falta de saneamento dissemina uma séria de velhas e novas doenças, como a dengue, a chikungunha, a zika. São doenças, enfim, da miséria. Não é, portanto, coincidência que regiões com menor índice de saneamento sejam as com maiores índices da doença.

Com as reinfestações, o praziquantel pode, agora mais cedo do que tarde, se tornar ineficiente contra o parasita. O primeiro relato de resistência ao praziquantel foi registrado em 1994, em laboratório. Desde então, alguns estudos já demonstraram a existência de cepas de schistossoma mansoni resistentes ou tolerantes – quando são necessárias doses duas ou três vezes maiores que a habitual – ao praziquantel, tanto no campo quanto em laboratório.

A descoberta de novos medicamentos que combatam a esquistossomose é uma necessidade. Uma pesquisa conjunta da Universidade Federal do Piauí (UFPI) e da Universidade de São Paulo (USP) foi bem sucedida contra o schistossoma ao usar um extrato das folhas de jaborandi. Mais recentemente, o Núcleo de Pesquisa em Doenças Negligenciadas da Universidade Guarulhos conseguiu reduzir em mais de 80% a carga parasitária em camundongos infectados usando o anti-inflamatório ácido mefenâmico, comumente receitado para cólica menstrual. Nenhum dos dois métodos foi ainda testado em humanos, um processo que pode levar anos. Até lá, o praziquantel continua como o único tratamento.

AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Ávida leitora de romances, gosta de escrever sobre tecnologia, política e cultura. Contato: carolsantos@gmail.com