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É proibido proibir: (des)caminhos da linguagem não-binária no Brasil

Marco Zero Conteúdo / 13/06/2023
Seis bandeiras do arco-íris hasteadas, emparelhadas uma ao lado da outra, tremulando sob céu nublado.

Crédito: Pixabay/Filmbetrachter

por Iran Melo* e Gustavo Paraíso**

E não é que já chegamos ao meio de junho? Mês dedicado ao orgulho LGBTQIAPN+, onde ativistas ao redor do mundo promovem eventos e intensificam reivindicações de pautas que visibilizam às problemáticas vivenciadas por essa população. E com o intuito de engrossar esse caldo, queremos trazer informações e conteúdos que nos ajudem a tratar a temática da linguagem não-binária, tão combatida em desfavor dessa população. Te convidamos a uma reflexão sobre os dados que iremos abordar em seguida. Vamos nessa?

Falar sobre o uso da linguagem não-binária é iniciar um discurso disruptivo sobre os modelos vigentes na sociedade contemporânea. Porém vale destacar alguns dados para situar esse tema. Afinal, não podemos tratar somente de uma questão gramatical ou semântica de seu uso, e sim das perspectivas políticas e socias que atravessam esse assunto, visto que linguagem é poder, todo discurso é político e não é possível nos isentarmos desses fatos.

Pensar em uma concepção de um mundo não binário é romper as perspectivas de uma sociedade cis-heteronormativa, onde pensar fora desse contexto é assumir um posicionamento disruptivo frente à nossa sociedade. Devemos ainda ter em mente que, ao legitimarmos corpos que não se adequam às normas, estamos colaborando para que mais pessoas tenham a sua subjetividade reconhecida e com isso possam existir através da e na linguagem. E colaborando, sobretudo, para construirmos uma visão de mundo mais diversa e mais inclusiva.

No ano de 2022, o Brasil foi o país com mais da metade de homicídios acometidos a pessoas transgênero no mundo, deacordo com dados coletados em 2021 pela agência de pesquisa internacional Trans Respect. Ainda no mesmo ano, de acordo o relatório publicado pelo Grupo Gay da Bahia (GGB), organização atuante em políticas públicas no combate à LGBTfobia, Pernambuco foi o quinto lugar, entre os estados brasileiros, e o segundo entre os nordestinos, que mais matam pela intolerância de gênero e sexualidade. Além disso, o Brasil continua, pelo décimo quarto ano consecutivo, como o país que mais extermina a população trans no mundo – dados obtidos a partir do projeto Trans Murder Monitoring (TMM), da rede Transgender Europe, que contabilizou a notificação de 96 assassinatos de pessoas trans no Brasil, no período de outubro de 2021 a setembro de 2022.

Tendo consciência das atrocidades que a população LGBTQIAPN+ é submetida, e sabendo que a linguagem é parte importante nesse processo de abjetificação, observamos a necessidade dessa população em criar mecanismos que contemplem perspectivas de novas formas de linguagem que não se associem à norma padrão, uma neolinguagem, ou o que aqui chamamos de linguagem não-binária (LNB). Ela vem a ser toda prática discursiva que tem o intuito de representação de pessoas que não se comprometem com uma produção de sentido dualista e exclusivista no binário homem x mulher.

Com o decorrer dessas informações, podemos iniciar uma discussão sobre a LNB e a sua proibição de uso, já que tramitam na câmara federal, nas assembleias estaduais e também em diversas câmaras municipais, projetos de leis que promovem sua proibição.

Na prática, isso é mais um ingrediente nas violências sobre o existir das pessoas de gêneros dissidentes. Certamente não seria uma lei que impediria a mudança linguística, mas, sem dúvida, ela colaboraria com o retrocesso social legitimado por representantes de uma política conservadora, ainda vigente no Brasil.

Um fato que devemos apontar é que não se trata de uma tentativa de imposição sobre o seu uso, e sim primeiramente, sobre os dados que decorrem de sua proibição e as violências que esses discursos trazem para uma população já tão, infelizmente, violentada em aspectos e vivências que devem ser ainda sinalizadas para serem combatidas por todos nós.

Na pesquisa ‘Linguagem não-binária no Brasil: disputas e tensões em discursos legislativos’, produzida por nós do Núcleo de Estudos Queer e Decoloniais (NuQueer) da UFRPE, identificamos que atualmente tramitam 15 PLs na câmara federal e 48 nas assembleias dos estados de nossa federação.

  • O primeiro PL com essa temática foi apresentado em 2014 pelo deputado federal do estado da Bahia Erivelton Santana (Partido Social Cristão/PSC). Já o projeto mais recente começou a tramitar em 13 de fevereiro deste ano na Assembleia Legislativa do Amazonas, sob autoria da deputada Débora Menezes (Partido Liberal/PL).
  • 2021, período em que o Brasil ainda enfrentava os altos índices da pandemia de covid-19 e estava sob o governo de Jair Bolsonaro, foi o ano com o maior número de projetos apresentados, nove federais e 24 estaduais.
  • O estado representante da maior quantidade de projetos é o Rio de Janeiro (8), seguido pelo Distrito Federal (7).
  • Pará, Amapá e Tocantins são os únicos estados que não têm PL representado por parlamentares.
  • Todos os partidos responsáveis pelos PLs são de direita, sendo o Partido Liberal/PL, ao qual está vinculado o ex-presidente Jair Bolsonaro, o que mais propôs projetos (17), 27% do total de todos os PLs existentes.
  • Predominantemente, os projetos impedem a linguagem não-binária argumentando que ela prejudica o ensino do português brasileiro, bem como ameaça o uso de nosso idioma.

Verificando as ementas desses PLs podemos salientar que em seu texto sempre se referem à defesa da norma culta ou das regras gramaticais da língua portuguesa.

Um ponto importante para refletirmos é que o uso da LNB, suas possíveis regras e formas de flexionar não se darão por regras impositivas. Temos a consciência que uma língua se modifica para se adequar ao uso de seus usuários. E como se dará essa modificação só o tempo nos permitirá observar como a nossa sociedade irá conceber essa transformação.

A problematização que engloba as questões da linguagem é uma situação concreta na nossa sociedade, e a afetação dessa situação não é uma questão somente da população LGBTQIAPN+, afinal não é uma luta dessa população versus o mundo heterossexual, e sim uma busca de se criar condições concretas do direito de existir e de se reconfigurar as possibilidades de formas de vida diversas dessa ordem dualista de nossa sociedade.

Portanto, o nosso papel como linguistas é demonstrar que a proibição dessas novas possibilidades de uso da língua recaem em tentativas de apagamento e contínuo extermínios dessas pessoas que subvertem às normas, pois as novas possibilidades de se nomear e de se ver como agente social na contemporaneidade deve fazer parte de uma sociedade justa e plural, que abarca a se adaptar ao novo, possibilitando compreender as infinitas possibilidades de existir.

*Iran Melo é doutor em Linguística pela USP, professor de Análise Crítica do Discurso e Linguística Queer (UFRPE/UFPE) e consultor especializado em Escrita e Educação Inclusiva de Gênero.

**Gustavo Paraíso é graduado em Comunicação Social pela UFPB e graduando em Letras pela UFRPE, integra o Núcleo de Estudos Queer e Decoloniais (NuQueer) na condição de pesquisador em Linguística pelo CNPq.

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