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Crédito: Alice Mafra/Pref. de Olinda
Há 20 meses o maracatu Leão Tucano não realizava um ensaio, uma reunião, nada. No carnaval passado, se espalhou o boato de que se um caboclo de lança aparecesse nas ruas de Nazaré da Mata, seria preso. Nesta semana, houve o primeiro ensaio de retorno. Mas o carnaval de 2022 ainda é uma incógnita. Seu Manoel da Silva, presidente do maracatu desde a fundação, há 20 anos, fica num pé e no outro sobre se deve ou não ir para as ruas. Tem receio que a pandemia do coronavírus piore, mas não esconde a ansiedade. “Se o governador disser que pode, vamos pra rua”, diz. “Vamos aguardar o que ele vai dizer. Eu tô pronto”, afirma.
A mistura de ansiedade pela folia e o receio de um novo pico pandêmico que seu Manoel expressa é compartilhada por outros carnavalescos. Uns mais para um lado, outros mais para o outro. O tradicionalíssimo Homem da Meia-Noite já definiu: não sai no ano que vem. O Galo da Madrugada, que diz arrastar um milhão de pessoas no sábado de carnaval, já definiu até o tema do desfile (“Viva a vida, viva o frevo”), a camisa oficial e os homenageados. O presidente do clube disse estar “95% confiante” de que o Galo vai sair.
Recife e Olinda ainda não divulgaram se vão ou não liberar a folia. Na coletiva de imprensa mais recente, ao ser perguntado pela enésima vez sobre as condições para a liberação da maior festa do estado, o secretário estadual de saúde André Longo jogou a decisão para janeiro. “O melhor amigo do vírus é o entretenimento desorganizado”, alertou.
Enquanto o governo não se decide, a pressão econômica vai se avolumando. Camarotes anunciam vendas para o Galo e grandes festas privadas já estão com ingressos esgotados.
Trabalhando na produção de três grupos de maracatu da Zona da Mata, Elex Miguel vê o carnaval daqui a pouco mais de dois meses como um perigo. Isso porque ele também é técnico de saúde e trabalhou na linha de frente durante a pandemia. “Espero que não libere. A gente da saúde sofreu muito nessa pandemia. Muita gente morreu, ficou com sequelas. Mas eu acredito que vão acabar liberando, é muita pressão”, diz. Mesmo com a terceira dose da vacina, ele tem evitado os ensaios que já enchem as cidades da Zona da Mata. “Ninguém mais usa máscara”, lamenta.
Elex faz coro com as críticas à uma possível liberação de festas privadas e a proibição das festas públicas – a exemplo do que vai ocorrer no réveillon do Recife. “O que está acontecendo em Pernambuco é festa para rico. Os pobres ficam sem nada em nome de um falso controle: ninguém pede cartão de vacinação em festa ou show. É uma desculpa, para quem está de fora achar que é algo seguro. Nem máscara na entrada estão exigindo mais”, reclama Elex.
Deixando de lado a questão econômica, a permissão de festas privadas com milhares de pessoas – atualmente, festas com até 7,5 mil pessoas estão permitidas em Pernambuco – não faz sentido do ponto de vista da prevenção ao vírus. “Liberar festas em locais fechados e não liberar em lugar aberto não faz sentido algum. É incoerente: o risco de transmissão em locais fechados é muito maior, o ar fica acumulado, as pessoas respiram e podem se infectar. Mas ao mesmo tempo estamos falando de festas. Não dá para controlar. Festa é diversão. Deveríamos agora tentar reduzir a taxa de transmissão. Os testes são importantes, precisamos testar mais”, recomenda o cientista de dados Isaac Schrarstzhaupt, coordenador da Rede Análise Covid-19.
Uma analogia que ele faz é que estamos em um cabo de guerra. “De um lado, as vacinas fazendo força para baixar óbitos, hospitalizações e reduzir também a transmissão. E do outro lado, o vírus, tentando contaminar, achar uma brecha. Se a gente faz festas estamos ajudando o vírus. A nossa fiscalização é falha, não conseguimos garantir que todo mundo em uma festa vai estar vacinado. É melhor prevenir”, acredita Isaac, que alerta para a desigualdade vacinal dentro do Brasil.
Na última entrevista de Isaac para a Marco Zero ele fez uma comparação, que serve para lembrar que, mesmo distantes do traumático pico de quase 4 mil mortes por dia, não estamos em tempos normais. Antes do novo coronavírus, em 2019, o Brasil teve 5 mil mortes por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), de acordo com o Sistema de Informação da Vigilância Epidemiológica da Gripe (Sivep). Isso dá uma média de 14 mortes por dia – no país todo. Hoje, a média móvel de mortes está em 194 por dia.
Mesmo com a pressão econômica, a fadiga e o desejo de parte da população, o sanitarista e professor da Universidade de São Paulo (USP), Gonzalo Vecina, que já presidiu o Plano Nacional de Imunizações (PNI), diz que não é certeza de que as grandes cidades vão mesmo permitir algum tipo de carnaval. “As autoridades públicas, em um ano eleitoral, sabem que se os hospitais entrarem em colapso, eles vão pagar com os seus pescoços nessa eleição”, disse em conversa do programa InfoVacina, da Agência Bori, do qual esta repórter participa.
O cancelamento do carnaval de 2021 é um feito histórico inédito. Durante a pandemia da gripe espanhola tentaram cancelar o carnaval no Brasil. Mas foi em vão: o povo foi às ruas. Antes, em 1912, houve outra tentativa. O Barão do Rio Branco faleceu uma semana antes da folia e os clubes, junto com algumas prefeituras, adiaram as festas para o domingo de Páscoa. Não funcionou. Teve folia na rua com o povo cantando “nesse ano a dose é para leão/dois carnavais pela morte do barão”. Passada a quaresma, teve mais carnaval, dessa vez nos clubes.
Quem traz essas histórias é o jornalista e pesquisador do carnaval Leonardo Dantas. Ele está cético quanto a mais um cancelamento. “Fazer só festa privada não é carnaval: é passar manteiga em focinho de gato”, debocha. “Se libera uma festa para 10 mil pessoas, que libere logo as ruas”, diz ele. “Se o cancelamento for por uma medida profilática, para evitar multidões, certo. Mas que não seja por luto. Nem que se adie. Tudo tem seu tempo. Carnaval bom não é o do passado, nem o do futuro. Carnaval bom é o de hoje”, acredita Leonardo.
O cientista Jones Albuquerque, do Instituto de Redução de Riscos e Desastres (IRRD), avalia que a pandemia faz repensar a vida em sociedade. “O vírus mostrou que não dá mais para viver todo mundo juntinho, todo mundo indo trabalhar na mesma hora, pegando ônibus na mesma hora, ficando preso em uma sala fechada por horas e horas. E talvez isso também sirva para o carnaval”, diz. E propõe um carnaval bem diferente. “Talvez um dia para o maracatu, um dia para os caboclinhos…”. Blocos como o Galo da Madrugada, nem pensar.
Para o pesquisador da Fiocruz Pernambuco Rafael Dhalia não é hora para se falar sobre nenhum tipo de aglomeração. “Diante da nova onda que estamos observando em alguns países da Europa e nos Estados Unidos, sustentada principalmente pelos negacionistas [que rejeitam a ciência e as vacinas] e pela flexibilização das medidas não farmacológicas [como uso de máscara e distanciamento social], não existe um cenário sequer aceitável para aglomerações como réveillon e carnaval, quanto mais ideal”, alerta.
Com a desigualdade vacinal entre os países e a ameaça constante de novas variantes, a expectativa é de que ainda demore um bom tempo até a Organização Mundial da Saúde declarar o fim da pandemia do novo coronavírus. “Com certeza teremos de esperar passar a fase aguda da pandemia, que irá requerer esforços mundiais para que as vacinas cheguem de forma equalitária para todos os países, principalmente para aqueles que não têm condições econômicas de comprar os imunizantes”, diz Dhalia.
Jones Albuquerque cita um artigo recente que saiu no The Economist, assinado por vários cientistas, que joga esse provável fim da pandemia para 2026. Seria a extinção, então, do nosso carnaval?
Para Leonardo Dantas, essa hipótese é impensável. “O carnaval está impregnado na nossa cultura. Desde os tempos do entrudo, que aqui remota ao século XVI”, diz. “Carnaval só acaba para quem morre”, arremata.
O infectologista Bruno Ishigami tem uma visão mais flexível, ainda que desaconselhe a folia do próximo ano. “Acho muito improvável que tenhamos condições sanitárias para ter um carnaval em fevereiro. Mas também não acho que devemos esperar até a pandemia acabar no mundo todo. Temos que avaliar cenário a cenário, os indicadores de cada estado, de cada região”, diz.
Bruno cita os principais fatores para que uma festa massiva como o carnaval possa volta a acontecer. “Temos que ter uma quantidade de novos casos muito baixa. E isso testando muito. Temos que avaliar também a quantidade novos óbitos, que deve ser cada vez mais baixa, e o percentual da população vacinada”, enumera. “Na vacinação, temos que ter, no mínimo, 90% de toda população vacinada. Os dados oficiais colocam o percentual da população elegível, mas isso não faz sentido porque o vírus se transmite para todo mundo”, explica.
Com uma quantidade impressionante de mutações, sendo mais de 30 na proteína spike, a “chave” para entrar no corpo humano, a variante Ômicron tem rendido manchetes que vão desde “alerta máximo” até “presente de Natal”, como falou o epidemiologista Karl Lauterbach, futuro ministro da Saúde da Alemanha, ao citar uma suposta altíssima transmissibilidade aliado a uma também suposta baixíssima mortalidade, ainda que óbitos pela nova variante não tenham sido registrados na Europa.
Por ora, é preciso cautela. “Uma variante não é nada mais que uma variação do vírus que foi originalmente identificado. Se essa variante for muito diferente ela pode sim tem um comportamento diferente e mudar padrões de transmissibilidade e virulência. Por exemplo, a variante Gama (que é uma variante mais transmissível) atingiu o Brasil em um momento de baixa cobertura vacinal e isso resultou nos altos índices de Covid-19 no país. Hoje, estamos com a vacinação acelerada e, com isso, números mais baixos de novos casos de COVID-19 no país. Certamente um melhor cenário para enfrentar uma possível ameaça”, diz a virologista Lorena Chaves, pesquisadora da universidade Emory Atlanta, nos Estados Unidos.
Ela diz que três questões indispensáveis sobre a Ômicron ainda precisam ser respondidas. “Primeiro, se é uma variante mais transmissível; se é uma variante mais virulenta; e, em terceiro, se há potencial de escape imunológico, levando a necessidade de readequação das vacinas”, diz. “Só com o tempo vamos conseguir responder essas questões. Até lá, devemos apostar nas medidas preventivas e completar o esquema vacinal com a dose de reforço assim que possível”, recomenda.
Ainda que essas respostas permaneçam em aberto, é pouco provável que outra onda tão mortal quanto a da Gama aconteça com a Ômicron. “Eu não acredito, com os dados que temos até o momento, que vamos viver outra tragédia desta magnitude. Primeiro porque até o momento nenhuma das variantes, antes do surgimento da Ômicron, eram totalmente resistentes as vacinas de Covid-19. Embora o perfil de mutações da Ômicron seja bem mais preocupante, os dados que estão surgindo ainda não indicam que as vacinas não sejam capazes de, pelo menos, evitar que a infecção pelo Sars-Cov-2 evolua para as formas mais severas”, acredita Rafael Dhalia.
Ele afirma que já há consenso no meio científico de que a Ômicron tem, na teoria, todos os elementos necessários para se disseminar mais rapidamente pelo mundo. “E de que as vacinas sejam menos eficientes contra ela, em relação às outras cepas de preocupação como a Alfa, Beta, Delta e Gama. Não é à toa que vários produtores como Pfizer, Moderna e AstraZeneca tenham anunciado que já estão trabalhando em novas formulações vacinais, mais específicas, para combater a infecção pela Ômicron. Diria que não acredito que teremos um pico pior do que observado em relação à gama, mas que para que isso aconteça devemos continuar acelerando o ritmo de vacinação, inclusive de doses de reforço, e entender de uma vez por todas que não é hora de abandonar as máscaras e nem de promover aglomeração”, alerta.
Uma nova esperança é que os remédios feitos especialmente contra o Sars-Cov-2, e que devem chegar ao mercado brasileiro nos próximos meses, tenham algum sucesso. Há dez dias, a farmacêutica norte-americana MSD solicitou à Anvisa a autorização para o uso emergencial do comprimido antiviral molnupiravir. No mês passado, a Pfizer anunciou que, em testes, o antiviral Paxlovid reduziu em até 89% os casos graves.
São promissores, mas para o infectologista Bruno Ishigami, eles não vão realmente mudar o jogo contra a covid-19 – como as vacinas estão fazendo. “De uma perspectiva da saúde pública, do SUS, é um tratamento muito caro. Temos muitas vacinas disponíveis, que dão uma grande contribuição na baixa de óbitos e casos graves. É muito mais custo-benefício investir em campanhas de vacinação mais robustas e estruturar melhor as equipes de saúde da família para fazer essas campanhas. É maravilhoso que esses medicamentos estejam surgindo e vão ter utilidade para os pacientes que ficam graves, mesmo tomando vacina. Mas não vão fazer grande diferença na pandemia. O que fez e está fazendo é a vacinação”, diz.
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Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org