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Elefante de Olinda vai à Justiça para reaver imóvel ocupado por ONG investigada pela polícia

Maria Carolina Santos / 02/09/2025
A foto mostra uma rua urbana com prédios de vários andares em arquitetura antiga, com sacadas e fachadas em tons claros e detalhes ornamentais sutis. No centro da via, há uma van escura estacionada, e ao fundo a rua se eleva em uma ladeira que dá profundidade à cena. As calçadas aparecem desgastadas, com sinais de uso ou reparos. A iluminação é de um dia claro, com luz natural incidindo sobre os edifícios. Também se observam fios elétricos expostos e postes que reforçam o ambiente típico de uma área urbana.

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

O Clube Carnavalesco Misto Elefante de Olinda entrou com uma ação na 4ª Vara Cível da Comarca de Olinda pela reintegração de posse de dois imóveis localizados na avenida Sigismundo Gonçalves, no Carmo. Os imóveis foram cedidos ao clube pelo Governo do Estado por meio da Lei nº 17.987/2022 e serão utilizados como sede do bloco, que foi fundado em 1952 e é Patrimônio Vivo de Pernambuco. O Elefante ainda não conseguiu entrar nos imóveis porque ambos se encontram ocupados.

A ação judicial foi protocolada na segunda-feira da semana passada (25). De acordo com nota das advogadas Cândida Carina Pereira Barbosa e Luciana dos Santos Bezerra, contratadas pelo clube, a medida foi necessária diante da ocupação irregular, mesmo após notificação dos invasores para saída voluntária. “A ação tem por objetivo assegurar o cumprimento da lei e a preservação de um importante conjunto arquitetônico e cultural, que integra o patrimônio do Sítio Histórico de Olinda. Todas as providências cabíveis já foram adotadas, e a entidade encontra-se no aguardo da apreciação do Poder Judiciário”, diz a nota.

Um dos imóveis é ocupado por uma pessoa física e o outro, de esquina, por uma associação privada chamada Defesa Estadual Integrada da Criança e do Adolescente e Garantia dos Direitos das Famílias do Estado de Pernambuco (Deica). “A casa azul (de número 654) é usada por uma pessoa que não mora lá, mas eventualmente a usa. Levamos uma notificação extrajudicial e a pessoa disse que ia sair voluntariamente. Mas a Deica não assinou”, conta o arquiteto Bruno Firmino, um dos diretores do Elefante de Olinda. “Eles disseram que fizeram benfeitorias lá e que não iriam ‘sair sem nada’. É como se eles estivessem esperando algum tipo de retorno financeiro”.

A cena mostra uma multidão vibrante e colorida desfilando pelas ladeiras de Olinda, com foliões contagiados pela música e pela alegria do Carnaval. Em destaque, surge o estandarte com o desenho de um elefante simbólico do bloco Elefante, erguido acima da cabeça das pessoas, com uma presença marcada e bem visível. Entre a multidão, notas de confete colorido flutuam no ar, e bandeirinhas ou serpentinas sugerem movimentação festiva. Ao fundo, é possível perceber casas coloniais típicas do cenário histórico de Olinda, com fachadas claras e arquitetura tradicional.

O Elfante de Olinda é um dos blocos mais tradicionais do carnaval, arrastando multidões há décadas

Crédito: Divulgação/Elefante

A relação do bloco com os chamados “Chalés do Carmo” começou no final do mandato de Paulo Câmara (na época, filiado ao PSB). Em dezembro daquele ano de 2022, o governo estadual enviou para a Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe) um projeto de cessão onerosa de seis imóveis do Carmo para o Elefante – os quatro chalés e dois imóveis anexos – por dez anos, podendo ser renovado.

O Governo do Estado segue sendo o proprietário dos imóveis, mas a cessão onerosa significa que o clube é quem deve arcar com todos os custos dos imóveis, incluindo preservação e reformas – e despesas judiciais com ocupantes irregulares. O termo de cessão dos dois imóveis foi firmado em 13 de dezembro de 2022, de acordo com a Secretaria de Administração do Governo do Estado (SAD).

“No ano passado, no entanto, decidimos ficar apenas com dois imóveis e aguardamos a oficialização, com a retificação no Diário Oficial”, conta Firmino. A mudança no contrato do governo com o Elefante de Olinda foi publicada no Diário Oficial de 29 de maio deste ano.

A imagem aérea mostra um prédio antigo e parcialmente degradado, visto de cima. O telhado está danificado, com uma parte destruída que revela estrutura metálica exposta e ausência de cobertura. Ao redor, há vegetação abundante com árvores cujas copas avançam sobre parte da edificação. À esquerda, observa-se uma rua com alguns carros estacionados e faixa de pedestre. À direita, nota-se a proximidade de um corpo d’água, evidenciado por um trecho de calçada verde com pequeno jardim e piso regular.

Os dois imóveis cedidos pelo Governo do Estado estão em más condições

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

A cessão do Estado não permite que o Elefante alugue ou repasse as casas. “A gente não sabe exatamente quando a Deica ocupou o imóvel, mas as primeiras postagens deles são de 2023. Na verdade, essa ONG não tem inserção nenhuma no Sítio Histórico de Olinda”, diz Firmino.

Em nota, a SAD afirma que, com exceção da cessão ao Elefante, não houve qualquer acordo para ocupação dos dois imóveis e que não há registro de autorização para ocupação do imóvel em favor da Deica. A SAD também afirma que o Elefante deve realizar a requalificação dos imóveis, além de “promover programas, projetos e ações de natureza social, educacional e de fomento à cultura popular”.

Chalés serão nova unidade do Conservatório Pernambucano de Música

Conhecidos como “Chalés das Quatro Marias”, os quatro chalés da Avenida Sigismundo Gonçalves foram construídos entre 1893 e 1894 e vendidos em 1902 para o comerciante português João Fernandes de Almeida, que os presenteou às filhas — Zulmira, Beatriz, Alice e Julieta — identificando cada chalé com o nome de uma delas. São exemplares da arquitetura eclética.

No terreno de mais de 1.500 m2 há, além dos quatro chalés que contam com dois pavimentos, há um pátio com cerca de 500m² com vista para o mar e a Torre Villa Clarice, uma construção feita anos depois por trás do Chalé Beatriz a pedido de Clarice, filha de Beatriz, para viver próxima da mãe e das tias.

Em 1977, o chalés e seus anexos foram desapropriados pelo Governo do Estado de Pernambuco no Decreto de Lei nº 4487 de 28 de Abril, destinando os imóveis para sedir o Fórum de Olinda. No ano de 2010, o Fórum de Olinda foi transferido para a Avenida Pan Nordestina. Os imóveis estão abandonados desde a CasaCor de 2011.

No mês passado, o Governo de Pernambuco anunciou novos planos para os chalés. No último dia 10 de julho, a Fundarpe lançou um edital de licitação para contratação de empresas especializadas na elaboração de projetos técnicos de restauração dos imóveis. O edital, que está disponível no portal PE Integrado, ainda tem prazo para envio das propostas, com o valor de R$ 460.372,92.

De acordo com a Fundarpe, os chalés serão adaptados para sediar uma nova unidade do Conservatório Pernambucano de Música, com foco nas práticas dos gêneros pernambucanos mais voltados ao carnaval, somando-se à sede já existente no Recife, na avenida João de Barros. “O projeto vai ressignificar o uso dos imóveis em sintonia com a identidade cultural de Olinda, única cidade pernambucana reconhecida como Patrimônio Mundial pela Unesco”, disse a fundação, em nota para a MZ.

Prefeitura não autorizou reformas no imóvel

Em entrevista para o Diario de Pernambuco, o presidente da Deica afirmou que fez benefeitorias no imóvel. De acordo com a prefeitura de Olinda, é preciso autorização da prefeitura para reformas – com ou sem acréscimo de área construída. Mas nenhuma autorização de reformas foi concedida para a Deica.

Os chalés do Carmo e os anexos não têm tombamento individual, mas, por estarem no polígono do Sítio Histórico de Olinda, têm regras rigorosas. Os imóveis integram o Acervo Arquitetônico e Urbanístico da Cidade de Olinda, tombado pelo Iphan (Processo “T” 674/1972) e são protegidos também pela Lei Estadual nº 7.970/1979, que estende o tombamento federal ao âmbito estadual.

Nem todas as reformas no imóvel, porém, são recentes. Imagens de satélite do Google Earth já mostram mudanças na época em que fazia parte do Fórum de Olinda. A parte do imóvel que dá para a avenida está caindo aos pedaços, sem teto, assim como os Chalés do Carmo – abandonados desde 2011, estão depredados, com telhados caindo e até troncos de árvores crescendo nas paredes. A sede da Deica se concentra na parte de trás, com uma lateral que dá para um beco e os fundos para o mar.

A Marco Zero também perguntou se alguma fiscalização identificou essas reformas irregulares nos anexos do chalés, mas a prefeitura não respondeu. Porém, tanto a Prefeitura de Olinda quanto a Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe) afirmaram que, no último dia 5 de agosto, foi realizada uma fiscalização conjunta com o Iphan, no contexto das vistorias prioritárias em bens tombados do Estado. A fiscalização, no entanto, se concentrou nos chalés sob a gestão estadual. Durante a inspeção, segundo a Fundarpe, foram constatados “danos generalizados nos quatro chalés, reforçando a urgência de sua restauração”.

O clube Elefante de Olinda já contratou um escritório de arquitetura para reformar os dois imóveis cedidos para a sede, seguindo as diretrizes de reformas no Sítio Histórico de Olinda. Hoje, o clube não tem sede e os materiais ficam espalhados pelas casas dos diretores do bloco. “Precisamos de acesso aos imóveis para fazer um levantamento para o projeto da sede. E, a partir daí, começar seriamente a captar recursos para construir nosso espaço. Pra gente, ter uma sede é fundamental. Porque vai servir como espaço de reserva técnica, pra guardar nossos materiais. E também vai ser um espaço de transmissão e difusão de cultura. Lá, vamos poder promover mais oficinas, mais cursos, mantendo uma capacitação de maneira contínua, não só no período carnavalesco”, avalia Bruno Firmino.


Fundado em 12 de fevereiro de 1952 por um grupo de jovens, o Elefante nunca deixou de desfilar no carnaval – com exceção dos dois carnavais na pandemia da covid-19. Em 2020, o Elefante de Olinda foi eleito Patrimônio Vivo de Pernambuco.


Polícia Civil abre investigação sobre ONG

No papel, a Deica foi criada em fevereiro de 2024 e tem como presidente Paulo Fernando Marinho da Silva. Nas redes sociais há diversas fotos e vídeos dos funcionários com camisetas pretas onde se lê “agente”, usando credenciais que parecem distintivos. O próprio logo da Deica parece um emblema policial. A entidade também destaca em vários posts que é parceira da Polícia Civil, da Polícia Militar e do Departamento de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA).

Em nota, a Secretaria de Defesa Social (SDS) afirmou que não há quaisquer parcerias ou convênio entre a DPCA e a Deica. E mais: a Polícia Civil, por meio da 7ª Delegacia Seccional de Olinda (7ª Desec), instaurou um procedimento investigativo preliminar para apurar os fatos relacionados ao uso de distintivos, insígnias, fardas ou equipamentos que possam se assemelhar aos das forças policiais do Estado.

Apesar do nome e dizer que atua na proteção dos direitos de crianças e adolescentes, a Deica é uma desconhecida do Conselho Tutelar de Olinda – até pouco tempo a sede do conselho também funcionou no Carmo, a poucos metros do chalé invadido pela Deica. “Nunca ouvi falar dessa organização. Nunca fizemos nenhuma parceria com ela”, afirma a presidente da seção 1 do órgão em Olinda, Cláudia Roberta.

A fotografia mostra um prédio antigo, de esquina, com pintura amarelada desgastada e placas de madeira apoiadas contra a fachada. Algumas partes estão pichadas, inclusive um símbolo escuro com letras que parecem formar “DEICA”. O edifício tem janelas com formatos arqueados, parcialmente danificadas. Ao fundo, à esquerda, observa-se uma rua com calçada, árvores frondosas e um carro estacionado. No canto direito, há um poste de energia com transformador, e ao fundo direito, vislumbra-se o mar sob o céu parcialmente nublado.

Parte da frente da casa ocupada pela Deica está degradada

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

O instagram da Deica mostra uma miríade de ações, com destaque para a doação – ou comodato – de cadeiras de rodas. Há também posts com doação de medicamentos e produtos hospitalares, onde se vê remédios como Zanidip (para hipertensão) e Soanza (para cardiopatias), que custam R$130 e R$92, respectivamente, e são de tarja vermelha, exigindo retenção da receita. Em alguns medicamentos, dá para ler “amostra grátis” na embalagem.

Em um vídeo publicado no dia 31 de janeiro de 2024, Paulo Fernando dá uma caixa com medicamentos para um homem chamado Cristiano, do Alto do Pascoal, e diz que está fazendo o repasse em nome do vereador do Recife Alcides Teixeira Neto (Avante). A Marco Zero questionou o vereador sobre a origem dos remédios e o motivo de ter escolhido a Deica para fazer essa doação. O vereador, contudo, afirmou que não doou os remédios. “Acho que alguém deu e falou nosso nome”, disse, negando qualquer parceria do gabinete com a Deica, dizendo que foi citado porque “eles gostam do nosso trabalho”.

Apesar de o Brasil não ter legislação específica sobre doação de medicamentos, o condicionamento e distribuição desses remédios deve ser liberado pela Vigilância Sanitária. A MZ questionou a Agência Pernambucana de Vigilância Sanitária (Apevisa) se a Deica tem autorização para armazenamento e distribuição de medicamentos e produtos hospitalares. Esta matéria será atualizada quando a resposta chegar.

A Marco Zero tentou falar com Paulo Fernando por mensagem e por telefone, sem sucesso. Também entramos em contato com o diretor de comunicação da Deica, Paulo Deyvson, juremeiro mais conhecido como Paulinho Carrapeta. A Marco Zero enviou uma série de questionamentos para ele – como a origem dos remédios e como a Deica ocupou o imóvel –, mas não obteve respostas. Também fomos por duas vezes na sede da Deica, em horário comercial, e as portas estavam fechadas com cadeado – na reportagem já citada do Diario de Pernambuco, os representantes da Deica informaram que a entidade funciona todos os dias das 8h às 19h.

O espaço segue aberto caso a Deica queira apresentar seus esclarecimentos.

Os Chalés do Carmo em foto do início do século passado. Crédito: Acervo Iphan

AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org