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Em apenas um ano, triplicou a quantidade de pessoas passando fome no Nordeste

Marco Zero Conteúdo / 08/06/2022
Mãos de uma mulher negra segura prato branco sujo e vazio

Crédito: Depositphotos

por Adriana Amâncio

O número de nordestinos que dormem sem saber o que vão comer no dia seguinte triplicou no intervalo entre maio de 2021 a abril de 2022. De acordo com o  2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (Vigisan),  divulgado nesta quarta-feira, 8 de junho, pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), o número de habitantes dos estados do Nordeste em insegurança alimentar aumentou de 7,7 milhões para 22 milhões e 508 mil. Isto mesmo: dos quase 54 milhões de nordestinos, 41% estão nessa condição.

Os dados que dão ideia do crescimento da fome foram contabilizados de novembro de 2021 e abril de 2022, período de realização do Inquérito. Em todo Brasil, o número saltou de 19 milhões no encerramento do 1º Inquériro Vigisan, em maio de 2021, para 33,1 milhões. Isso significa dizer que, sozinha, a região Nordeste abriga 68% do total de pessoas passando fome no Brasil.

Esse aumento, segundo o membro da coordenação Executiva da Rede Penssan e professor de pós-graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Nilson de Paula, é fruto de opções políticas, da precarização das instituições e da rede de proteção social, da colocação da agricultura familiar em segundo plano e da priorização do agronegócio. Soma-se a isso, a piora no cenário econômico e o segundo ano da pandemia. “O país foi sendo conduzido para a beira do precipício. O que temos visto é um viés de apoio ao agronegócio em vez da agricultura familiar. A fome está diretamente alinhada ao agravamento da pobreza”, avalia o pesquisador.

Essa casadinha cruel entre aumento das desigualdades e o aumento da fome é refletida na pesquisa com a identificação de onde está e quem é a parcela da população é a mais afetada: os dados mostram a fome cada vez mais presente em meio ao público-alvo das desigualdades estruturais.

A segurança alimentar cai de 53,2% para 35% em lares chefiados por pessoas que se autodeclaram pardas ou pretas. Já nas casas chefiadas por mulheres, os registros de casos de fome sobem de 11,2% para 19,3%. Por outro lado, nos lares que têm homens como responsáveis, a fome esteve presente em 11,9%. Em lares com crianças menores de dez anos, os casos de fome quase dobraram, saltando de 9,4% para 18,1%. “A pobreza também tem cor, gênero, endereço, assim como a fome, tem seus matizes. Tudo isso vai formando uma bomba, uma engenharia difícil de desmontar”, comenta Nilson.

Mulher, jovem, negra,mãe solo e nordestina

Mulher negra, mãe solo de quatro crianças, a jovem Rayla Ribeiro, de 21 anos, vive dias incertos na comunidade rural de Lagoa Seca, no município de Campo do Buriti, no estado do Piauí. Ela divide o tempo entre o trabalho como doméstica, em uma jornada de 12 horas, que vai das 7h às 19h, e o cuidado com as crianças com idades entre um ano e quatro meses e seis anos. O vínculo não é de carteira assinada e ela não recebe sequer um salário mínimo. Essa renda é somada à bolsa do Auxílio Brasil, mas não é suficiente para garantir o leite e os demais alimentos das crianças. “Alimento tá muito caro, a renda não dá! Eu compro um fardo de leite e só dou a eles uma vez por dia, quando acaba, não compro mais. Às vezes, quando não tem o que comer, eu dou somente água para eles beberem”, relata a jovem.

Segundo Rayla, há dois anos, a situação era ainda pior do que nos dias atuais. Com a chegada da pandemia, devido ao isolamento social, ela foi impedida de trabalhar em roçados particulares, ganhando diárias. Neste momento, a família passou a viver da doação de cestas básicas. Alguns meses depois, o seu casamento acabou e o ex-marido se recusou a custear os alimentos das crianças. “Durante uns dois ou três dias, os meninos ficaram sem alimento porque o pai deles não queria dar, e eu estava sem poder sair para trabalhar”, recorda. Mesmo após transferir o auxílio emergencial do nome do ex-marido para o seu, após a separação, Rayla conta que nunca recebeu o valor integral de R$ 1.200, tedo que se contentar com apenas R$ 600. “O dinheiro era pouco, a prioridade era a alimentação. Ou comia ou pagava conta”, afirma.

Quando a comida acaba, Rayla dá somente água para os filhos beberem. Crédito: Acervo pessoal

A fome é rural

É no campo que a insegurança alimentar, em todos os níveis, se revela de forma mais grave. Em mais de 60% dos lares rurais, foram identificados casos de insegurança alimentar em alguma de suas formas. Deste universo, 18,6% dos lares apresentaram casos de insegurança alimentar do tipo grave. Este contingente é maior do que o percentual nacional. Nem as famílias agricultoras, produtoras dos seus próprios alimentos escaparam do problema. Segundo a pesquisa, 21,8% dos lares de pequenas famílias agricultoras e pequenos produtores foram atingidos pela fome. 

A agricultora familiar Maria Lenice, moradora da comunidade Barrocas, município de Caetés, no agreste pernambucano, sabe bem o que é a fome. Os R$ 600 do auxílio emergencial só garantiam comida para ela, o marido e o filho de cinco anos por apenas 15 dias. Após esse período, a família dependia de doações. Desde então, a realidade não mudou muito. Vivem da renda do Auxílio Brasil e do lucro da comercialização de alguns produtos da agricultura familiar, comprados aos vizinhos com dinheiro emprestado. Eventualmente, o casal ganha diárias pelo trabalho em roçados particulares, demanda comum no período chuvoso. Maria teme o que está por vir, quando as chuvas acabarem. “Quando acabar o trabalho [nas roças particulares], daqui a pouco, a gente vai voltar a depender da ajuda de novo. Fazer o quê, né”, lamenta.

A raiz do problema

Nilson de Paula. Crédito: Acervo pessoal

Dar comida às pessoas é uma medida de curto prazo, mas não vai sanar o problema da fome na raiz. É preciso reverter a condição de desigualdade social, reverter o quadro de concentração de renda riqueza, como defende Nilson de Paula:  “Não há como uma população olhar e se ver como nação, tendo 125 milhões de pessoas passando fome. Para combater isso, é preciso que o Estado reconheça que esta demanda é prioridade”. Nessa direção, o pesquisador considera importante resgatar iniciativas já conhecidas, a exemplo do Programa de Alimentação Escolar (PAA), que adquiria produtos da agricultura familiar e os oferecia na rede escolar. 

Ele considera importante ainda resgatar e proteger o Programa Nacional da Alimentação Escolar (PNAE), que garantia merenda escolar, contendo alimentos da agricultura familiar, produzida por famílias agricultoras, povos indígenas e assentados da reforma agrária. A derrubada da Emenda nº 95, que limitou o investimento em áreas sociais é outro caminho para combater a fome, sinaliza o pesquisador.

“Você não pode ter políticas que beneficiem a população, porque há uma disciplina fiscal. Gerar emprego, recuperar e valorizar a renda das famílias. Nós estamos tendo que fazer a escolha de Sofia: ou come ou paga aluguel, ou come ou bebe água. É o pior dos mundos da degradação humana”, critica o Nilson de Paula.

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