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Em meio a apagão de dados, veja o que você precisa saber sobre os novos surtos do vírus da gripe

Maria Carolina Santos / 23/12/2021

Crédito: Daniel Tavares/PCR

Quando a covid-19 parecia estar sendo controlada no Brasil, mais problemas chegaram, tudo de uma vez e misturados: a variante ômicron e surtos de gripe. E pior: em um contexto de apagão de dados do Ministério da Saúde. Desde o dia 7 de dezembro, os dados de casos leves, casos graves e mortes por covid de vários estados não são computados por conta de um ataque ao sistema, feito com login e senha de funcionário do Ministério da Saúde. Os dados sobre vacinação também ainda não voltaram por completo, 13 dias após a queda.

Por conta disso, não se sabe, oficialmente, se os casos de sintomas respiratórios que lotam as UPAs e unidades de saúde básica de vários estados do Brasil, incluindo Pernambuco, são resultado de uma nova onda de covid-19 ou gripe pelo vírus Influenza. Ou um tanto de cada.

Sem transparência nos dados não dá para para fazer uma vigilância epidemiológica eficiente, pois não é possível verificar se uma determinada área está com aumento de atendimento hospitalar por covid-19 ou por gripe. Nas últimas semanas os dados apontam uma queda artificial de casos na covid-19, já que os testes não estão entrando no sistema.

Pernambuco ainda não detectou a variante Ômicron nas amostras aleatórias que são processadas toda semana pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). mas já está com a confirmação de transmissão comunitária da variante Darwin da cepa H3N2, apontada como a causa dos surtos gripais. Na segunda-feira, 20 de dezembro, a Secretaria Estadual de Saúde confirmou a primeira morte do ano pela H3N2, um homem de 46 anos, paciente renal crônico. Hoje, mais dois óbitos foram confirmados.

Como saber se é gripe ou se é covid-19?

Dor no corpo, febre, tosse, cansaço, nariz entupido, dor de cabeça, coriza, moleza, garganta dolorida. Como saber se é covid-19 ou gripe?

É mais comum que a gripe tenha sintomas mais fortes nos primeiros dias, enquanto na covid-19 o agravamento ocorre após o quinto dia. “Os pacientes podem apresentar os mesmos sintomas, portanto há uma grande dificuldade em fazer a distinção baseado apenas de dados clínicos. Os testes laboratoriais para influenza são necessários neste momento epidemiológico”, afirma o infectologista do Hospital das Clínicas e professor de medicina da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Paulo Sérgio Ramos.

A recomendação da Secretaria Estadual de Saúde é de que primeiro seja descartada a covid-19 por meio de teste de antígeno. Só é indicada a solicitação do teste de influenza na rede pública nas amostras encaminhadas ao Laboratório Central (Lacen) para investigação do novo coronavírus de casos sintomáticos, por meio de RT-PCR.

Nos locais de testagem para covid-19, os relatos são de doentes que esperam por horas para conseguir o teste rápido de antígeno. “Fui na segunda-feira no Geraldão e estava lotado, havia pessoas esperando há horas. Algumas com a máscara baixada, tossindo muito. Fiquei com receio de pegar covid-19 na espera pelo teste e desisti. Voltei no outro dia cedo e também havia muita gente na fila. Muito desorganizado”, reclama a jornalista Camila Estephania, que testou negativo na segunda tentativa de fazer o teste.

É bom lembrar que, assim como a covid-19, a gripe também pode levar a casos graves e até morte. “Os dois vírus e suas variantes têm potencial de desenvolver Síndrome Respiratória Aguda Grave (Srag) SRAG. A principal diferença é que infecção por vírus influenza tem um maior potencial em desencadear SRAG na faixa etária de até 5 anos”, explica Paulo Sérgio.

Antes da vacinação contra a covid-19 avançar no Brasil, cerca de 15% dos casos resultavam em internação hospitalar. Em outros surtos recentes de gripe, esse percentual ficou bem mais baixo, em torno dos 2%, informa o médico infectologista Bruno Ishigami, da equipe do Hospital Universitário Oswaldo Cruz. “Mas os 15% de internamento pela covid-19 são de quando a população não estava vacinada. Esse cenário mudou. Hoje já estamos vendo que mais de 90% dos internamentos por covid-19 são de pessoas que não se vacinaram”, reforça o infectologista.

A dose de reforço também é muito importante, principalmente para a variante Ômicron, muito mais contagiosa e que vem causando novas ondas nos Estados Unidos, na Europa e na África do Sul. Até o dia 7 de dezembro, quando o sistema do Ministério da Saúde foi sabotado, a Fiocruz estimava que mais de 12 milhões de brasileiros aptos a tomar a terceira dose ainda não haviam feito isso. Atualmente, é de quatro meses o tempo recomendado pela Secretaria Estadual de Saúde entre a segunda e a terceira dose.

Isolamento: um legado da pandemia?

Se antes de 2020 era aceitável ou até desejável uma pessoa trabalhar espirrando e tossindo sem máscara em uma sala fechada com ar-condicionado, a pandemia da covid-19 pode ter mudado isso. “Em países mais acostumados com surtos de vírus respiratórios, como os do sudeste asiático, a população já estava educada: se está gripado, fica em casa e faz isolamento, porque pode ser uma doença de alta transmissibilidade”, diz Bruno Ishigami.

O correto é que a pessoa que está com sintomas gripais – mesmo com o teste de covid-19 negativo – também se isole. “Existem algumas divergências sobre o tempo de isolamento para gripe. Alguns locais falam que você deve se isolar por sete dias ou até pelo menos 24h sem febre. Mas claro que há outras coisas que se tem que se levar em consideração também”, explica Ishigami.

E, assim como na covid-19, é possível se infectar estando próximo a uma pessoa que não apresenta sintomas. “A influenza também tem transmissão assintomática. Um dia antes da pessoa manifestar sintomas ela já está transmitindo. Na covid-19 esse período de fase assintomática é um pouco maior e mesmo pessoas que continuam assintomáticas também podem transmitir”, diz Ishigami.

Tanto para a covid-19 quanto para o vírus da influenza, as medidas de proteção são as mesmas: uso correto de máscara, ventilação de ambientes, evitar aglomerações, manter distância de outras pessoas, higienização constante das mãos e, sempre que possível, privilegiar encontros ao ar livre.

Quando procurar atendimento médico?

O infectologista Paulo Sérgio recomenda que as pessoas que apresentem sintomas de gripe devem procurar orientação do serviço de saúde mais próximo. “Uma vez que o teste para covid-19 resulte negativo devem ser orientados para retornar ao serviço caso apresentem sinais ou sintomas de SRAG”, diz.

Os sintomas de SRAG são amplos, mas depois de tantos meses de pandemia você certamente já sabe alguns deles. “Mantenho as mesma recomendações dos pacientes com covid-19: se estiver sentindo falta de ar, dificuldade para respirar, febre persistente que não melhora com uso de antitérmico, que não consegue se alimentar ou está sonolento, a pessoa deve procurar um serviço de saúde”, diz Bruno Ishigami, que recomenda o Atende em Casa, o serviço de teleatendimento do Governo do Estado, para uma primeira consulta. “A pessoa vai receber orientação se precisa ou não ir para a emergência presencialmente.

Com os serviços de saúde cheios, nos últimos dias a demanda do Atende em Casa pipocou: somente entre segunda (20) e quarta-feira (22) foram 639 atendimentos, de acordo com a secretaria estadual de Saúde. Para se ter uma ideia do que isso representa, basta comparar com dados anteriores: há um mês, e em um período de sete dias, foram apenas 241 atendimentos registrados.

Ao contrário da covid-19, há tratamento antiviral contra a gripe disponível no Sistema Único de Saúde (SUS). O protocolo de tratamento de influenza do Ministério da Saúde indica, além do tratamento sintomático e hidratação, o uso do antiviral Tamiflu em todos os casos de SRAG e nos de Síndrome Gripa em pessoas que tenham condição ou fator de risco para complicações, independentemente da situação vacinal.

De acordo com nota técnica da Secretaria Estadual de Saúde do dia 20 de dezembro, são considerados grupo de risco e aptos para o tratamento antiviral as grávidas, idosos, crianças com menos de cinco anos, portadores de doenças crônicas não transmissíveis, imunossuprimidos, obesos, entre outros. Quem está no grupo de risco não deve esperar para procurar atendimento médico: o tratamento antiviral deve ser iniciado até o quinto dia dos sintomas, para melhores resultados.

Vacina trivalente da gripe usada no SUS em 2021. Crédito: Rovena Rosa/Agência Brasil

A vacina da gripe funciona contra esse surto de gripe?

No Brasil como um todo, em quase todas as vacinas, a cobertura vacinal ficou abaixo do esperado em 2021. A cobertura atual da vacina contra a gripe em Pernambuco é de 76,5% quando a meta é vacinar, pelo menos, 90% dos grupos prioritários.

Não existe contraindicação em tomar a vacina contra a influenza junto ou próxima a de covid-19. A proteção da vacina da gripe – que é feita com tecnologia de vírus inativado, como a coronavac – dura entre seis meses e um ano e atinge o pico máximo de anticorpos após quatro a seis semanas da vacinação.

Neste ano, a variante Darwin da H3N2 foi detectada em alguns estados brasileiros (Pernambuco ainda não finalizou as análises genéticas das amostras) e pode ter relação com o surto também em Pernambuco. Isso porque as vacinas aplicadas neste ano não fornecem proteção satisfatória contra essa variante (saiba mais na entrevista abaixo).

Mas isso não significa que a vacina não funciona. Além de ser eficaz para outras cepas da Influenza, pode dar também alguma cobertura aos infectados pela Darwin. “É o fenômeno da imunização cruzada. Onde os anticorpos circulantes, produzidos para outra cepas, podem promover algum grau de neutralização de outros vírus geneticamente parecidos. O fato é que há diversas variáveis que possam interferir negativamente como idade avançada e presente de comorbidades que comprometam a imunidade”, explica o infectologista Paulo Sérgio Ramos.

O apagão de dados do Ministério da Saúde também prejudica saber em que pé estamos nesses surtos de gripe, que podem durar meses. “Na perspectiva da introdução de uma nova variante, como aquela que ocorreu em 2009, onde tivemos uma pandemia por Influenza A(H1N1), (o surto) pode persistir por alguns meses, até que a maioria da população tenha sido imunizada”, explica Paulo Sérgio. Na pandemia da H1N1, que durou 14 meses, o Brasil registrou oficialmente 2.098 mortes em 2009.

Se você ainda não se vacinou contra a gripe, não perca tempo. No Recife, há vários postos aplicando a vacina, disponível para todas as faixas etárias. Os shoppings da cidade também contam com postos de vacinação da Prefeitura do Recife. Confira aqui a lista.


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Entrevista com Rafael Dhalia

O pesquisador da Fiocruz Pernambuco Rafael Dhalia é um dos coordenadores do estudo do Instituto Butantan para a nova vacina tetravalente contra a gripe, que será aplicada pelo SUS em 2022. Hoje, o SUS utiliza uma vacina trivalente contra a gripe, enquanto a rede privada conta vacinas tetravalentes. Todo ano a formulação dessas vacinas muda, de acordo com as variantes de cada cepa que mais estão em circulação. Às vezes acontece de uma nova variante surgir quando a vacina já está sendo aplicada na população – o que é o caso da variante Darwin da cepa H3N2 do vírus da Influenza A. É essa nova variante que está sendo apontada como responsável pelos atuais surtos de gripe. Confira mais detalhes na entrevista com o pesquisador.

Dhalia faz parte da equipe que testa a nova vacina da gripe do Butantan. Crédito: FioCruz/Ascom

Marco Zero – Como é escolhida a composição das vacinas trivalentes e tetravalentes contra a gripe?

Rafael Dhalia – A composição das vacinas é determinada através de um processo de vigilância de circulação e prevalência das principais variantes de cada cepa. Existe uma rede de laboratórios de referência para influenza, credenciada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que participa do processo de isolamento e sequenciamento destas variantes das cepas virais. As sequências identificadas são alimentadas em um banco de dados e, a partir daí, a OMS fornece, aos produtores de vacinas, as informações em relação às variantes mais prevalentes (de cada cepa de influenza A e B). Uma vez identificados, estes vírus farão partes dos lotes-semente das formulações que serão disponibilizadas nas redes públicas e privadas. Todos os anos as formulações são modificadas, para acompanhar as variações do vírus.

No surto de gripe do Rio de Janeiro foi identificada a variante Darwin – mutação primeiramente identificada na Austrália – como predominante. As vacinas que temos hoje no Brasil dão conta dela?

As vacinas contra a gripe que temos hoje disponíveis no Brasil, tanto as públicas como as privadas, são baseadas em formulações trivalentes e tetravalentes do vírus Influenza. Em todas elas existem duas cepas de Influenza do tipo A (H1N1 e H3N2) e pelo menos uma cepa do tipo B. Assim como existe as variantes do SARS-Cov-2, também existem variantes dentro de cada uma destas cepas. O problema maior é que estas variantes continuam sofrendo mutações adaptativas, o que torna mandatório o isolamento e sequenciamento anual das cepas circulantes de Influenza A e B, em todos os continentes, para que as vacinas produzidas sejam baseadas na circulação das variantes mais prevalentes. Infelizmente, a variante da cepa H3N2 que está causando o surto de gripe no Rio de Janeiro, que estão chamando de Darwin (em alusão à cidade em que foi identificada), não está presente em nenhuma das formulações vacinais que temos disponíveis no Brasil. Isso se deve ao fato que a variante Darwin não foi identificada antes da produção das vacinas, mas certamente estará presente nas formulações vacinais que serão disponibilizadas em 2022. Resumindo: as vacinas atuais não são capazes de proteger, satisfatoriamente, contra esta nova cepa.

Qual a eficácia das vacinas contra a gripe? É recomendada a revacinação agora de quem se vacinou no início do ano?

No Brasil temos em torno de sete vacinas contra a gripe aprovadas pela Anvisa para uso, das quais apenas uma é disponibilizada de forma gratuita pelo SUS, a vacina trivalente fragmentada e inativada (produzida pelo Instituto Butantan). De uma forma geral a eficácia destas vacinas oscila entre 50-70%. Em relação à revacinação, não faz o menor sentido se vacinar agora quem já se vacinou no início do ano. Não faria a menor diferença, pois a formulação seria a mesma aplicada que não teria nenhum benefício adicional em relação à proteção contra a variante Darwin da H3N2. O que é fundamenta é massificar a importância de vacinação contra a gripe, que embora tenha uma letalidade inferior à da covid-19 continua causando letalidade, principalmente em crianças e idosos. Em 2021 foi possível observar uma redução drástica dos casos de gripe em todo o mundo, e sem dúvida isso pode ser correlacionado à vacinação e as medidas não farmacológicas (isolamento social, higienização das mãos e uso de máscara). Não foi por coincidência que os surtos de gripe, como estes que estamos observando, surgiram justamente acompanhados das medidas equivocadas de flexibilização.

As vacinas contra a gripe no Brasil são de vírus inativado. Há pesquisas para vacinas contra a influenza em outras plataformas, como de vetor viral, DNA ou mRNA? Seriam, na teoria, mais eficazes?

Existem pesquisas de vacinas contra influenza em todas as plataformas citadas. Não só contra Influenza…, mas como para dengue, febre amarela, zika, chikungunya, HIV, tuberculose, malária, etc. Em virtude da pandemia de SARS-Cov-2 estes esforços foram deixados de lado, para atender a demanda de emergência sanitária da Covid-19. Com a revolução das vacinas contra covid-19, desenvolvidas e validadas em tempo recorde, nos próximos anos vamos presenciar o surgimento de novas vacinas (contra outras doenças), obtidas nestas plataformas. Agora em relação à gripe, poucos sabem, mas a primeira vacina de RNA testada em estudo clínico em seres humanos foi uma vacina de RNA contra Influenza (bem antes da pandemia, em 2015). Os resultados foram animadores, em termos de eficácia e segurança, e serviram também de base para os estudos das vacinas de RNA contra a Covid-19. Não só na teoria, mas também na prática, as vacinas baseadas em antígenos estabilizados (presentes nas plataformas de vetor viral, DNA e RNA) vem demonstrando eficácia superior em relação às vacinas baseadas em vírus inativado. Isso se deve a alta flexibilidade destes antígenos presentes na superfície do vírus inativado, que dificulta seu reconhecimento pelo sistema imunológico, e consequentemente limita a eficácia na produção de anticorpos neutralizantes. Sem dúvida alguma as vacinas de nova geração, com ênfase nas de RNA mensageiro, vieram pra ficar e agregar valor em termos de eficácia. Por outro lado, as vacinas de vírus inativado continuam sendo fundamentais, e estratégicas, para atender as demandas mundiais de vacinação em massa. Precisamos e continuaremos precisando de todas, incluindo a vacina tetravalente de vírus inativado da gripe que o Instituto Butantan está validando, com perspectiva de disponibilização gratuita nos próximos anos.

AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org