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Crédito: Fórum Suape
Há mais ou menos um mês, os moradores do Engenho Ilha levaram um susto. Ao tentar acessar o rio Jaboatão, em um local onde costumavam catar mariscos, havia uma cerca, com estacas pintadas de um azul esverdeado. Dias depois, as mesmas estacas estavam por toda a região conhecida como reserva de João Grande. Lá, os moradores costumavam catar mariscos e tiravam frutas como ingá, caju, maçaranduba e manga para comer e vender. Com uma rapidez que conta com o trabalho de dezenas de homens, a comunidade se viu cercada. Segundo moradores, faltam apenas poucos quilômetros para que os 611 hectares do Engenho Ilha estejam todos dentro de uma extensa cerca azul esverdeada.
Localizado atrás da Reserva do Paiva, um condomínio de luxo à beira mar no Cabo de Santo Agostinho, o Engenho Ilha é uma terra em disputa. De um lado, 305 famílias de agricultores, pescadores, extrativistas. Muitos são posseiros que ocupam a terra há duas, três, quatro gerações. Do outro, o Complexo Industrial de Suape, “um dos maiores projetos de desenvolvimento da economia do país”, como diz o slogan.
Como se vê, é uma disputa desigual.
O cercamento da comunidade é justificado por Suape com “o objetivo de proteger o patrimônio ambiental”. Suape quer criar no local uma Unidade de Conservação. Diz, em nota à Marco Zero, que a criação da unidade está sendo gestada junto à Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade, por meio da Agência Estadual do Meio Ambiente (CPRH), “com limites propostos, por isso necessita de cercamento”.
Na nota, o complexo industrial garante que isso não afeta o ir e vir dos moradores da comunidade. “A medida não impede a circulação da comunidade, já que as cercas foram instaladas no contorno da reserva João Grande e foram respeitados os acessos já existentes. Dessa forma não houve fechamento das passagens e não há obstrução do acesso comunitário.”
Os moradores contam uma história diferente. Em algumas áreas que eram de uso comum, como o Cajá, que serve como espécie de porto da comunidade, o acesso agora se dá somente por dentro dos sítio dos posseiros. “A área de acesso ao mangue, onde estão as catraias [pequenas jangadas], os pescadores estão tendo dificuldade, deixaram um acesso muito pequeno. A nota de Suape, que também foi enviada para a Defensoria Pública da União, é incrível. Como diz que deixou os acessos se está tudo cercado? Deixaram algumas passagens, mas colocaram cerca até nas cercas dos sítios dos posseiros. Uma cerca em cima da outra”, conta a presidente da Sociedade dos Pequenos Agricultores de Ponte dos Carvalhos, Vera Lúcia Domingos.
Até 2014, o Engenho llha era uma região sem atritos. As matas nativas, a restinga e os mangues que ocupam boa parte do vasto território eram de uso livre. O então presidente da Sociedade dos Pequenos Agricultores de Ponte dos Carvalhos, Laelson do Nascimento Epifânio, conhecido como Índio, tecia acordos informais com a direção de Suape. Sem comprometimentos, sem reuniões com atas assinadas. Quando Laelson faleceu, naquele ano, a nova presidente, Vera Lúcia, recebeu já no velório um recado que ela entendeu como uma advertência e uma ameaça. “Um dos coordenadores disse que eu não desse nenhum passo antes de falar primeiro com Suape”, lembra Vera. Ela resolveu ir na direção oposta: ignorar os chamados para conversas informais e só aceitar reuniões oficiais.
As 305 famílias que hoje ocupam o Engenho Ilha são remanescentes de trabalhadores da antiga Usina Bom Jesus. Boa parte dos posseiros já estava por lá quando Suape adquiriu as terras no final dos anos 1970. Aqui, há mais uma disputa. Suape diz que é dona da totalidade das terras. Já a Sociedade e o Fórum Suape, organização que reúne entidades da sociedade civil, afirmam que uma parte é da União.
Em nota à Marco Zero, o Complexo Industrial de Suape afirma que não tem plano algum para a remoção das famílias. Mas, no ano passado, no começo da pandemia do novo coronavírus, o complexo contatou uma empresa terceirizada para destruir casas e plantações de posseiros dentro do Engenho Ilha. Na época, Suape afirmou em nota ao Leia já que eram invasores. “Por lei, Suape tem a obrigação de atuar com o que se chama desforço imediato, ou seja, coibir as invasões no território do Complexo”. Vera Lúcia revida. “Eram pessoas que tinham casas e sítios há tempos, antes até de Suape chegar aqui”.
Vera Lúcia integra desde 2016 o Programa Estadual de Proteção a Defensores de Direitos Humanos (PEPDDH), por ser vítima de ameaças e perseguições relacionadas com sua luta pelo direito dos moradores da comunidade. E por já ter denunciado a atuação de milícias armadas no território de Suape. “Já me ameaçaram de morte. É uma luta terrível. Me coloco como uma pessoa decepcionada. É muito difícil: o Estado não perde uma questão na Justiça contra o pequeno agricultor”, desabafa. Além dela, outra liderança de Suape, do Quilombo Mercês, também está no programa de proteção.
O cercamento do Engenho Ilha começou sem cercas. Há cinco anos, guardas motorizados começaram a aparecer na região da reserva João Grande impedindo que os moradores colhessem frutos do local. Placas foram colocados afirmando que ali era um local protegido e com entrada proibida. A cerca física foi, para os moradores, o golpe final.
E por que nos últimos anos Suape demonstra tanto interesse no Engenho Ilha? Para os moradores do Engenho Ilha tem a ver com dois assuntos: especulação imobiliária e discurso ambiental.
Em propagandas e em matérias de jornais, Suape afirma que tem 59% de todo o seu território de áreas de preservação ambiental. “Aqui o crescimento econômico se baseia em uma política de sustentabilidade ambiental e social, que preserva as áreas de mangue, restinga e mata atlântica”, diz o mais recente vídeo institucional, do ano passado.
Suape tem 13,5 mil hectares, com 147 empresas instaladas. Mais de 8 mil quilômetros – os 59% – de Suape são considerados na Zona de Preservação Ecológica de Suape (Zpecs). Essas zonas foram criadas com o plano diretor de 2011 com validade até 2030. “O Plano Diretor Suape 2030 aumentou a Zona de Preservação Ecológica de 45% para 59% do total do território do Complexo de Suape. São áreas de Mata Atlântica e ecossistemas associados (restinga e mangue) destinadas à preservação dos recursos naturais. Também em 2011, foi implantado o Projeto de Restauração Florestal”, diz o site oficial.
Foi no ano de 2011 que Suape assinou um Termo de Ajustamento de Conduta com o Ministério Público de Pernambuco e Ministério Público Federal para implantar projetos que preservassem o meio ambiente e minimizassem os inúmeros danos ambientais.
Para a advogada Luisa Duque, do Fórum Suape e que acompanha a questão do Engenho Ilha, Suape parte do discurso de preservar o meio ambiente para justificar a suposta necessidade da retirada dos posseiros. “Denunciamos em 2018 que Suape cria a narrativa de que são as famílias agricultoras que degradam o meio ambiente e, com base nessa falsa premissa, tenta expulsá-las, quando na verdade essas matas e mangues só existem ainda por conta dessas famílias, que são as guardiãs dessas terras. A pretexto de realizar reflorestamento, a empresa quer retirar as comunidades que vivem há gerações nessas áreas. Além da gravidade disso, é importante ressaltar que sequer há clareza quanto ao que realmente se quer fazer ali, que é uma área sabidamente de grande interesse imobiliário ”, afirma.
Recentemente, Suape anunciou uma parceria com a Unesco para investir mais de R$ 5,7 milhões em preservação e desenvolvimento sustentável das comunidades do complexo. Nada disso chegou até o Engenho Ilha. “Querem transformar a região em turismo rural? Querem fazer uma unidade de conservação sem nos consultar?”, reclama Vera Lúcia, que lembra que há uma imenso areal que foi devastado por Suape no Engenho Ilha e que poderia receber as ações de reflorestamento.
Em nota, Suape diz que “está aberta ao diálogo com todas as comunidades do território, mas tem encontrado dificuldade com a liderança do Engenho Ilha, que, inclusive, não demonstra interesse em receber atividades e projetos socioambientais que vêm sendo implantados em outras comunidades com muito sucesso e trazendo melhor qualidade de vida para inúmeras famílias. Contudo, a empresa se mantém à disposição para qualquer esclarecimento à comunidade e reafirma seu compromisso com a sustentabilidade do território. “
Vera Lúcia diz que está aberta a conversas com Suape, desde que seja com a presença de representantes da Defensoria Pública da União, Ministérios Públicos e atas assinadas. “Acusam a liderança do Engenho Ilha de não negociar e conversar. Você vê que eles personalizam a discussão. Não dá para negociar com os gestores de Suape porque eles são perigosos. Quero ter essa conversa sim. Não somos contra projetos, mas queremos projetos realmente efetivos. E uma reunião com a presença de entidades públicas. Não conversinhas informais”, diz.
Os Ministérios Públicos Estadual e Federal têm atuado juntos na região, mas sem grandes intervenções. “O que queremos é que os MPs de Pernambuco e o Federal revejam os termos da transação que realizaram com Suape no âmbito da Ação Civil Pública ajuizada em 2010. Se o objetivo daquela ação era obrigar Suape a promover a compensação ambiental, é fundamental que a manutenção das comunidades tradicionais faça parte desse acordo, porque são elas agentes históricos de preservação da área. Expulsá-las é um contrassenso”, diz a advogada Luísa Duque. “A gente não sabe nem como se dará esse projeto de unidade de conservação. Suape coloca sempre a questão da dificuldade de diálogo com a comunidade quando denunciamos a falta de transparência, mas em todos esses anos vários canais de diálogo foram abertos, sob a mediação do Ministério Público Federal e Estadual e da Defensoria Pública da União. Disposição para diálogo sempre tivemos”, diz.
Em nota para a Marco Zero, o Ministério Público de Pernambuco afirmou que “no que toca ao Engenho Ilha, inclusive com atuação do Ministério Público Federal, há ações constantes de acompanhamento. No momento não temos denúncias específicas.”
A nota segue contextualizando que na Promotoria de Justiça Agrária tramitou um inquérito civil para “promover atos judiciais e administrativos, acompanhar, mediar e solucionar o conflito agrário pela posse da terra, envolvendo os povos tradicionais radicalizados nos engenhos situados no território do Complexo Industrial de Suape. Nesta Promotoria, o mencionado procedimento foi arquivado”. E que na 3ª Promotoria de Defesa da Cidadania do Cabo de Santo Agostinho há procedimentos na área de Direitos Humanos, por meio dos quais tem-se realizado o acompanhamento, com audiências extrajudiciais constantes.
A nota afirma ainda que a “Promotoria do Cabo está acompanhando as ações ambientais, a cargo dos órgãos públicos, para evitar novas invasões, verificando que sejam observadas as normas relativas à atuação do poder público, para impedir o avanço, o dano ambiental e garantir a segurança das pessoas que estão lá, evitando os excessos.”
Vera Lúcia diz que sente, por vezes, que o Engenho Ilha está abandonado à própria sorte. “Não é querendo ser pessimista, mas quando a gente para e pensa, infelizmente a gente sente que o poder público acata tudo o que Suape faz. Queremos manter nossos modos de vida, queremos manter o lugar em que vivemos há gerações”.
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Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org