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Crédito: Ricardo Stuckert
A pauta que norteou este texto foi construída a partir de um fio de twitter da psicóloga e psicanalista sergipana Tatianne Santos Dantas. Logo após o primeiro turno da eleição para presidente, ela entrou na discussão sobre a vitória de Lula no Nordeste sem perder tempo rebatendo inutilmente a xenofobia e o racismo bolsonaristas. Com argumentos provocadores, cutucando a imprensa e a esquerda do “sudestina e sulista”, ela conseguiu a rara proeza de viralizar e, ao mesmo tempo, acrescentar novos elementos ao debate público.
Aqui na Marco Zero entendemos que, na primeira linha do seu tuíte, havia uma sugestão de pauta pronta, só esperando um repórter:
E assim, ouvindo professores e pesquisadores dedicados às Ciências Sociais, Ciência Política ou História em universidades nordestinas, escutamos o relato sobre a mudança de posição política de um agricultor no interior da Paraíba. A história de um personagem que nos ajuda a entender o fenômeno político mais marcante das primeiras décadas do século XXI:
Às vésperas de completar 80 anos em 2002, Durval Muniz de Albuquerque nunca havia votado em candidatos da esquerda. Na eleição presidencial daquele ano, não foi diferente. Escolheu José Serra na esperança de impedir que o PT tomasse seus 300 hectares de terra seca para fazer a reforma agrária no Cariri paraibano. Com a vitória de Lula, esperou pelo pior, mas o pior não veio.
Quatro anos depois, numa tarde de domingo, seu Durval foi de caminhão para Campina Grande para assistir a um comício do presidente petista, candidato a reeleição.
Seu filho, doutor em História pela Unicamp, professor das universidades federais do Rio Grande do Norte (UFRN) e de Pernambuco (UFPE) e autor de A invenção do Nordeste, livro que é referência obrigatória para entender a região, foi quem narrou essa história.
“Meu pai vendia leite a 30 centavos por litro para um atravessador local, logo no início do governo Lula, de um dia para o outro, passou a vender por 0,70 para o Programa de Aquisição de Alimentos. Com o Luz para Todos, a energia elétrica chegou na sua propriedade, então ele pôde, pela primeira vez na vida, dormir com ventilador, assistir televisão em casa, beber água da geladeira e ligar uma bomba para irrigar parte da terra”, recorda Durval Muniz. A partir de 2006 até morrer aos 94 anos, todos os votos do pai do historiador foram para candidatos da esquerda.
Sem perder de vista a história contada por Durval Muniz sobre seu pai – vamos voltar a ela mais adiante -, conheça as seis razões do eleitorado nordestino saber exatamente o que está fazendo quando digita o 13 na urna eletrônica:
Citar pensadores como os pernambucanos Gilberto Freyre, Josué de Castro, Nélson Chaves e Paulo Freire; os baianos Anísio Teixeira e Ruy Barbosa; os paraibanos Ariano Suassuna e Celso Furtado; ou o potiguar Câmara Cascudo, realmente pode conter uma dose de bairrismo. No entanto, a análise de Durval Muniz desvenda como a cultura política do Nordeste está intimamente ligada ao pensamento desses personagens notáveis:
“O nordestino é menos autocentrado do que aqueles que vivem no centro do sistema. Quem é hegemônico, vê apenas a si mesmo. Quem está no centro, ou seja, no Sul ou no Sudeste, tem mais dificuldade de ver a periferia. Nós percebemos e pensamos o Brasil a partir da periferia, de maneira distinta de quem está no centro, até porque, muitas vezes precisamos reafirmar que fazemos parte do nacional, afinal, somos considerados como não pertencentes ao país”.
A partir do raciocínio de Muniz, endossado pelo jornalista, cientista social e doutor em Ciência Política pela UFPE, Juliano Domingues, explica-se porque o eleitorado bolsonarista concentrado nos estados das regiões Sul e Sudeste não compreende a opção dos nordestinos por Lula: “O centro é ignorante em relação à periferia”, crava Durval Muniz.
Todos os pesquisadores ouvidos pela Marco Zero são unânimes: durante os anos dos governos Lula e Dilma, o Estado brasileiro direcionou políticas públicas para a região e transformou sua economia. Foi a primeira vez na história da República que isso aconteceu.
Os efeitos dessas políticas, de acordo com a pernambucana Nara de Carvalho Pavão, PhD em Ciência Política pela Universidade de Notre Dame (Indiana, EUA) e pós-doutora pelo Centro de Estudos das Instituições Democráticas da Universidade Vanderbilt (Tennessee, EUA), mudaram o próprio perfil do Partido dos Trabalhadores. “O PT era um partido do Sudeste, associado à classe média de lá, a partir da luta dos metalúrgicos, de onde surge o partido. A partir de 2002, o PT ganha força no Nordeste e perde força no Sudeste, que é o que a gente observa até hoje”.
De Teresina, onde coordena o curso de Ciência Política da Universidade Federal do Piauí (UFPI), Vitor de Sandes Freitas, doutor pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), explica que “existe uma memória em relação a esse período do governo Lula que é bastante positiva. Por isso que é difícil, a curto prazo, Bolsonaro criar uma associação forte, um link forte, com o eleitorado de baixa renda, sobretudo no Nordeste, por isso ele tenta furar esse bloqueio recorrendo à pauta moral, em conexão com o público evangélico”.
Ao resultado do primeiro turno seguiu-se a reação nas redes sociais bolsonaristas contra a suposta venda de votos por parte dos eleitores dos estados nordestinos. Doutora em Ciência Política e líder do grupo de pesquisa Instituições, Comportamento político e Democracia da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Luciana Santana, é categórica ao rebater essa ideia: “É uma tese ridícula. Se houvesse algum sentido nisso, os percentuais da votação em Jair Bolsonaro no interior do Nordeste seriam semelhantes ao do Sul, Sudeste e Centro-Oeste, afinal o Auxílio Brasil alcançou a todos”.
Santana afirma que, ao contrário do senso comum e do preconceito, o eleitor do nordeste votou com a razão. “Foi o voto da racionalidade. Os homens e as mulheres da região têm clareza do quanto suas vidas e as de suas comunidades durante o período em que o PT governou o Brasil”.
Durval Muniz tem posição semelhante. “O derrame de R$ 54 bilhões para mudar votos não surtiu efeito no Nordeste. Nesse sentido, seria mais correto afirmar que os eleitores das outras regiões venderam seus votos”.
Para ele, a reação dos moradores do Sul e Sudeste resultam do tensionamento regional. “As políticas públicas petistas reduziram não apenas as desigualdades sociais, mas também as desigualdades regionais. Com Lula e Dilma, o Nordeste cresceu acima da média brasileira, igualando as taxas chinesas de crescimento, contrariando a crença hegemônica no Sul e Sudeste de que eles nos sustentam”.
Juliano Domingues adverte que a discussão sobre comportamento eleitoral, não é fácil nem simples. “Cada eleição tem a sua dinâmica. Em determinados momentos a escolha do voto pode ser explicado pela teoria sociológica, em outros a explicação psicológica é mais adequada e há ainda aqueles momentos em que a teoria da escolha racional explica mais do que a sociológica e psicológica. Quase sempre a explicação é um mix desses conceitos e, a depender da situação, algumas variáveis predominam mais do que outras”.
Domingues quer dizer que, além da razão, há outros aspectos que justificam a opção maciça pelo ex-presidente.
Nara Pavão ressalta que a melhora nas condições materiais de vida veio acompanhada do fato da região ter “experimentado um protagonismo identitário, com um presidente que não só vem da região, mas também usa isso no seu discurso”. Para ela, a “reorganização do padrão do voto” em uma nova cultura política “é construída através de políticas sólidas, políticas sociais, sólidas, mas também com bases identitárias do discurso mesmo, em uma associação que o PT e Lula tentaram fortalecer com a região”.
Neste ponto, Durval Muniz nos leva de volta à cena do seu pai, um ex-conservador, chorando durante a fala de Lula em Campina Grande, na longínqua campanha de 2006: “Meu pai se identificava com Lula, assim como milhões de nordestinos. Lula com chapéu de couro não soa falso, não é estranho. Ele é visto como um dos nossos, pensa o eleitor da região. Isso é legítimo, afinal a política tem essa dimensão passional, subjetiva, muito forte”.
Os oito anos de Lula no governo e pouco mais de cinco anos com Dilma Rousseff não foram o bastante para suprir as carências provocadas por mais de um século de ausência do Estado brasileiro no Nordeste. “Houve muitos avanços, mas não resolveu tudo. Nem era possível”, ressalta Luciana Santana. Assim, a inação do curto período da presidência de Michel Temer após o golpe de 2016 e os quase quatro anos de desmonte dos serviços públicos promovidos por Bolsonaro, foram sentidos de maneira mais intensa pela população da região.
E a comparação entre a situação atual e aquela experimentada anteriormente, reforça a rejeição ao atual presidente. Vitor Sandes acredita que “as políticas macroeconômicas adotadas, no sentido de maior austeridade, acaba impactando as pessoas. A população sente a corrosão dos salários, da renda, da capacidade do poder de compra. É inevitável que exista uma associação positiva em relação ao período anterior, o que vincula o eleitor nordestino com Lula e com todos os políticos lulistas”.
O colunista do Folha de S. Paulo e da Rádio Band FM, Reinaldo Azevedo, saiu em defesa do eleitor nordestino com a tese de que a “alfabetização política” dos nordestinos seria um obstáculo para Bolsonaro no segundo turno das eleições. O argumento do jornalista confrontava as ofensas dos perfis de extrema-direita contra o alegado “analfabetismo” da população do Nordeste. Durval Muniz acredita que Azevedo acertou em sua análise.
Em artigo publicado no Diário do Nordeste, o historiador paraibano repetiu o que disse em entrevista para a Marco Zero: “Letramento não tem a ver com alfabetização política. Se tivesse, o eleitorado com educação de nível não votaria majoritariamente em Bolsonaro”, ironiza Muniz, lembrando o elevado grau de alfabetização política dos agricultores analfabetos do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra e das antigas Ligas Camponesas.
“A pessoa politicamente alfabetizada conhece seus interesses, votando e mobilizando-se para defendê-los. Por que é aceitável que o banqueiro do Itaú vote de acordo com seus interesses financeiros e se condena o trabalhador que vota para manter o que conquistou?”, provoca o professor da UFPE e da UFRN.
Para ele, a explicação para esses diferentes entendimentos está no racismo: “Há um fundo racial nisso. Não houve migração em massa de europeus para o Nordeste, ao contrário da região Sul, que hoje é o oposto político e se julga branco, enquanto nossa região é mestiça, negra, considerada racialmente inferior pelos sulistas ‘europeus’.”
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Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.