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Náuseas, enjoo, cólica abdominal, letargia. Os sintomas iniciais da intoxicação por metanol podem se assemelhar à uma ressaca, mas é um quadro que pode evoluir para a morte. Usado como solvente na indústria, o metanol é altamente tóxico para seres humanos e pode estar no uísque que foi bebido por um grupo de homens em Lajedo, no agreste de Pernambuco. Um ficou cego e a polícia investiga se a morte de outros três têm relação com a contaminação da bebida. Apesar do cheiro e do gosto serem bastante semelhantes ao do etanol – o álcool consumido em bebidas –, os danos ao corpo são bem diferentes.
Ao ser ingerido, o metanol é metabolizado pelo fígado primeiro em formaldeído (o popular “formol”) e posteriormente em ácido fórmico, o que causa acidez no sangue, levando a uma acidose metabólica grave. “Como o fígado precisa de tempo para metabolizar o metanol até o ácido fórmico, os sintomas não são imediatos. A pessoa pode tomar a bebida em uma festa e ir para casa tranquilamente, não é como um ‘boa-noite cinderela’”, afirma o médico Pedro Alves, preceptor de clínica médica do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
O envenenamento por metanol se manifesta em média de 12 a 24 horas após a ingestão da bebida adulterada, com sintomas genéricos de uma intoxicação qualquer. “O que vai chamar atenção na evolução dos sintomas são as manifestações neurológicas e oftalmológicas: uma dor de cabeça muito forte, desorientação, vista turva. Mesmo algum tempo depois de beber, a pessoa ainda vai estar como se estivesse meio embriagada. Isso aí já é a toxicidade do metanol”, diz o médico.
Um artigo de revisão científica de intoxicações por metanol, publicado em 2022 na revista Archives of Toxicology por pesquisadores poloneses indicou que a intoxicação por metanol tem taxas de mortalidade variando entre 18% e 44%, segundo dados dos Estados Unidos. Danos à visão são comuns: estima-se que sintomas visuais ocorram em cerca de 50% dos casos.
“O ácido fórmico atinge o sistema nervoso central. E o nervo óptico faz parte do sistema nervoso central”, explica a oftalmoglogista Camilla Alliz, preceptora de catarata e retina na Fundação Altino Ventura (FAV). Chamada de Neuropatia Óptica Induzida por Metanol, essa condição é muito grave e pode resultar em deficiência visual de longo prazo ou irreversível, levando até à cegueira. “O consumo de apenas 4 ml de metanol pode ser suficiente para provocar a perda completa da visão”, alerta a oftalmologista. Os sintomas visuais normalmente se manifestam entre 12 e 48 horas após a exposição, segundo o artigo de 2022. De acordo com nota técnica da Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco (SES-PE) divulgada hoje, a dose oral letal do metanol é estimada em 30 a 240ml(20a150g).
Nervo ótico compõe o sistema nervoso central
Crédito: Ribhav Agrawal/PixabayQuando o metanol causa danos ao nervo óptico, a maioria dos casos é irreversível, diz Cláudia Alliz. “A grande preocupação é que, uma vez atingido o nervo óptico, muitas vezes não é possível reverter o quadro. O paciente pode primeiro perceber uma visão embaçada. Ou, muitas vezes, o paciente acorda e já não consegue enxergar, pode ser algo súbito”, alerta Alliz. Quando chega nesse ponto, é difícil que o paciente volte a enxergar. “Infelizmente, quando atinge o nervo óptico, que faz parte do sistema nervoso central, a maioria das vezes não se consegue reverter o dano. E não existe transplante de nervo óptico. Se a pessoa sentir qualquer alteração visual, precisa imediatamente ir na emergência”, avisa a médica.
A identificação e o tratamento rápidos são importantes para evitar a progressão da doença, mesmo que já se tenha algum déficit visual inicial. O diagnóstico precoce, porém, não é tão simples, por conta dos sintomas inespecíficos da intoxicação.
Existe um teste que aponta a presença de metanol, mas é pouco disponível no Brasil. “O que o médico pode fazer se o paciente chegar com histórico de ingestão de bebida alcoólica na noite ou no dia anterior, com sintomas persistentes, é ver se há acidose metabólica, que pode ser identificada através de um exame de sangue simples”, recomenda o médico Pedro Alves. A partir daí, o tratamento pode incluir antídotos contra o metanol e hemodiálise.
Há dois antídotos usados em hospitais para intoxicações por metanol. Um é o etanol puro e o outro o fomepizole (ou 4-metilpirazol) – ambos impedem a conversão do metanol no perigoso ácido fórmico. No Brasil, porém, não há disponibilidade do fomepizole. “É o mais indicado, pois não tem os efeitos colaterais do etanol”, pontua Pedro Alves.
O tratamento, então, é feito com etanol puro na veia, que também não está plenamente disponível nos hospitais e deve ser solicitado ao Centro de Informação e Assistência Toxicológica de Pernambuco (CIAtox) mais próximo. Mas até o etanol está em escassez: em nota na terça-feira (30), o Centro de Informação e Assistência Toxicológica (CIATox) da Unicamp apontou que o Brasil não tem estoque suficiente de antídotos para tratar muitos casos de intoxicação por metanol. Já a Associação Brasileira de Centros de Informação e Assistência Toxicológica (Abracit) cobrou a incorporação do fomepizole ao Sistema Único de Saúde (SUS).
A base científica para o uso do etanol puro é que ele compete com o metanol pelo metabolismo no fígado, e a enzima do fígado que realiza essa conversão, a álcool desidrogenase (ADH), tem uma afinidade até 20 vezes maior pelo etanol do que pelo metanol. “É como se o metanol e o etanol estivessem competindo para serem metabolizados por essas enzimas hepáticas. Como o fígado tem uma predisposição a metabolizar preferencialmente o etanol, ao injetar etanol no paciente o fígado fica ocupado, fazendo com que o metanol não metabolizado seja eliminado do corpo pela urina”, explica Pedro Alves.
Embora o álcool comum encontrado nas bebidas seja de fato um antídoto que pode salvar vidas em casos de intoxicação por metanol, não é recomendado que ele seja administrado por meio do consumo de bebidas alcoólicas, devido aos riscos e à falta de controle. “A pessoa pode entrar em coma alcoólico, por exemplo”, diz Pedro Alves. No ambiente hospitalar (com etanol venoso), a dosagem é monitorada, e o paciente é acompanhado de perto, o que não ocorre na ingestão caseira.
A terapia combinada, que inclui antídoto e hemodiálise, é a abordagem preferencial para casos graves, pois permite a remoção acelerada e simultânea tanto do metanol quanto do ácido fórmico.
Enquanto as investigações policiais e epidemiológicas estão em curso e não se sabe ainda a origem e distribuição dessas bebidas contaminadas com metanol em Pernambuco, os médicos recomendam que as pessoas redobrem a atenção ao comprar bebidas alcóolicas.
Foi divulgada no começo da noite desta quarta-feira (01) uma nota técnica conjunta da Secretaria Executiva de Vigilância em Saúde e Atenção Primária (SEVSAP) e a Secretaria Executiva de Atenção à Saúde (SEAS). É um alerta sobre risco de intoxicação exógena por metanol associada ao consumo de bebidas alcoólicas adulteradas.
No texto, a nota afirma que o padrão identificado nos casos de São Paulo – mais de 35 sob suspeita – diferem dos registros anteriores no país. “Historicamente, as intoxicações por metanol ocorriam predominantemente em populações em situação de vulnerabilidade social, relacionadas à ingestão de álcool combustível (etanol automotivo) adulterado com metanol. No entanto, os casos recentes envolvem indivíduos em contextos sociais de consumo — como bares, festas e residências — com relato de ingestão de bebidas como gin, uísque, vodca e outras destiladas, de diferentes marcas e procedências”.
A nota, voltada para profissionais de saúde, estabelece os procedimentos que devem ser adotados em suspeita de intoxicação por metanol e ficará disponível no site da Secretaria Estadual de Saúde.
Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org