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Crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo
Depois da revolução digital, a realidade de muitos trabalhadores se tornou mais parecida com a distopia tecnológica de um episódio do seriado Black Mirror, da Netflix, do que com o ‘homem-máquina’ de Charles Chaplin, no filme “Tempos Modernos”. Nas cenas atuais, o trabalho é demandado nas telas dos smartphones por aplicativos de entregas como Rappi, Uber e iFood, que arregimentam uma mão de obra barata, atraída pela promessa do ‘seja você seu próprio chefe’. De fato, não há patrão ou folha de ponto nessas plataformas. Mas o que para uns quer dizer liberdade, para outros significa a fragilização dos direitos trabalhistas.
É um novo hábito de consumo global. Aplicativos de transporte e de entrega de comida devem ultrapassar a casa dos US$ 130 bilhões de faturamento em 2023 no mundo. No Brasil, pelo menos 5,5 mil pessoas auferiram receitas com aplicativos no ano passado, segundo dados do Instituto Locomotiva. E o avanço do desemprego no país fez dessas ferramentas, que poderiam ser apenas um complemento nos ganhos, a principal fonte de renda de muitos trabalhadores brasileiros.
As facilidades de cadastramento e a flexibilidade de horários são apresentadas como vantagens. Geralmente, para se tornar entregador de um aplicativo é preciso apenas ser maior de idade, ter um meio de transporte (um carro, uma moto ou até uma bicicleta) e fazer um cadastro on-line. Também é preciso comprar a mochila de entregas, cujo valor varia de empresa para empresa. Além disso o entregador faz seu horário, porque só precisa ligar o aplicativo quando está com tempo disponível.
Na prática, contudo, a rotina é menos independente. A falta do vínculo trabalhista deixa a remuneração nas mãos da produtividade. O entregador está sempre a postos, muitas vezes sua jornada diária chega a 12 a 15 horas de trabalho, de domingo a domingo, mas ele só recebe quando é demandado pelo aplicativo. “É uma rotina exaustiva, totalmente desvinculada de benefícios, como os previdenciários, porém não das obrigações do empregado”, apontou a procuradora do Ministério Público do Trabalho (MPT) em Pernambuco, Vanessa Patriota.
Vanessa faz parte de um grupo de trabalho do MPT que pesquisa o fenômeno chamado de “uberização” do trabalho. O fenômeno leva o nome da empresa que é a mais emblemática quando se discutem as novas relações de trabalho nas empresas digitais, mas não se resume apenas a este aplicativo de transporte. Plataformas de entrega de comida e de outros itens, como o caso da startup colombiana Rappi, que promete “entregar qualquer coisa em minutos”, também fazem parte dessa nova revolução no mundo do trabalho.
André Luiz Ferreira (24) trabalha diariamente das 8h às 23h. Em cima de uma moto, debaixo de sol e de chuva, ele faz entregas pelo Rappi e pelo iBoltt, app desenvolvido em Pernambuco. Chega a rodar até 100 quilômetros nos dias de maior movimento. “Paro apenas para almoçar a marmita que minha esposa prepara. É engraçado porque às vezes acabei de entregar o almoço que alguém pediu em um restaurante”, contou.
O descanso acontece apenas nas terças-feiras, quando o fluxo de pedidos é mais baixo. Na maioria das vezes, as pessoas pedem mais comida e remédios, segundo o entregador, que estranha o fato de muitos clientes pagarem taxa de entrega quando moram perto do estabelecimento. “Já entreguei um remédio para uma pessoa que morava na esquina da farmácia”, lembrou André, sempre de olho na tela do celular para acompanhar os chamados.
Quando um pedido chega, André tem que correr para atender. O aplicativo determina um tempo máximo que, se excedido, termina gerando algum tipo de penalidade para o trabalhador, como multas. Normalmente o tempo é de cinco minutos, mas depende do local de entrega. Não há possibilidade de justificar o atraso, por exemplo, por causa do trânsito intenso ou de um pneu furado.
Com apenas o segundo grau e desempregado há dois meses, André não tem CNJP, plano de saúde, seguro para a moto e nem contribui com a Previdência. Mas ele pensa sobre essas coisas. E quer tê-las. “Aqui não é um plano de futuro, vejo como algo passageiro porque é cansativo e paga mal. Quando levo compras de supermercado, como feijão, arroz, chego em casa com as costas doendo”.
Há um ponto cego no sistema de remuneração e de monetização dos aplicativos de entregas. A maioria dos entregadores é incapaz de dizer como o sistema de remuneração funciona, porque tudo é variável e pouco transparente.
O maior rendimento de André com os aplicativos chegou a R$ 900 no mês, excluindo os gastos com combustível. Ele não sabe dizer exatamente qual sua média de rendimento por quantidade de entregas, por quilômetro rodado ou por horas trabalhadas. De acordo com os aplicativos, uma série de fatores, como quilometragem, localização, complexidade do pedido e até fatores climáticos influenciam o cálculo da remuneração de quem faz a entrega. Tudo é determinado pelos algoritmos de cada empresa.
Quando o pedido entra, o entregador só visualiza quanto vai receber. Não sabe, por exemplo, qual foi o valor cobrado ao cliente, que aparece apenas na nota de compra. “Pela nossa experiência, se alguém pede uma pizza que custa R$ 50, já com a taxa de entrega, o entregador não fica nem com 10% desse valor”, calcula o presidente do Sindicato dos Motofrentistas de Pernambuco, Francisco Machado. Ele critica a falta de clareza das plataformas ao informarem quanto fica com o entregador, com o estabelecimento fornecedor da mercadoria e quanto vai para o aplicativo.
Essas questões permanecem em aberto. As empresas procuradas pela reportagem (iFood, Uber Eats e Rappi) não detalharam seus sistemas de remuneração e de monetização. Também não informam como o algoritmo calcula as variáveis envolvidas em cada entrega, e nem se há diferentes taxas mínimas de frete nas capitais brasileiras. Na tentativa de encontrar estimativas sobre essas questões, conversamos com vários entregadores. Eles explicaram que as empresas têm uma tarifa mínima de frete para deslocamentos de até três quilômetros.
Para exemplificar, consideramos as principais empresas do mercado. No caso do Rappi, segundo os entregadores, essa tarifa mínima no Recife se aproxima dos R$ 4,30. Já no Ifood, o valor gira em torno de R$ 5 e de R$ 3,95 no Uber Eats. Essa ‘tabela de frete’ também muda de acordo com o estabelecimento.
“No MC Donalds é R$ 4,40 e no Carrefour é R$ 7,65”, conta um ciclista de 19 anos, que nunca trabalhou com carteira assinada. Sentado em uma praça na Zona Norte do Recife, onde vários entregadores de aplicativos costumam se reunir, ele contou que trabalha com entregas pelo Rappi. Preferiu não se identificar com medo de ser banido do aplicativo. Por dia, o ciclista chega a rodar até 20 quilômetros, cortando carros no trânsito, sem capacete ou qualquer equipamento de proteção. Fica confuso quando perguntado sobre seus rendimentos. “Sei que fiz R$ 500 em 15 dias”, contou.
Em algumas plataformas há um sistema de saques que termina dilapidando ainda mais os ganhos dos entregadores. Quando o pagamento do pedido é feito em dinheiro, o entregador fica ‘devendo’ o valor ao aplicativo. Em alguns casos, como no Rappi, os pagamentos são administrados por outro app chamado SmartMEI, que cobra uma taxa de 1,99% mais R$ 7 por retirada, ou seja, o trabalhador não tem a opção de receber seus vencimentos num banco que escolher e tem de pagar para receber. O saque sem taxas é permitido apenas na primeira quarta-feira do mês. Não conseguimos contato com a startup brasileira Smart MEI. O Rappi não informou sobre sua relação com a empresa.
No sistema de remuneração, ainda existem as premiações. As plataformas lançam metas de entregas em determinado período de tempo, associada a um ganho extra. “Muitos narram que o próprio aplicativo não direciona os pedidos necessários para que o profissional bata a meta. Ou seja, fazem joguinhos para incentivar o trabalho em feriados ou em lugares arriscados”, analisa a pesquisadora da Unicamp, Ludmila Abílio, que estuda a uberização do trabalho. O sistema de monetização dos aplicativos também é obscuro. Segundo a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), a líder do mercado, que é a iFood, cobra 25% do valor do pedido para o restaurante parceiro. Neste valor já está embutida a taxa de entrega”, detalhou o presidente da Abrasel, André Araújo. Mas esse valor também varia a depender do contrato entre as empresas, que podem negociar promoções nos aplicativos, por exemplo.
“Muitos restaurantes demitiram as equipes de delivery, porque os custos com salários e encargos sociais são bem mais altos”, considerou o presidente da Abrasel. Ele lembrou que 50% dos estabelecimentos do setor de alimentação fora de casa já usam os apps para entregas, de acordo com pesquisa do Sebrae. “Diante das mudanças dos hábitos dos consumidores, é quase impossível para um restaurante ficar de fora dessas plataformas”, atesta.
Empregado ou empreendedor?
“Eu recebo ordem. Eu sou subordinado. Então, eu tenho um vínculo de trabalho”, afirmou o presidente da Associação de Motofrentistas de Aplicativos em Pernambuco, Rodrigo Lopes da Silva, durante audiência pública que discutiu o trabalho em aplicativos na Assembleia Legislativa de Pernambuco, no dia 28 de agosto. Nenhum representante das empresas de entrega compareceu ao debate chamado pela Comissão de Direitos Humanos da Alepe.
Poucos entregadores estavam presentes porque a sessão aconteceu próximo ao horário de almoço, quando a demanda nos aplicativos é intensa. Os que compareceram ouviram a explicação da procuradora do Trabalho Vanessa Patriota sobre as relações que surgiram na esteira do avanço tecnológico e criaram um novo regime de trabalho, o da “programação algorítmica”. “Quem controla não é mais uma engrenagem ou um patrão. A subordinação não é aquela onde se dá apenas ordens diretas, é uma subordinação cibernética, onde os comandos são dados por um software.”
Nesta nova configuração, a figura do trabalhador independente ganha força, explicou, por telefone, a pesquisadora da Unicamp Ludmila Abílio. “Mas a dose de autonomia é mitigada pela presença do algoritmo. O entregador teoricamente escolhe que horas vai trabalhar. As campanhas de marketing dos aplicativos vendem a ideia de que o trabalhador é um empreendedor e de que elas são apenas intermediadoras dos negócios. Mas para cumprir as metas que o programa determina, o entregador precisa abrir mão da liberdade”.
“Como os aplicativos ditam a remuneração, orientam metas de trabalho, criam um sistema de avaliação (com notas dadas pelos clientes) e dizem como o trabalhador deve se portar, não resta dúvida de que essas empresas não são simples intermediadoras de transações, como se apresentam, mas que assumem o papel de empregador”, acrescentou a promotora do MPT.
A subordinação cibernética já é reconhecida no artigo sexto da CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas) brasileira, mas a luta dos órgãos de fiscalização do trabalho é para que haja o reconhecimento do vínculo empregatício para quem trabalha com essas ferramentas. Com tanta tecnologia, nunca foi tão fácil fiscalizar o trabalho, afinal está tudo registrado no aplicativo. “Na contramão disso, no Brasil, vivemos um momento em que todos os direitos sociais estão sendo dilapidados”, considerou o membro da comissão de direito dos trabalhadores da OAB em Pernambuco, João Galamba.
Algumas decisões recentes da justiça em países da Europa abriram precedente para esse debate. No Brasil, a Uber já se tornou alvo de ação civil pública do MPT por questões trabalhistas. Em São Paulo, o iFood e a Rapiddo, do mesmo grupo econômico, foram alvo de ação civil pública por “fraudar as normas trabalhistas, sonegando a relação de emprego mantida com os entregadores e condutores profissionais, bem como por descumprirem todas as normas de saúde e segurança que regem o trabalho dos motofretistas”.
Quem se responsabiliza?
O motociclista Renê Rodrigues, de 30 anos, não teve direito a seguro ou assistência médica quando foi atingido por um carro na última terça-feira (dia 3) enquanto fazia entregas pelo Rappi. Por sorte, ele sofreu apenas ferimentos leves. A moto está totalmente quebrada. “Não recebi qualquer ajuda para cobrir o prejuízo”, lamentou.
De janeiro a agosto, a quantidade de acidentes de moto aumentou 17% em Pernambuco. “Praticamente a totalidade das ocorrências estão relacionadas com o trabalho em aplicativos de entregas”, segundo o presidente do Sindicato dos Motofrentistas de Pernambuco, Francisco Machado. Ele reclamou que os entregadores de aplicativos fazem o trabalho de motofrentistas sem as garantias de direito da categoria.
Machado lembrou da morte de um motofrentista do Rappi em São Paulo, que sofreu um AVC durante uma entrega e foi ignorado pela empresa. Ele acredita que a formalização dessa mão de obra é um passo fundamental para proteção dos trabalhadores. “Um motofrentista que trabalha com carteira assinada tem direito ao auxílio coletivo de 30% de adicional de risco de vida, ao auxílio alimentação e ao salário, que geralmente é o mínimo”, explicou. Por outro lado, a categoria é obrigada a pagar pela placa vermelha, equipamentos de segurança e vistorias, despesas que os entregadores dos aplicativos não têm, o que gera uma concorrência desleal e tem levado muitas empresas de frete à falência.
“Todos os que trabalham com apps buscam a profissionalização porque sabem que o aplicativo pode ser hoje, mas pode não ser amanhã”, comentou o entregador André. Ele nunca sofreu um acidente, mas os ‘sustos’ são constantes. “Sempre que me vejo em uma situação de perigo, penso que posso não voltar para casa. Minha esposa está grávida de oito meses. Penso que posso não chegar a conhecer a minha filha por conta de um trabalho”.
O trabalho por demanda nas plataformas digitais é um caminho sem volta na opinião do vice-presidente da comissão do direito do trabalho da OAB-PE, João Fernando Amorim. “Perdemos uma oportunidade de ouro de fazer uma ampla discussão sobre essas novas modalidades de trabalho na reforma trabalhista. O que precisamos é criar mecanismos para proteger os trabalhadores. Quando o direito ignora a realidade, a realidade se vinga e ignora do direito”, alertou, citando o jurista francês George Riper.
Além das mudanças no ambiente da fiscalização, é preciso mudar também hábitos de consumo da sociedade e o pensamento dos trabalhadores. “É preciso acabar com o mantra de que é melhor ter qualquer trabalho do que nenhum porque isso é o privilégio da servidão”, diz a promotora do MPT Vanessa Patriota. “Também precisamos rever nossos hábitos de consumo. Será que nosso conforto vale o sacrifício de alguém?”
Jornalista formada pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) e pós-graduada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Foi repórter de Economia do jornal Folha de Pernambuco e assinou matérias no The Intercept Brasil, na Agência Pública, em publicações da Editora Abril e em outros veículos. Contribuiu com o projeto de Fact-Checking "Truco nos Estados" durante as eleições de 2018. É pesquisadora Nordeste do Atlas da Notícia, uma iniciativa de mapeamento do jornalismo no Brasil. Tem curso de Jornalismo de Dados pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e de Mídias Digitais, na Kings (UK).