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A montagem dos palcos está só no começo, as atrações nacionais nem desembarcaram, as costureiras dão os últimos retoques nos estandartes, o galo não interditou a ponte Duarte Coelho e as agremiações ainda vendem camisas ou promovem prévias para completar o orçamento da festa. Mesmo assim, nas comunidades e para os artistas populares, o carnaval do Recife começou faz tempo.
Há pelo menos 70 anos, a escolha da rainha e do rei do carnaval — ou rei momo — é um dos eventos populares que antecedem a folia e acabou sendo incorporado pelo poder público ao calendário oficial.
Sem nomes famosos e longe dos espaços nobres da festa, o concurso costuma ser ignorado pela mídia, mas não pelo povo. Na sexta-feira, 14 de fevereiro, o pátio de São Pedro, no bairro de São José, estava lotado para acompanhar a disputa. Este ano, 14 homens e 25 mulheres se apresentaram na tentativa de conquistar a coroa, o cetro, o conforto de passar o carnaval hospedado em um hotel da zona sul, com carro e motorista à disposição para levá-los a marcar presença nos palcos.
O prêmio em dinheiro também não é nada mau: R$ 30 mil para cada uma das majestades.
Doze jurados e juradas — secretários municipais, professores e gente ligada ao mundo da dança e das artes — avaliam o frevo no pé, figurino, desenvoltura no palco e como candidatos e candidatas se saem ao responder uma pergunta entregue pela organização com antecedência. Segundo o apresentador Albermar Araújo, diretor de Memória Social e Manifestações Culturais da prefeitura do Recife, a ideia é saber quem, além de ter talento, também sabe se virar na frente de um microfone e de
uma multidão.
Escolha do rei e rainha levou multidão ao pátio de São Pedro
Crédito: Arnaldo Sete/Marco ZeroO que o júri não tem condições de julgar são as dores e as esperanças que cada moça e cada rapaz levam para o palco.
Nos bastidores, minutos antes do início das apresentações, enquanto os músicos da Orquestra Popular do Recife, regidos pelo veterano maestro Ademir Araújo, o ambiente entre os concorrentes era de tranquilidade. Não havia aquela tensão e expectativa das grandes decisões.
De semblante sério, Jean Carlos da Silva aparentava ser um dos mais concentrados. No entanto, aceitou falar. Bailarino do Veneza Water Park, em Maria Farinha, aos 26 anos, era sua segunda participação no concurso. “Estou aqui porque, um pouquinho antes de morrer, um dos meus melhores
amigos me fez prometer que eu não iria desistir. Antes de fechar os olhos e partir, ele me disse a importância de continuar lutando para realizar nossos sonhos”, revelou, com ar ainda mais compenetrado do que no início da conversa.
O amigo em questão se chamava Luan Freitas, também dançarino e passista de frevo, morto ano passado por complicações da diabetes. Seu nome foi lembrado por outros competidores no palco.
O luto não era a única dor que Jean carregava. “Há dois dias sofri um acidente de moto, estou todo ralado”, explicou, apontando para perna direita, admitindo que as feridas provavelmente atrapalhariam sua apresentação. Se a dor física o incomodou, ninguém percebeu. Nos poucos minutos em que esteve no palco manteve o sorriso enquanto executava os difíceis passos do frevo.
Entre as mulheres, Lohana Lima contou que participa da competição para honrar a dívida que tem com frevo. E isso tem a ver com o fato de ter cursado Odontologia na UFPE: “A universidade é pública, mas se formar em odonto é caro, pois é preciso comprar todo o instrumental. E eu só consegui porque era passista de frevo, então era sempre chamada para me apresentar”.
Jean Carlos da Silva
Crédito: Arnaldo Sete/Marco ZeroLohana Lima
Crédito: Arnaldo Sete/Marco ZeroAlessya Rodrigues
Crédito: Arnaldo Sete/Marco ZeroAlém de trabalhar como dentista no Janga, em Paulista, Lohana também se tornou professora da disciplina de Cirurgia na universidade onde se formou. Ela concilia a profissão e a docência com a vida artística, dando vida à boneca do Mundo Bita. Onde arruma tempo pra tanta coisa? A resposta é imediata: “Sou muitas, igual ao carnaval de Pernambuco”.
Antes do resultado sair, Aléssya Rodrigues já se considerava vencedora. Mulher trans, ao subir no palco e fazer sua apresentação, ela realizou um dos sonhos de sua vida aos 35 anos, sete depois de fazer a transição de gênero. “Só o fato de estar aqui é uma vitória, é tudo pra mim”, contou. No palco, ela emocionou a plateia ao dizer que passou a infância e adolescência assistindo ao concurso no meio do povo, “ainda como um menino”.
A eleição de Célia Meira em 1987 foi um marco na história do concurso. Naquele ano, a prefeitura do Recife decidiu organizar e “democratizar” a escolha, transformada em evento, instituindo comissão julgadora e
promovendo uma festa no extinto Atlético Clube de Amadores, em Afogados. “Eu nem queria participar, pensei que era coisa para miss, sou baixinha, não sou modelo, mas fui assim mesmo”, recorda Célia, que na época era atriz e bailarina do Balé Popular do Recife.
Quando o mestre de cerimônias fez uma pergunta sobre arte erudita e popular, Célia começou a responder, mas logo afirmou que iria demonstrar, na prática, o que era a dança popular: “Tirei o sapato e comecei a frevar, indo até a frente do palco fazendo o ‘patinho’, um passo muito difícil, que a gente faz agachada. O público veio abaixo”.
Aquilo mudou para sempre os rumos do evento, que deixou de ser um concurso de beleza entre top models — tendência da época — para se transformar numa celebração para quem tem frevo no pé e compromisso com a cultura popular.
Na edição deste ano, Célia foi uma das ex-rainhas homenageadas pela prefeitura com uma nova faixa “real”.
Célia Meira
Crédito: Arnaldo Sete/Marco ZeroCom 39 concorrentes, 39 torcidas dividiram o espaço do pátio de São Pedro e fizeram uma festa barulhenta e alegre. A presença de pais, mães, irmãos, irmãs, primos e amigos dos candidatos e candidatas criaram um clima que era ao mesmo tempo de disputa e confraternização, afinal
muitas daquelas pessoas se conheciam de outros eventos e do convívio nas comunidades. Queixas mesmo só se ouviram as dirigidas aos cinegrafistas e fotógrafos que, por trás da mesa da comissão julgadora, atrapalhavam a visão.
Quem passava pelo palco era saudado com os gritos, balões, cartazes, apitos, enfim, tudo o que poderia ajudar a demonstrar apoio, para quem estivesse se apresentando percebesse que não estava só. A torcida da candidata Larissa Carla, por exemplo, levou balões pretos e brancos, as cores do figurino que ela vestia. Já o concorrente José Tiago Oliveira, o “Tor”, frevou ao som dos metais da orquestra e da estridência dos berros da prima Silvana.
E era no meio do público que Victoria Marques do Nascimento e José Roberto Severino da Silva estavam quando seus nomes foram anunciados como a rainha e o rei do carnaval do Recife em 2025.
Enquanto os vencedores abraçavam quem aparecesse pela frente no caminho de volta ao palco para receber as respectivas coroas, seus parentes e amigos contaram um pouco sobre a trajetória de cada um.
Silvana apoiou primo José Tiago com fervor
Crédito: Arnaldo Sete/Marco ZeroVictoria é influencer com mais de 500 mil seguidores no Instagram, tem 27 anos e dança “desde que se entende por gente”, segundo seu irmão Vinícius Leonam. Ao se apresentar, ela já havia falado do seu compromisso com a ancestralidade, mas, depois da coroação, homenageou sua mãe Salete, falecida em outubro de 2023.
Eufórico, Márcio, amigo e colega de trabalho do rei José Roberto Severino, disse que ele é mais conhecido pelo apelido “J.Bill“. Formado em Serviço Social e cursando uma segunda graduação em Pedagogia, aos 28 anos, “J.Bill” também é dançarino da quadrilha Raio de Sol, multicampeã
dos festejos juninos, e trabalha em uma creche no Alto Treze de Maio, zona norte do Recife. “Escreva que ele é o cara, simplesmente o cara”, pediu Márcio. Pedido atendido.
No palco, “J.Bill” afirmou que esse reinado será da “negritude”. Lá em cima, Victoria acabou fazendo uma homenagem involuntária a sua antecessora Célia Meira, a rainha de 1987, ao tirar os sandálias para
frevar com mais liberdade.
J.Bill e Victoria Marques, prometeram reinado da negritude
Crédito: Arnaldo Sete/Marco ZeroJornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.