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Missa do Vaqueiro terá duas edições em meio a disputas e irregularidades em Serrita

Maria Carolina Santos / 21/05/2025
A foto mostra um grupo de pessoas posando para uma foto em um evento culturalno Nordeste brasileiro. Ao fundo, há um painel com elementos gráficos coloridos e o nome do evento: Festa do Jacó, junto com a imagem estilizada de um vaqueiro montado a cavalo, em azul. O cenário está iluminado com luzes quentes e acolhedoras. No centro da imagem, há 10 pessoas lado a lado, sorrindo e olhando para as câmeras. Muitas delas estão vestidas com roupas típicas de vaqueiro nordestino: chapéus de couro, gibões (espécie de casaco de couro), botas e roupas de tom terroso. Entre elas, há também mulheres com vestidos e trajes que combinam com o estilo regional, misturando tradição e modernidade. Alguns participantes seguram microfones, indicando que podem ser artistas ou representantes do evento. Na frente, várias pessoas estão tirando fotos e filmando o grupo com celulares e câmeras profissionais.

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

Seis recepcionistas com vestidos pretos e curtos recebem os convidados na área de shows do Terraço Carvalheira, um bar e restaurante bem espaçoso no topo de um dos estacionamentos do Shopping Recife. Dentro, mesas se espalham pelo amplo salão, que conta com dois bufês de comida quente – o destaque vai para o croquete de costela –, dois telões, um palco e garçons passando com suco, refrigerante e água. Os cantores Wallas Arrais, Priscila Senna e Márcia Felipe fazem rápidas apresentações no evento que foi aberto pelo Quinteto Violado tocando ao vivo com Josildo Sá. O astro João Gomes era esperado, mas acabou não comparecendo naquela noite de quarta-feira de chuvas fortes e trânsito abominável.

Apesar do evento ser no Recife, a maioria dos convidados veio do sertão. Vários deles, influencers locais. Há encontros animados entre políticos que vão do centrão até a extrema direita. Os deputados estaduais Jarbas Filho (MDB), Roberta Arraes (PP) e Aglailson Victor (PSB) sobem no palco, assim como o deputado federal André Ferreira (PL). Anderson Ferreira (PL), o candidato bolsonarista ao governo de Pernambuco na eleição passada, chega no finalzinho, a tempo de dar um abraço no irmão e no prefeito de Serrita, Aleudo Benedito (MDB).

Estamos na coletiva de imprensa da Festa do Jacó (assim mesmo, “do”, como os sudestinos falam) e da Missa do Vaqueiro, que acontece anualmente em Serrita, no sertão central.

Ou, pelo menos, de uma das duas Missas do Vaqueiro deste ano.

Ainda que tenha sido anunciada como uma coletiva de imprensa, o que ocorreu foi bem além disso. Um evento super produzido – que chegou a ter transmissão ao vivo em telão em Salgueiro – para anunciar com pompa e circunstância uma mega festa com shows de Wesley Safadão e Joelma, além dos artistas já citados nos parágrafos acima e outros mais.

Mas se engana quem pensa que o evento deixou os vaqueiros de lado. Seja como uma homenagem sincera ou uma forma de se blindar das críticas, houve um cortejo de vaqueiros de Serrita, trajados no terno de couro completo. Foram para frente do palco tocando chocalho e foram ovacionados. O prefeito estava ele próprio trajado como vaqueiro, sempre ao lado da primeira dama.

No telão, foi exibido um documentário com imagens de arquivo e da Missa do Vaqueiro de 2023 contando um pouco da sua história: desde a criação com o então padre João Câncio e Luiz Gonzaga, no ano de 1970, até a super estrutura com show de Gusttavo Lima – cujo cachê custou R$800 mil para a prefeitura de Serrita.

É até difícil explicar como uma missa em homenagem a um vaqueiro assassinado nas quebradas do sertão se transformou em motivo para uma megafesta. A trama envolve um prefeito ambicioso – questionado pelo Ministério Público de Pernambuco (MPPE) e multado pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE-PE) –, a viúva do ex-padre João Câncio e uma série de conflitos e irregularidades que levaram às duas missas do vaqueiro neste 2025.

A foto mostra Aleudo Benedito, prefeito de Serrita (PE), em destaque, usando traje típico de vaqueiro nordestino. Ele veste um colete de couro verde e laranja com bordados e usa um chapéu de couro combinando. Está em ambiente interno com iluminação quente, que destaca seu rosto e roupas. Aleudo olha sério para a esquerda, enquanto responde a uma entrevista. Um celular azul aparece próximo a ele, com uma mão segurando o aparelho celular. O fundo está escuro e desfocado, mantendo o foco totalmente sobre ele.

Aleudo não seguiu recomendações do MP e TCE

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

A Festa do Jacó, recomendações e multa

Raimundo Jacó era o nome do primo vaqueiro de Luiz Gonzaga assassinado em 1954, em um crime sem punição. Em 2022, o prefeito Aleudo Benedito enviou para a Câmara de Vereadores de Serrita um pedido para que a festa da Missa do Vaqueiro mudasse de nome para Festa do Jacó. Foi uma celeuma na cidade e, sem a maioria dos vereadores, ele não conseguiu a mudança. Isso, contudo, não impediu que no ano seguinte ele gastasse milhões de reais com atrações no parque Estadual Padre Câncio, antigo sítio Lajes, onde acontecem os eventos. Além de Gusttavo Lima, teve Priscila Senna, que volta este ano, Xand Avião e Nattan, entre outros.

Em um cidade com menos de 20 mil habitantes, onde a mortalidade infantil é maior que a do Amapá (o estado com o maior índice do Brasil) e há falta de medicamentos na rede de atenção básica à saúde, a prefeitura gastou R$3.758.700 na festa de 2023, apesar de recomendação prévia do MPPE para reduzir os gastos.

O Tribunal de Contas de Pernambuco TCE-PE fez uma auditoria apontando diversas irregularidades nos shows de 2023, como o superfaturamento na contratação de artistas. Além disso, o TCE questionou os gastos elevados com o evento em relação à situação financeira do município, especialmente considerando a declaração de situação de emergência na zona rural de Serrita devido à estiagem daquele ano.

Na auditoria, destacou-se a habilitação indevida da empresa Andrew Balbino Gomes, organizadora do evento. A empresa não apresentou o balanço patrimonial de 2022, documento obrigatório para comprovar sua capacidade econômico-financeira na licitação. Além disso, a prefeitura concedeu a área pública (o parque João Câncio) destinada à festa sem qualquer estudo técnico que justificasse a decisão.

Em fevereiro deste ano, a Segunda Câmara do TCE-PE julgou irregulares a licitação e os contratos firmados pela prefeitura de Serrita. Foram aplicadas multas de R$10.650,97 ao prefeito Aleudo Benedito, e ao ex-secretário adjunto de Cultura, João Filho Sá Gonçalves. A então secretária de Administração, Bruna Quezado, e o pregoeiro, Aroldo Rosendo da Silva, também foram multados em R$5.325,48 cada.

Em abril deste ano, o reeleito Aleudo Benedito finalmente conseguiu que a Câmara de Vereadores – na nova legislatura – votasse a favor da criação da tal Festa do Jacó, que já surge envolta em possíveis irregularidades.

Pouco antes da aprovação, o Ministério Público emitiu uma recomendação afirmando que a nova festa representa uma substituição simbólica indevida da Missa do Vaqueiro, que é patrimônio cultural imaterial protegido por lei estadual. Além disso, a recomendação destaca que o projeto de lei inclui uma dotação orçamentária de forma irregular, o que afronta a legislação orçamentária. O Ministério Público então recomendou que o prefeito não sancionasse a lei “ou, caso já o tenha feito, que tome medidas para sua revogação ou não execução”. Nada disso foi feito.

Motivos para o MPPE pedir a revogação da lei que cria a Festa do Jacó

  • Violação ao patrimônio cultural protegido por legislação estadual e tentativa de substituição simbólica da tradicional “Missa do Vaqueiro”;
  • Invasão da competência legislativa do governo esrtadual em matéria de cultura e proteção dos bens imateriais;
  • Inobservância do termo de cessão, que veda a cessão total do evento pelo município;
  • Irregularidade formal da previsão de dotação orçamentária, em descompasso com o processo legislativo orçamentário e com o princípio da exclusividade

No ano passado, ano eleitoral, a Missa do Vaqueiro teve somente a celebração religiosa, sem shows. Agora, alheio a todas recomendações e multas, e com apoio do Governo do Estado, Aleudo Benedito dobrou a aposta na Festa do Jacó/Missa do Vaqueiro. O evento da prefeitura vai de 17 a 20 de julho, inclusive com shows após a missa, no domingo (20/07). Na festa de abertura, em entrevista à MZ, Aleudo Benedito calculou que o evento deste ano vai custar entre R$ 4,5 milhões e R$ 5 milhões.

Questionado quanto desse valor virá da prefeitura, Aleudo informou que ainda não sabe. “Mas 70% das atrações serão custeadas pelo Governo do Estado. A gente já tem essa garantia e espera uns R$3 milhões do governo”, afirmou. A Marco Zero perguntou à assessoria do governo de Raquel Lyra (PSD) quanto será investido na festa, mas ainda não recebeu a resposta.

O prefeito justifica que a criação da Festa do Jacó foi para conseguir mais recursos para o evento. “O Estado é laico e para a gente conseguir recursos com o Ministério do Turismo, da Cultura e também com o Governo do Estado, a gente precisava aprovar esse projeto de lei para que a gente pudesse fazer captação de recursos”, afirma, ainda que por décadas o Governo do Estado tenha feito investimentos na Missa do Vaqueiro. O prefeito também afirmou que os shows de 2023 movimentaram mais de R$ 30 milhões na região e que circularam cerca de 300 mil pessoas por Serrita, de acordo com pesquisa da própria prefeitura.

As duas Missas do Vaqueiro de Serrita

Até 2022, não era a prefeitura de Serrita quem rotineiramente organizava de fato a Missa do Vaqueiro, que sempre teve uma parte cultural, com vaquejada, pega de boi e shows, geralmente de forró pé-de-serra, em palcos bem mais modestos. No final de 2021, a prefeitura aceitou a cessão do Parque Estadual João Câncio feita pelo Governo do Estado. E rompeu de vez as relações com a Fundação Padre Câncio, presidida pela viúva de João Câncio, Helena Câncio, que cuidava da produção da missa e da festa.

“A Fundação pode escolher estar ou não estar na Missa do Vaqueiro, mas é um compromisso que temos com a memória de João Câncio, que idealizou a missa com Luiz Gonzaga e a ajuda de tantas outras pessoas, como Pedro Bandeira e Janduhy Finizola. São 55 anos de trabalho, quase 30 só pela Fundação. A gente até preferia não estar envolvido nessas questões, porque envolve também questão econômica, política. Na década de 1980, João Câncio já enfrentava muitas perseguições. A gente nem se sentia seguro, mas a responsabilidade com a memória dele nos fez seguir adiante”, diz Helena Câncio. “A gente se envergonha de ver pesquisadores de outros países irem para a Missa do Vaqueiro e a história estar tão descaracterizada. Em 2023, o município não cedeu o uso do solo para a Fundação fazer absolutamente nada. E foi uma reclamação unânime dos vaqueiros e do público de que a missa estava descaracterizada, que não tinha aboios. O foco do município é excluir a fundação da história”, reclama.

Do outro lado, os apoiadores do prefeito dizem que essa tal pureza sertaneja não era seguida com muito afinco pela Fundação e citam um show do cantor romântico Fábio Júnior, em 2011. “Por que a gente contratou Fábio Júnior? Porque na época fomos dialogar com o município, que pediu a contratação desse artista que estava aqui nas mediações, se não me engano, em Sertânia. Não é que ele se encaixe no formato da Missa do Vaqueiro, mas cedemos no sentido de estar aceitando outras opiniões. Houve somente Fábio Júnior, o resto foi tudo forró”, defende Helena.

O fato é que a presidenta da Fundação João Câncio perdeu muitos apoios da classe artística quando a Missa do Vaqueiro de 2019 acabou em calote: a Empetur não aceitou a prestação de contas e não liberou aproximadamente R$ 500 mil prometidos para a festa. Assim, quase ninguém recebeu naquele ano. Helena Câncio conta que levou o caso para a Justiça, mas ainda não houve uma definição.

A foto mostra uma multidão participando de um evento tradicional no sertão, com muitos homens vestidos como vaqueiros nordestinos — usando chapéus e roupas de couro. Em destaque, um homem carrega uma menina no colo; ela está bocejando com os braços levantados sobre a cabeça. O clima é de celebração e devoção, sugerindo um momento de fé típico da missa do vaqueiro.
Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

O prefeito também usa esse episódio para justificar o motivo de ter se apossado da Missa do Vaqueiro. “Eu não vejo como uma disputa política. A Fundação vinha há muito tempo fazendo o evento e chegou num certo período onde a Fundação ficou inadimplente com o estado por falta de prestações de contas. O Governo do Estado não estava mais mandando recursos para a Fundação. Esse foi o maior agravante. E agora o município está querendo tomar conta do evento para entregar para o turista, entregar para os jacoseiros e jacoseiras uma Missa do Vaqueiro, uma Festa do Jacó e aumentar a altura do evento”, disse Aleudo à MZ.

Tradicionalmente, a Missa do Vaqueiro acontece na manhã do terceiro domingo de julho. Neste ano, essa será a data da missa da prefeitura. Quem vai celebrar é dom José Vicente e padre Antônio Júlio, contando com a presença de Elba Ramalho, Josildo Sá, Quinteto Violado e outros artistas.

No domingo seguinte, acontece a Missa do Vaqueiro promovida pela Fundação, tendo como celebrante o padre carioca Antônio Maria, que é um padre-cantor-celebridade no mundo católico.

O empresário mecenas

Sem dinheiro da prefeitura nem do governo, quem está apoiando a realização da Missa do Vaqueiro pela Fundação João Câncio é o empresário Antônio Souza, que tem negócios em segurança, tecnologia e até carros 4×4 – a Cab Motors, em Campina Grande. Cearense, mas morando em Araripina há muitos anos, ele é uma figura em ascensão na política sertaneja. Filiado ao partido Rede, tentou se candidatar à prefeitura da cidade em 2024 e agora está interessado em uma vaga no Senado. É “amigo pessoal” de Davi Alcolumbre (DEM), presidente do Senado, e apoia ações do padre progressista Júlio Lancellotti, em São Paulo.

No instagram, onde tem mais de 4 milhões de seguidores, frequentemente compartilha visitas ao padre Antônio Maria, que está levando para celebrar a Missa do Vaqueiro.

Helena Câncio já falou com o presidente da Empetur para liberar o parque João Câncio para a Missa do Vaqueiro do dia 27 de julho. Ela estava receosa de que o prefeito pudesse vetar a celebração. Em entrevista à MZ, Aleudo Benedito garantiu que não irá criar caso. “Quantas missas forem necessárias podem ser realizadas lá, a gente não vai barrar nenhuma”, disse.

AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org