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Especialista em contaminação por petróleo está perplexa: “Nunca vi tanta irresponsabilidade “

Raíssa Ebrahim / 22/11/2019

Foto: Agência de Notícias Universidad Nacional (Colômbia)

A Marco Zero Conteúdo conversou esta semana com a
especialista Lia Giraldo, a profissional mais experiente de Pernambuco
em contaminação por materiais tóxicos. Num papo de quase uma hora em sua
sala no Instituto Aggeu Magalhães, na Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE), ela teceu fortes críticas à omissão com a saúde e o
meio ambiente no desastre do petróleo que atingiu os nove Estados do
Nordeste e também o Espírito Santo e que segue impune há quase três
meses. Ela diz estar perplexa com a situação e afirma não haver
justificativa para tanto sigilo.

Lia é doutora em Ciências Médicas e pesquisadora titular aposentada da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Pioneira nos estudos sobre contaminação por benzeno (substância encontrada no petróleo), é uma cientista atuante na área da saúde pública. Nascida em São Paulo capital, trabalhou por 21 anos na região da Baixada Santista. Sua grande escola, porém, foi a região de Cubatão, onde houve, nas décadas de 1980 e 1990, graves problemas ambientais incluindo uma epidemia por intoxicação de benzeno.

Morando no Nordeste há muitos anos, Lia também integra o Grupo
Temático Saúde e Ambiente da Associação Brasileiro de Saúde Coletiva
(Abrasco). Apesar de aposentada, continua na ativa como docente no
Programa de Pós-graduação em Saúde Pública no Instituto Aggeu Magalhães e
no Doutorado em Saúde, Ambiente e Sociedade da Universidade Andina
Simón Bolivar, em Quito, no Equador.

Na sua avaliação e pela sua experiência, quais são os efeitos
do contato com o petróleo nesse desastre a curto, médio e longo prazos?

O petróleo é uma mistura de hidrocarbonetos aromáticos policíclicos,
às vezes também sulfúricos e com outros produtos, como metais. Alguns
desses produtos têm uma penetração muito rápida no organismo por
contatos pelas vias aéreas, pela pele e até por ingestão. A quantidade
não é muito importante no processo da intoxicação crônica. Os efeitos
agudos é que dependem mais da quantidade e também da susceptibilidade da
pessoa – se ela é, por exemplo, mais alérgica, se tem desnutrição, se é
uma criança, se é mais magra ou gorda. Isso porque os produtos são
lipofílicos, têm afinidade com a gordura, vão para os tecidos gordurosos
e vão sendo liberados aos poucos. Então pode-se ter efeitos agudos e
subagudos, mesmo meses depois.

Além disso, não se trata de uma única substância, é um conjunto.
Então, no organismo, elas são metabolizadas e, nesse processo, há
interações. Há uma variação de pessoa para pessoa e também
umavariabilidade da exposição. Então por isso temos que valorizar todos
que foram expostos, agudos, subagudos e crônicos. O grande problema
desses crônicos é que, além da gravidade, as pessoas não fazem a relação
com a exposição. Depois de um tempo,elas esquecem e os profissionais
de saúde não perguntam. E aí a doença muitas vezes é confundida com
outra causa e institui-se um tratamento que pode até complicar o quadro.

Nos efeitos mais agudos, tem-se principalmente os distúrbios
relacionados ao sistema nervoso central porque, ao entrar no organismo,
esses produtos vão direto para o cérebro e dão manifestações como
tontura, vômito, efeito de embriaguez, perda de atenção, tremor,
distúrbio de visão e até perda auditiva. Gestante expostas podem ter
efeitos no concepto, desde os mais leves, como baixo peso ao nascer, até
má formação congênita. Em Cubatão, tivemos casos de anencefalia, quando
não há cérebro, por exposição a hidrocarbonetos aromáticos. A
literatura científicas tem muita informação sobre isso.

Não quer dizer que isso vai acontecer, isso pode vir a acontecer.
Então, as pessoas precisam ser alertadas e é necessário fazer o
monitoramento das populações através de uma vigilância até para, caso
aconteça, termos uma linha de base para comparar antes e depois dessa
tragédia. Por isso, a pesquisa é importante. Porque já não temos medidas
de prevenção, o desastre já aconteceu e a exposição também. Claro que
há pessoas que continuam expostas, as que residem nos lugares afetados.
Nesse caso, temos que ter um cuidado ainda mais intenso.

Essa política de pública de vigilância está sendo feita?

Eu não sei por que tanta confusão diante de uma coisa que é
relativamente já estabelecida. Nós temos um Sistema Nacional de
Vigilância Epidemiológica para doenças infectocontagiosas,
transmissíveis. Quando entra no campo dos agravos, das doenças
relacionadas a fatores externos, acidentes e intoxicações exógenas, a
rede de saúde não foi treinada. Quando foi instalada a Vigilância
Epidemiológica de doenças transmissíveis, a rede foi capacitado várias
vezes para saber o que fazer e ter os protocolos bem estabelecidos.
Municípios e estados podem ter uma resolução para dizer “olha, para
essas áreas aqui atingidas, vamos fazer um acompanhamento mais próximo,
estabelecer fluxos”.

Isso é muito simples, a própria ficha de notificação de intoxicação
exógena a nível nacional pode ser adaptada para essa situação. Ela tem
campos pré-estabelecidos, e só a exposição já merece a notificação na
medida em que o efeito pode acontecer a longo prazo.

Então todas as pessoas acometidas ou expostas deveriam ser
notificadas, registradas no SUS (Sistema Único de Saúde) e passar por
consultas de uma vez a cada seis meses nos dois primeiros anos. E,
depois, uma vez por ano, durante 10 anos, no mínimo. E isso ainda não
está acontecendo. O que saiu recentemente no boletim epidemiológico a
nível nacional é de só notificar o caso exposto se for sintomático. Se
não for, ele terá uma espécie de registro, mas não terá notificação. Mas
para se fazer vigilância de longo prazo, é preciso notificar e
investigar.

Tem que haver protocolos de acompanhamento que dizem, por exemplo,
vamos fazer um exame hematológico, um teste neurológico, verificar se há
outros queixas, se é preciso investigação citogenética. Isso tudo pode
ser programado e ser realizado porque o sistema de saúde tem condições
de fazer isso.

Como a senhora se sente diante dessas falhas?

Eu, como sanitarista, fico constrangida de ver tanta confusão e
diz-que-diz em cima de uma coisa tão simples do ponto de vista
normativo, pois há base de conhecimento científico. É só uma questão de
organizar, nas áreas acometidas, o sistema de saúde para todos que se
expuseram: crianças, voluntários, garis, pescadores, etc. O Sistema de
Vigilância é nacional, mas estados e municípios, segundo suas
especificidades, podem fazer uma ampliação desse sistema. Não se pode
restringir, mas pode-se ampliar por razões peculiares da localidade.
Como temos uma cultura de tudo depender do nível federal, está todo
mundo aguardando que o Ministério da Saúde dê as diretrizes e se perde
tempo com isso, o nível federal é mais lento para tomar atitudes.

Quando a Abrasco solicitou que fosse decretada emergência de saúde
pública, era justamente para organizar o sistema na base, no local das
ocorrências. Isso deveria ser feito sempre que tivéssemos uma situação
em que a rede não está preparada, e a extensão desse desastre é muito
grande. Estou sendo solicitada para dar orientações sobre coisas básicas
que já deveriam estar internalizadas do processo. Há literatura, há
manuais estabelecidos pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e pela
Organização Pan Americana da Saúde (Opas).

Em 1984, São Paulo fez para Cubatão uma vigilância para cinco agravos
por causa do processo de poluição que havia lá e conseguimos descobrir
uma epidemia de benzenismo que sequer era conhecida antes. Tínhamos
algumas evidências, havia algumas denúncias de doenças ocupacionais
aumentadas e o estado tomou a frente para fazer uma vigilância
especializada específica para o município.

Poderíamos ter, para toda a costa brasileira, uma vigilância para
comunidades afetadas, aqueles que trabalham na limpeza e os voluntários.
Essa é uma medida de saúde pública muito básica. Eu fico constrangida
como sanitarista de ver a dificuldade de se colocar isso em prática. Não
são conhecimentos novos, coisas que não se sabe ou que não tenha
dispositivos técnicos e legislação. Nós temos todas as ferramentas e
deveríamos estar fazendo isso desde o começo do derramamento.

Por que essas medidas não estão sendo tomadas?

Essa situação é um indicador de que estamos com os profissionais de
saúde pública amarrados. Há medo de se tomar iniciativas, de fazer as
coisas acontecerem. Há burocratização, criação de problemas onde não há
problemas. É medo de que a população saiba das coisas, discuta e
reivindique. É medo de conflitos. Mas a área da saúde pública existe
justamente para resolver conflitos, que são inerentes aos problemas de
saúde pública, especialmente quando há questões ambientais e
ocupacionais, porque envolvem questões econômicas. Nós temos que
desembrulhar essa confusão, temos que ajudar a população a compreender o
problema para que ela seja partícipe do processo de vigilância, que não
pode ser feito só a quatro paredes.

Eu acredito que quanto mais se instituem carreiras públicas estáveis
por concurso mais liberdade o servidor tem de atuar. Quando se criam
processos de indicações políticas para cargos de gestão – e às vezes nem
é gestão de alto escalão – começa um processo de amarração porque os
conflitos de interesse passam a aparecer. Começa uma ocultação dos
problemas porque vai ferir interesses de um ou de outro.

A saúde pública, uma área sensível, deveria ser carreira de Estado,
em que os profissionais têm que ter liberdade para atuar e poder
proteger a saúde da população mesmo contrariando interesses políticos
locais. Como um promotor ou um juiz, essas pessoas precisam estar
protegidas e ter estabilidade. Especialmente nos municípios, há o
costume, quando se elege um prefeito, de mudar todo o staff, às vezes
até do Programa de Saúde da Família ou dos Agentes Comunitários de
Saúde.

No caso atual do Governo Federal, estamos vivendo uma situação em que
eu, na minha vida – eu tenho 72 anos e 44 anos de vida profissional -,
nunca vi, nem no período da ditadura militar, tanto diz-que-diz,
contrainformação e confusão por falas idiotas e contradições que
desconstroem o conhecimento, o saber e as coisas já estabelecidas,
criando confusão e tirando proveito da confusão para poder aparecer ou
empurrar o problema com a barriga. Essas questões são seríssimas e estão
sendo tratadas de forma banal.

Eu, sinceramente, nunca vi isso na minha vida. Nunca vi tamanha falta
de responsabilidade e compromisso com a saúde e o meio ambiente. Estou
perplexa. Já vivi como servidora pública e sempre me coloquei,
independente do governo, servindo, da melhor forma que pude, ao povo e
ao Estado. O que vemos atualmente é um atrelamento, uma inibição, um
intimidação que eu nunca vi antes. Acho que a forma, o destrato, a
indiferença, a falta de uma voz sábia e sensata está fazendo falta neste
País. Uma voz que oriente, que dê rumos, que coloque os problemas na
sua real dimensão, e não que tente esconder e criar desinformação. O que
estamos vivendo agora é também uma insegurança por desinformação, não é
só a falta de informação. Quando você cria uma confusão, é mais difícil
de consertar do que quando há um erro.

Qual a avaliação que a senhora fazsobre os sigilos impostos pelo Governo Bolsonaro?

Por que sigilo? Pela Lei da Transparência, essas coisas deveriam
estar em boletins com todas as informações, os resultados, as
metodologias empregadas para fazer as análises, qual foi o laboratório,
quem são as pessoas responsáveis, como foram coletadas as amostras. Isso
é importante. Se estou querendo verificar se o peixe está contaminado,
eu tenho que pegar o peixe do local afetado, não posso pegar na peixaria
sem saber de onde ele veio (Lia se refere à análise do Governo Federal
em parceria com a PUC/RIO, que coletou pescados congelados em
peixarias). E quem sabe mais do que os pescadores e as marisqueiras para
nos ajudar a indicar onde deve ser coletado esse pescado? Teve
contraprova? Tudo tem que ter contraprova, não se pode fazer isso num
lugar só.

E por que o segredo? Se não tem contaminação, não tem. Se tem, tem
que dizer qual é. Quais são os produtos, os componentes? Tudo isso tem
que ser aberto. Não se trata de uma guerra, em que você tem que ter
segredo. Isso tem que ser de domínio público, os pesquisadores têm que
acessar toda essa base de dados, até para podermos nos orientar e
interpretar resultados. Eu fui numa reunião do governo estadual
maravilhosa, com várias informações ricas, tudo feito um bunker,
fechado. Por que não tinha rádio, televisão, jornalista lá mostrando
para a população o que se estava discutindo? Eram medidas, informações,
balanços do que estava sendo feito, e não vi nada na imprensa.

Não tem por que não abrir, talvez seja uma cultura militar. Isso é
uma coisa tão ultrapassada, porque, você abrindo a informação, vai ter
um arranjo, uma organização dos fluxos de cuidado. Senão isso gera
também medo e insegurança. A minha geração de sanitarista era mais
madura, éramos já mais velhos quando nos tornamos sanitaristas. Hoje
vemos pessoas que terminaram a faculdade, fazem o curso de Saúde Pública
e vão trabalhar como gestores e têm insegurança porque há alguém acima
deles que vai dizer “isso aí não pode ser falado”. Isso inibe. Não
precisamos de sistemas paralelos de monitoramento, que acabam nascendo
porque o estado se omite ou atrasando demais as suas ações.

Como está a situação de quem trabalha na atividade pesqueira? Essas pessoas estão com a segurança alimentar em risco?

Quem depende da pesca para sobreviver, as populações tradicionais, os
pescadores e as marisqueiras, são as maiores vítimas dessa situação.
Eles estão que nem marisco: entre o rochedo e o mar, sofrendo a pressão
dos dois lados. Têm uma questão de sobrevivência econômica e vivem no
ambiente que foi contaminado. Estão com insegurança alimentar e sofrendo
uma pressão que vai gerar um comportamento de negar o problema ou
desconsiderar, banalizar tudo isso e continuar como se nada tivesse
acontecido para conseguir sobreviver. Ou ficar numa situação de revolta,
indignação e reação porque vão precisar se organizar e reagir para
poder se defender.

Temos aproveitadores neste País que estão torcendo para que eles
saíam do território, para explorar para o turismo e construir resorts.
Porque eles estão nas praias mais bonitas deste País. Pode ser que tenha
gente que vá se aproveitar da desgraça dessas pessoas, que têm que
estar preparados para resistir nesses territórios, que são deles, eles
moram lá, vivem disso. É necessário um apoio para que, enquanto a pesca
não for totalmente liberada e o comércio não for restaurado, eles tenham
um suporte econômico e social. A saúde pública também tem que
acompanhá-los, estar do lado, acolhê-los, monitorá-los. Mas não como se
fossem uma amostra de sangue, eles não são pedacinhos, eles são
íntegros. É uma população que antes tinha soberania alimentar,
completamente sustentável, e que perdeu essa condição por um desastre
que quem tem que assumir a responsabilidade é o Governo Federal e a
indústria de petróleo.

Independente do culpado, qual a responsabilidade da indústria do petróleo nesse desastre?

A indústria do petróleo contribui para um fundo porque é uma atividade de altíssimo risco para desastre. Esse recurso não foi liberado, ele deveria apoiar as populações tradicionais e dar sustentabilidade. Eu não vi até agora a Petrobras aparecer nesse problema. Na reunião do governo, se falou algo na casa de R$ 8 bilhões, é muito dinheiro. Isso tem que ser descontingenciado para esse desastre. É preciso incluir as marisqueiras nesse apoio, elas têm uma invisibilidade grande e são elas que ajudam a sustentar as famílias. Os jovens pescadores, desde 2008, não têm novas carteiras de pescadores (o Registro Geral da Pesca – RGP). Eles estão pescando com os pais que têm o registro, mas não estão legalizados. As crianças que vivem na areia e no mangue contaminado precisam ser acompanhadas no longuíssimo prazo para ter um programa especial da saúde ambiental infantil, que já tem linha da Opas e da OMS. Tudo isso é insegurança para essa população.

AUTOR
Foto Raíssa Ebrahim
Raíssa Ebrahim

Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com