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Esquerda e direita já escrevem nas ruas um conflito anunciado

Marco Zero Conteúdo / 24/08/2015

Por Vasconcelo Quadros

Brasília – Os protestos do domingo 16 levaram ao governo um alívio e uma preocupação. Não foi a “bala de prata” que a oposição esperava para derrubar a presidente Dilma, mas colocaram duas novidades no conturbado cenário: o “Fora-Lula” e, pela primeira vez desde o início da jornada de manifestações, PSDB e PT, foram às ruas travar a revanche de 2014. Os adversários que polarizaram as disputas presidenciais nos últimos 20 anos deixaram o conforto dos gabinetes acarpetados para buscar o apoio das massas num conflito de classes tão vital para a radicalização da democracia quanto perigoso.

Que as manifestações representam o melhor combustível para aprofundar e depurar a democracia, nem o mais neófito em política tem dúvida. Contudo, não é isso que está em disputa. A oposição, agora com importante parcela da população capitaneada pelo PSDB, quer tomar o governo. A situação, embora visivelmente frágil e menos numerosa, dá sinais de que vai resistir até onde isso seja possível e com os recursos disponíveis.

Poucas manifestações simbolizam melhor a evolução dos ânimos que as recentes declarações de dois personagens secundários da política, o deputado Marcus Pestana (PSDB-MG) e o presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT) Vagner Freitas.

Pestana disse que é irrelevante se Dilma é ou não inocente na onda de denúncias da Lava Jato, ou seja, a presidente deve ser derrubada a qualquer custo. Já o sindicalista procurou mexer nos brios do que ainda resta de sentimento de resistência na esquerda, para defender, com armas nas mãos, se necessário, um mandato conquistado nas urnas.

Hora do jogo

As duas declarações convergem para o lógico raciocínio de que acabou o treino. O jogo agora é pra valer, o que torna cada vez mais provável a hipótese de conflito cujas consequências são ainda imprevisíveis, embora poucos analistas tenham dúvidas de que falta apenas uma faísca para que o rastilho alcance as ruas.

O ruim para o PT, Dilma e Lula, é que a oposição e os grupos que pregam abertamente o golpe – seja através do impeachment no Congresso, no tapetão do TSE ou por uma pressão mais forte, que obrigue a presidente a renunciar – escolheram as cercanias do poder como trincheira. A parte boa é que mostraram a cara e estão partindo para o tudo ou nada, sem vergonha de conspirar para derrubar um governo eleito pelo voto popular.

Dirceu no corredor de abate

Para os estrategistas do poder, Dilma tem como reverter o quadro, ainda que para isso vire as costas para correligionários históricos no PT, como fez com o ex-ministro José Dirceu, que foi para a cadeia como um animal que entra no corredor de abate. Nenhuma autoridade de peso no governo ou no partido do qual foi o coração saiu em sua defesa. A terceira prisão derrubou a biografia do líder estudantil que se rebelou contra a ditadura e se tornou um dos símbolos da resistência.

Dirceu é o grande perdedor político da última década. Até o gesto suicida do ex-deputado Roberto Jefferson (“Zé Dirceu, se você não sair daí rápido, vai fazer réu um homem bom, inocente. Zé Dirceu saia do governo, saia daí rápido!”) era um sucessor certo de Lula, tão natural quanto foi Raul de Fidel Castro. O equívoco de Jefferson, que imaginou o dedo de Dirceu na reportagem de Veja sobre o escândalo dos Correios, em 2005, detonou os 10 anos de solidão do centro de decisões políticas do poder e o empurrou para a próspera carreira do consultor que traficou influência. Entre o mensalão e a Lava Jato, Dirceu encontrou um fim de linha triste e insólito. Engana-se quem imagina que está definitivamente derrotado.

Instinto de sobrevivência

O silêncio dos correligionários diante do dilema de Dirceu ilustra bem o instinto de sobrevivência de Lula e de Dilma para defender o legado da estrela vermelha, que se desbota a cada dia. Mas deu certo e pode explicar, em boa parte, porque as manifestações de 16 de agosto não deram o resultado que a oposição esperava.

Ao deixar que Dirceu fosse para a geladeira, a presidente livra-se da banda mais complicada do PT e vai cuidar de sua biografia. O aprofundamento da crise, segundo um assessor governista ouvido pelo Marco Zero, por mais paradoxal que possa parecer, é uma oportunidade para mudanças na coalizão governista. É hora, segundo ele, de mudar os conceitos e práticas de governabilidade, substituindo o famoso “toma lá, dá cá” por compromissos apontados pelas ruas.

Estratégia da “Coração Valente”

O baixíssimo índice de popularidade e a clara conspiração em curso – estimulada pelos grupos de comunicação mais fortes do país – não são obstáculos para uma nova agenda. O assessor lembrou o caso do antecessor de Dilma, que estava nas cordas em 2005, graças à confissão do publicitário Duda Mendonça na CPI do mensalão (ele recebeu os pagamentos pelo trabalho ao PT através de contas bancárias de paraísos fiscais), deu a volta por cima, se reelegeu e virou “o cara”, iluminador de “postes” e fenômeno eleitoral sem precedentes na história política brasileira.

Dilma opera agora uma segunda etapa da estratégia para tentar salvar o mandato: a reforma ministerial, que deve enxugar a máquina, otimizar as políticas públicas (dispersas em 40 ministérios) para melhorar a economia, abrir espaço para fiéis da balança – como o PMDB do vice Michel Temer – e uma pincelada de moralização na confusa coalizão governista.
Lula, Dilma e o PT passaram 12 anos se recusando a enxergar o que as ruas escancararam. É claro que não foi Lula quem inventou a corrupção – ele apenas se rendeu, sem resistência, à promiscuidade da banda podre -, mas o acerto de contas se tornou um imperativo que Dilma, finalmente, parece ter decidido enfrentar.

Paciente e tolerante

Primeiro, contra a vontade de figuras a ela ligadíssimas, reconduziu o procurador Geral, Rodrigo Janot, embora por imposição constitucional tenha deixado a palavra final à imprevisibilidade do Senado. A próxima fase é oferecer ferramentas e recursos para que as instituições de controle estanquem a corrupção endêmica.

Pessoas próximas chegaram a sugerir que a presidente ofereça e dê publicidade aos recursos necessários para que o juiz Sérgio Moro leve em frente a cruzada contra a corrupção.
Embora surfando em perigosos índices de impopularidade e ainda dependente de Lula, Dilma mudou para se adaptar aos novos tempos de crise. Em vez da durona frequentemente agressiva, adotou um estilo em que mescla cautela, paciência, transigência e uma boa dose de tolerância, virtudes até então desconhecidas, mas que a têm blindado até contra o “fogo amigo” alimentado nas conspirações de porão.

Aprendeu no pampa que “a dor ensina a gemer” e aproveitou para mudar, também, o visual, optando por um regime alimentar mais saudável. A aparência leve e solta, passa imagem de sobriedade diante do turbilhão, embora os adversários enxerguem aí autismo e falta de sensibilidade.

Abrindo o cofre

Ao contrário de Collor – fenômeno que a sociologia política deveria se debruçar para entender os problemas morais da República -, que caiu por ter virado as costas à política, Dilma está atenta a base no Congresso, abrindo o cofre com certa moderação e engolindo sapos para rearticular a tropa de defesa.

Foi com mudanças no estilo que ela saiu quase ilesa da investida do presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que encerrou o primeiro semestre anunciando com estardalhaço o rompimento com o governo.

Enrolado na Lava Jato, Cunha tentou aplicar a mesma tática de Roberto Jefferson no mensalão atribuindo, equivocadamente, ao Palácio do Planalto a responsabilidade pelas investigações que o encurralaram. Não deu certo pela simples razão de que o governo não consegue mais controlar qualquer investigação. Cunha sabe que mais dia, menos dia, o julgamento da Lava Jato chegará – como ocorreu no mensalão que botou Dirceu e o réu-confesso Jefferson na cadeia – e tentou, em vão, politizar um caso que, controvérsias à parte, é judicial na essência.

Trio de conspiradores

O objetivo de Cunha é claríssimo: intensificar a pressão para criar no Congresso ambiente que justifique o impeachment da presidente, o que poderia dar a ele protagonismo e força política para tentar tumultuar o processo em curso no Supremo Tribunal Federal contra parlamentares que receberam propinas através dos desvios na Petrobras – onde é um dos principais alvos.
Sem justificativa plausível Cunha tentou emparedar o governo desengavetando CPIs que não devem dar em nada. Dilma já experimenta o chamado efeito “teflon”.

Com Renan Calheiros fazendo ameaças no Senado, Eduardo Cunha criando factóides na Câmara e Haroldo Cedraz no comando do Tribunal de Contas da União (é bom lembrar que o TCU é um órgão auxiliar do Congresso), Dilma não poderia ter encontrado remédio melhor para se imunizar contra as denúncias.

Além do mais, embora seja praticamente impossível um chefe de governo não ter noção dos malfeitos praticados em seu nome, inexiste prova, pelo menos por enquanto, de que tenha se beneficiado pessoalmente de dinheiro ilícito ou que participou de alguma reunião em que se discutiu fundos de campanha originários das empreiteiras envolvidas na Lava Jato.

Coadjuvante do lacerdismo

Cunha pode estressar um pouco mais o Palácio do Planalto, mas não representa uma ameaça concreta ao mandato de Dilma. O problema para o governo é que ele é coadjuvante do lacerdismo redecorado cuja missão era não permitir que Dilma fosse reeleita em 2014, mas uma vez que ela saiu vitoriosa e foi empossada, pondo em curso uma guerra sem tréguas para derrubá-la. Ao optar por cair atirando a esmo, o presidente da Câmara encontrou guarida na oposição e por ela pode ser usado.

Em 2005, quando teve na mão a faca que poderia cortar a cabeça de Lula, o PSDB recuou diante de um argumento apresentado pelo senador Tasso Jereissati. Este disse que havia base para derrubar Lula, mas lembrou que o PT não era o mesmo PRN que assistiu passivamente o governo Fernando Collor se estatelar. A profecia já não vale mais para o PT, mas pode ser cumprida por alguns grupos de esquerda, que não deixarão um governo conquistado a duras penas cair de graça no colo da direita.

Preparados para a luta

A declaração de Vagner Freitas, que tentou desmenti-la no Jornal Nacional, da TV Globo, não tem nada de novo. Quem conhece os principais movimentos sociais mais à esquerda – é o caso do MST, do MLST e de boa parte dos sindicatos ligados a CUT – sabe que se as circunstâncias exigirem eles estão preparados e irão, literalmente, a luta para impedir o golpe.

Esses grupos só abandonariam Dilma diante de uma prova incontestável de que ela se beneficiou pessoalmente da corrupção, hipótese descartada até pela oposição.

A esquerda mais preparada está quieta, consciente de que o conflito inevitável se dará por etapas. A estratégia agora é disputar as ruas com a direita, marcar território e avisar que a oposição espere até 2018 para tentar tomar o poder no voto.

Mais que defender Lula ou Dilma, os movimentos sociais avaliam que seriam as primeiras vítimas e, uma vez fora da órbita do poder, demorariam outros 500 anos para voltar a ter voz. Foram eles, afinal, que fizeram a diferença na apertada reeleição de Dilma e, mesmo com a mão no nariz, não vacilarão em defender a posição conquistada.

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