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Esquerda pernambucana sobe o tom e quer levar Bolsonaro à corte internacional

Maria Carolina Santos / 30/07/2019

O que era inicialmente uma coletiva de imprensa com Marcelo Santa Cruz, irmão do militante de esquerda Fernando Santa Cruz, morto durante a ditadura militar, se tornou um ato de repúdio da esquerda pernambucana às inconsequentes falas de Jair Bolsonaro (PSL). Nos últimos dias, o presidente do Brasil tem desferido uma série de ataques à memória de Fernando e à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), hoje presidida pelo filho dele, Felipe Santa Cruz.

No ato desta terça-feira, na sede do Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social (Cendhec), o tom subiu no enfrentamento aos ataques de Bolsonaro. Advogado e membro do Cendhec, Manoel Moraes afirmou que a entidade pretende reabrir o caso de Fernando Santa Cruz na Organização dos Estados Americanos (OEA) e que Bolsonaro pode ser levado até à corte penal da ONU. “Fica patente que o Estado brasileiro não tem interesse em revelar às famílias e à sociedade as informações necessárias sobre os desaparecidos políticos. Há uma responsabilidade objetiva das autoridades brasileiras”, disse.

Os ataques de Bolsonaro começaram quando ele afirmou em entrevista que “um dia” contaria para o presidente da OAB como o pai dele morreu. “Ele não vai querer ouvir a verdade”, disse. Mais tarde, em uma live enquanto cortava o cabelo, declarou que foi o próprio grupo de esquerda Ação Popular quem matou Fernando, sem citar a fonte com quem supostamente teria “conversado” na época. “Não foi (sic) os militares que mataram não, tá? É muito fácil culpar os militares por tudo que acontece”, disse.

Sem provas, sem nomes de fontes, a fala de Bolsonaro gerou reações da OAB, da Anistia Internacional e de diversas outras instituições nacionais e internacionais que atuam na área de direitos humanos. Mesmo com as fortes reações, Bolsonaro não recuou. Hoje, debochou da Comissão da Verdade: “Você acredita em Comissão da Verdade? Qual foi a composição da Comissão da Verdade? Foram sete pessoas indicadas por quem? Pela Dilma [Rousseff, ex-presidente]”, disse o presidente, tentando desqualificar o órgão, que contou com o trabalho de mais de 150 pessoas e durou mais de três anos. Quando perguntado sobre documentos do DOI-CODI, órgão de repressão da ditadura, que confirmam a prisão de Santa Cruz, ele fugiu da questão: “Não vou discutir isso. Os sete da comissão foram indicados por Dilma”, repetiu.

Os ataques do presidente contra a família Santa Cruz começaram como uma reclamação porque a OAB defendeu que o advogado de Adélio Bispo de Oliveira – que esfaqueou Bolsonaro durante a campanha eleitoral – não tivesse o celular confiscado pela Polícia Federal. O sigilo advogado e cliente é, como se sabe, uma prerrogativa da profissão, assegurada por lei. Bolsonaro, mais uma vez, tentou insinuar que a facada que levou teve mandante. Ele não explicou, contudo, porque nem os advogados dele, nem o Ministério Público recorreram da decisão que considerou Adélio inimputável – por ter transtorno delirante persistente.

No ato desta terça, o advogado Manoel Moraes lembrou que o Brasil é signatário do sistema internacional de crimes da ONU, do tribunal de Haia, na Suíça. “Se os agentes do Estado não prestarem informações, poderemos ter, em tese, uma primeira denúncia à corte penal internacional, dizendo que essas autoridades incorrem historicamente no crime de lesa-humanidade, e, portanto, estão praticando um tipo de genocídio. Aliás, quem leu a nota do Ministério Público Federal de hoje vê que ela aponta claramente para este tipo de crime internacional, porque genocídio é a tentativa de eliminar um grupo político-étnico ou um grupo social”, afirmou Moraes.

Durante sua fala, Marcelo Santa Cruz, irmão de Fernando, desconstruiu a versão dada por Bolsonaro – a quem chama de “presidente-ditador” – durante a live, em que diz que Fernando chegou de supetão no Rio de Janeiro, o que teria despertado a desconfiança do núcleo da Ação Popular na cidade. “É enganoso, Fernando estudava direito na Universidade Fluminense, já estava no Rio de Janeiro há quatro anos”, comentou. “É uma agressão sem limites. É como se Fernando estivesse sendo morto mais uma vez”.

O advogado Manoel Moraes ainda citou as diversas omissões e mentiras do Estado brasileiro no processo aberto na OEA. “Conseguimos entregar um documento da Aeronáutica, que é o mais importante ao meu ver, que mostra que Fernando foi preso em 23 de fevereiro de 1974 no Rio de Janeiro. Esse documento é oficial, do Estado brasileiro. Esses documentos eram produzidos para que se pudesse monitorar os presos políticos. A ditadura fazia investigações clandestinas”, comentou Moraes.

Companheiro de militância de Fernando – a quem definiu como “carinhoso, como deve ser todo revolucionário” – o vice-prefeito do Recife, Luciano Siqueira (PCdoB), deu um depoimento emocionado, afirmando que o que o Brasil vive hoje é “em grande medida, um estado de exceção”. “Sem precisar que os militares venham à frente e assumam a responsabilidade pela supressão dos direitos fundamentais. Penso que desde o golpe, que afastou a presidenta Dilma, há um conluio que envolve parte do Judiciário, o aparato policial e parte da grande mídia. E nós assistimos uma sequência de processos de desrespeito sistemático à Constituição e às normas processuais. E talvez isso inspire Bolsonaro a governar como se estivesse em um estado de exceção”.

O deputado estadual João Paulo Lima (PCdoB) afirmou à Marco Zero que este é “talvez o momento mais atípico da história do Brasil”. “Nós nunca vivemos um momento de ter um presidente tão despreparado para o cargo. Entendo que esse momento é fruto de um golpe dado na democracia brasileira e acho que as declarações só estão excitando o antagonismo de classes. Esse acirramento e essas declarações tendem a escamotear as questões centrais da soberania nacional, da retirada dos direitos dos trabalhadores e da entrega também do nosso patrimônio ao capital internacional”, disse.

João Paulo também reconheceu que a esquerda ainda não conseguiu arranjar uma forma de reagir a altura dos ataques de Bolsonaro. “Nós tivemos muito a ilusão de classe, de que na democracia burguesa nós íamos ter um espaço de voz. Como estamos chegando ao fundo do poço, a sociedade civil começa a dar sinais de reação”, acredita.

O desaparecimento de Fernando Santa Cruz

Fernando Santa Cruz iniciou sua trajetória na militância política cedo, ainda no movimento secundarista. Chegou a ser preso durante um protesto no Recife em 1968. Após o AI 5, em dezembro daquele ano, se mudou para o Rio de Janeiro. Em 1972, começou o curso de Direito na Universidade Federal Fluminense. Em 1973, foi para São Paulo, como funcionário público, interrompendo os estudos. “Ele tinha uma vida legal, não era clandestino”, lembrou Marcelo.

A última vez que Fernando foi visto pela família foi ao deixar o apartamento de Marcelo na zona sul do Rio de janeiro, para ir encontrar o companheiro de militância Eduardo Collier, na tarde do dia 23 de fevereiro. Fernando avisou aos familiares que, se não voltasse até às 18h, provavelmente era porque teria sido preso.

O desaparecimento de Fernando Santa Cruz foi investigado em quatro comissões da verdade: a nacional e as estaduais de Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo. “Há duas versões que foram levantadas”, contou Marcelo no ato. Uma versão é a que está no livro Memória de uma guerra suja, de Marcelo Neto. Baseado no depoimento do delegado e torturador Cláudio Guerra, do Espírito Santo. Convertido a uma religião evangélica, Guerra resolveu relatar seus crimes na comissão.

Ele afirmou que Fernando foi para a Casa da Morte, em Petropólis, e, de lá, o seu corpo, junto com mais nove militantes, foi levado para uma usina em Campos de Goytacazes. “Essa usina recebia armas e financiamento do governo para perseguir sem-terras na região. Em troca disso, o dono cedia o forno da usina para incinerar corpos de presos políticos”, contou Marcelo.

Guerra foi ouvido na comissão nacional e na pernambucana. Os detalhes que ele forneceu sobre a usina foram confirmados. “Duas pessoas ainda vivas disseram que Cláudio Guerra frequentava aquela usina”, lembrou Marcelo. “Guerra disse que mal sobravam cinzas, que eram jogadas em um açude”.

Ex-membro da Comissão da Verdade, o advogado Roberto Franca foi o responsável por tomar o depoimento de Guerra. “Para mim, ele não confirmou o que falou no livro. Disse que só reconheceu um dos dez corpos e que não tinha certeza se era Fernando entre os mortos que foram incinerados”, contou à Marco Zero.

Há outra versão que diz que após ser preso na Aeronáutica, no Rio, – há documento comprovando a prisão – Fernando foi levado para São Paulo e entregue à equipe do torturador Fleury e de Brilhante Ustra – “homenageado” por Bolsonaro no seu infame “sim” ao impeachment de Dilma Rousseff. “Fernando teria sido morto lá e enterrado numa vala comum”, disse Marcelo.

Para Manoel Moraes, as investigações sobre os desaparecidos políticos da época da ditadura só foram realizadas devido à luta das famílias. “Nada dessas informações teríamos. E temos muito pouco. O que nós estamos mostrando são documentos sigilosos à época que foram produzidos pelo Serviço Nacional de Informação (SNI). A ditadura militar foi uma agência de espionagem, uma rede complexa. Esse mecanismo criou no Brasil um estado de exceção. Você tem uma Leviatã que passa a assumir todas as características do Estado. Me parece que o presidente tem saudades dessa época”.

Quando desapareceu, Fernando trabalhava no Departamento de Água e Energia Elétrica. Era também estudante de Direito na Universidade Federal Fluminense. Com o desaparecimento, foi demitido por abandono de emprego. Anos depois, a viúva de Fernando conseguiu provar que não houve abandono e receber a pensão por morte.

No dia 26 de agosto está marcada uma reunião solene na Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe) para a entrega das certidões de óbito de sete desaparecidos durante a ditadura militar. “Vai ser entregue inclusive a de Fernando”, contou a deputada Jô Cavalcanti (Juntas-Psol), que também esteve presente no ato de hoje.

AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Ávida leitora de romances, gosta de escrever sobre tecnologia, política e cultura. Contato: carolsantos@gmail.com