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Falta água e presença do Estado: coronavírus aprofunda desigualdades estruturais nas periferias

Débora Britto / 06/04/2020

Foto: Inês Campelo/MZ Conteúdo

Uma das principais recomendações para prevenção ao coronavírus é lavar as mãos, mas para quem vive em locais em que água na torneira é o evento da semana, não é tão simples. Apesar de em Pernambuco a Companhia de Saneamento (Compesa) estar proibida de cortar a água de quem está inadimplente e ter anunciado medidas para minimizar o déficit estrutural de fornecimento em várias regiões, diversos bairros e comunidades relatam que continuam vivendo uma realidade de intenso racionamento.

A rotina de quem convive com a escassez de água, mesmo nas cidades, é frenética: corre para abrir torneiras, abre registro para encher caixa d`água, se houver, enche balde, mais um e outro, lava banheiro, enche todos os recipientes disponíveis, corre para fechar registro para “a água não ir embora”. Essa maratona é função, principalmente, das mulheres e são elas quem mais estão com medo do coronavírus.

Em Ouro Preto, bairro na periferia de Olinda, em meio à pandemia do coronavírus algumas comunidades passaram 15 dias sem água. Elisângela Maranhão, moradora do bairro e coordenadora de uma ONG em Peixinhos, outro bairro periférico da cidade, conta que a situação não mudou nada desde que as medidas da Compesa foram anunciadas. “Eu moro na Vila da Manchete e tem semana que a água vem uma vez, então você tem que aproveitar e encher tudo. Quando passa mais de 15 dias, a gente tem que comprar um carro pipa”, conta.

Já em Peixinhos, um bairro com mais de 30 mil pessoas, há áreas em que a água chega de três em três dias, outras em que a regra é não saber quando a água vai chegar. “Era para ter pelo menos uma vez por semana. Está muito complicada a questão da Compesa. Além disso, as pessoas na comunidade estão sem trabalho, a maioria é de trabalho informal”, destaca Elisângela.

Em Passarinho, comunidade da periferia do Recife, o Grupo de Mulheres de Passarinho denuncia há meses a falta de água, que já virou uma marca da comunidade. O bairro é formado por famílias, em grande maioria, chefiadas por mulheres trabalhadoras domésticas. “Agora, com o coronavírus, piorou tudo. A maioria das mulheres é de empregadas domésticas, diaristas. Agora parou tudo, muitas estão em casa. A água continua a mesma coisa, hoje mesmo não chegou, já vamos para seis dias sem água. Como é que você vai limpar a casa, como vai manter a higiene sem água? Está cada vez pior”, denuncia Edcléia Santos, liderança comunitária.

Além disso, ela alerta que, diferente de outros bairros do Recife, na comunidade não há carros de som da Prefeitura avisando sobre o coronavírus. “As pessoas estão continuando a vida, no meio da rua, o comércio está todo aberto”.

Diversos grupos e coletivos comunitários têm se organizado para cobrar o fornecimento regular de água e também de doações para quem está em situação de maior vulnerabilidade. É o caso do Coletivo Força Tururu, grupo criado na comunidade do Tururu, na periferia de Paulista. Os integrantes começaram uma campanha online para alertar moradores e pressionar por medidas concretas. Eles também mobilizaram doações para distribuir cestas básicas. “A situação para algumas áreas da comunidade está tranquila porque devido ao racionamento algumas casas já têm cisterna, mas em outras não. Em algumas casas e ruas tá faltando água ainda. Na comunidade temos caixa d’água e poço, mas na realidade do Tururu a caixa não enche e não existe tratamento”, relata Cidcleiton Luiz, integrante do Coletivo Tururu.

O relato evidencia como há desigualdades dentro da desigualdade e, para isso, a mobilização e cobrança por mudança precisa ser permanente.

Foto: Coletivo Força Tururu

Mais pobres estão mais vulneráveis

Além da água, outros problemas estruturais colocam famílias que vivem em áreas periféricas, em geral muito adensadas, em situação de maior vulnerabilidade. Socorro Leite, coordenadora da ONG Habitat para Humanidade, que faz parte da Articulação Recife de Luta, lembra que no Recife, por exemplo, os bairros que sofrem com falta de água são regiões que historicamente mais sofrem com arboviroses, que são doenças causadas por vírus como o da dengue, do Zika vírus e febre chikungunya.

Daí surge outro problema que precisa ser pensado desde agora: com o racionamento de água, as pessoas precisam armazenar água, muitas vezes, de maneira inadequada, favorecendo a proliferação do mosquito transmissor de doenças. “A precariedade da infraestrutura afeta diretamente a saúde das pessoas”, alerta Socorro. “A questão da água é muito importante, para mim é prioridade. Se as comunidades dizem que não está chegando água na ponta, eu acredito e vejo que nada está se alterando. E aí tem a coisa das condições de moradia, muitas famílias já estavam em situação que não ajuda no isolamento social”, explica.

Pensando nisso, a Articulação Recife de Luta vem se mobilizando para denunciar também outros aspectos que têm colocado a população mais pobre e trabalhadora vulnerável ao coronavírus, como a exposição no transporte público. “As empresas de ônibus reduziram a frota e estão demitindo funcionários, mas os ônibus continuam lotados. Se você tem que sair para resolver alguma coisa, você é submetido a um transporte cheio, o que não ajuda na prevenção. Tem que ter algum tipo de mediação do governo do estado, estamos falando de uma concessão pública e eles têm que intervir para que o transporte não seja vetor de transmissão da doença”, exige Socorro. Em nota, a Articulação denunciou a situação e vem exigindo posições do governo estadual sobre essa e outras questões.

Por liminar, Compesa está proibida de cortar água

Após posicionamento de organizações e movimentos da sociedade civil sobre a urgência da água, a Defensoria Pública do Estado entrou com representação e ganhou uma liminar que determina que a Compesa, assim como outras empresas de serviços essenciais, não cortem fornecimento a clientes inadimplentes. O defensor público Fernando Debli, que está à frente da mediação, explicou que, em função da emergência, a prioridade da ação foi garantir que nenhuma pessoa tenha a água cortada por falta de pagamento.

O esquema de racionamento praticado pela Compesa em diversos bairros e comunidades, sendo que alguns recebem água na torneria de 10 em 10 dias, é mais difícil de resolver neste momento, ele explica. Isso porque a Compesa alega que há problemas estruturais para fazer chegar água nesses locais, o que exigiria mais estudos técnicos para pressionar a empresa. “Estamos atrás de entender a real abrangência desse problema. Acontece que é uma situação muito complicada porque exige aparato técnico especializado e profundo. O problema da água é muito generalizado, a principio a gente resolveu aceitar esses termos para que as coisas fossem feitas de imediato”, explicou.

Como resultado do acordo, ficou decidido que desde 14 de março, quando o governo do estado oficializou a situação de emergência sanitária, até o fim do decreto devido à pandemia de coronavírus não está permitido o corte de água e esgoto por falta de pagamento. Além disso, a Compesa também se comprometeu a isentar o pagamento de cerca de 120 mil residências da tarifa social, e enviar carros pipa nos locais onde não há rede de abastecimento.

Outro ponto definido é que a Compesa deveria apresentar à Defensoria um plano emergencial para execução de 43 obras estratégias “para viabilizar obras consideradas de pequeno e médio portes para otimizar a distribuição de água da Região Metropolitana do Recife, sem prejuízo da adoção de outras medidas, em conjunto com o governo do estado”.

De acordo com o defensor, este é o ponto mais complicado de resolver, mas que ele considera positivo. “Há um grande problema histórico e, de fato, é difícil que de um dia para o outro a Compesa consiga fornecer água para todo mundo. A princípio a gente se contentou com isso porque queremos ver a eficácia dessas medidas, mas estamos atentos para considerar novos fatos”, afirmou.

Segundo Debli, a Defensoria ainda está na fase de monitorar o cumprimento, ou não, dos termos do acordo. “A gente tem recebido bastante relatos de pessoas denunciando que Compesa e Celpe continuam cortando fornecimento de água e energia por falta de pagamento. A partir das denúncias vamos tomar atitude mais aprofundada quanto a isso”.

Saiba como entrar em contato e realizar denúncias à Defensoria Pública de Pernambuco aqui.

AUTOR
Foto Débora Britto
Débora Britto

Mulher negra e jornalista antirracista. Formada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), também tem formação em Direitos Humanos pelo Instituto de Direitos Humanos da Catalunha. Trabalhou no Centro de Cultura Luiz Freire - ONG de defesa dos direitos humanos - e é integrante do Terral Coletivo de Comunicação Popular, grupo que atua na formação de comunicadoras/es populares e na defesa do Direito à Comunicação.