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Falta de assistência da Prefeitura de Olinda expõe moradores de rua ao coronavírus

Raíssa Ebrahim / 21/04/2020

Pessoas em situação de rua são resgatadas pelo Samu no Sítio Histórico de Olinda com sintomas da Covid-19

Dois jovens em situação de rua foram resgatados pelo Samu no último domingo (19) com sintomas da Covid-19 no Mercado da Ribeira, Sítio Histórico de Olinda. Um deles estava em estado grave e, segundo relato de moradores, a insuficiência respiratória era tanta que ele já não conseguia mais falar.

Caso a suspeita do novo coronavírus seja confirmada, é provável que todo o grupo de cerca de 10 pessoas que mora no local esteja contaminado. São cidadãos altamente expostos e que seguem à margem, sem contar com uma estratégia de acolhimento, orientação e cuidado num território onde há bicas com água potável.

Passado mais de um mês do início dos casos de transmissão comunitária em Pernambuco, Olinda não tem sequer um ponto de higienização em funcionamento para atender quem vive nas ruas. Um local de isolamento para sintomáticos é uma ação ainda mais distante da realidade.

Na negligência do poder público, é a sociedade civil e os movimentos sociais que têm trabalhado para alimentar a fome e o vazio assistencial.

O pior é que a falta de vontade política tem na burocracia a sua tática. Mesmo com a realidade que se impõe, a Prefeitura de Olinda não chegou ainda a higienizar o Mercado da Ribeira e o entorno. Nesta quarta-feira (22), será feito um levantamento da área, as informações serão levadas à Secretaria de Saúde para, somente junto com a Secretaria Executiva de Manutenção Urbana, se definir quando acontecerá a desinfecção do local.

Nesta quarta (22), a Prefeitura de Olinda informou que, na próxima sexta (24) será realizada a higienização do mercado às 8h.

Enquanto a propaganda da prefeitura sobre a higienização de mercados e pontos de ônibus é uma das principais publicidades sobre ações da gestão do prefeito Lupércio (SD), as pessoas em situação de rua seguem expostas e sendo também possíveis transmissoras da doença.

Por conta da pouca segurança do terreno, pessoas que vivem na rua têm acesso livre à estação de tratamento de água potável e reservatório de água da Compesa em frente ao Mercado da Ribeira, logo atrás das Ruínas do Senado, importante ponto histórico e turístico da cidade.

Por não terem outra alternativa, elas “cozinham em um fogão a lenha improvisado, tomam banho e fazem suas necessidades fisiológicas nas dependências da unidade que distribui água para o Sítio Histórico e áreas do entorno”, segundo já denunciou a Sociedade Olindense de Defesa da Cidade Alta (Sodeca) nas redes sociais.

“Segundo moradores vizinhos, as pessoas abrigadas no Mercado da Ribeira pulam o gradil da Compesa para tomar banho no local e não se sabe ao certo de onde retiram a água”, relata a denúncia da Sodeca, que também solicita com urgência ações de assistência às pessoas mais vulneráveis, limpeza da área do mercado e do entorno, além de regularização da situação de abandono da unidade da Compesa.

Foto mostra o fácil acesso à unidade de tratamento de água potável e reservatório de água da Compesa na Ribeira, em Olinda (crédito: via Sodeca)

Moradores do Sítio Histórico pedem urgência na assistência às pessoas em situação de rua e denunciam uso irregular da unidade da Compesa (crédito: via Sodeca)

O grupo da Ribeira vem recebendo lanche, janta e itens de higiene desde o dia 23 de março por meio de duas moradoras. A pequena empresária Márcia Lessa de Andrade conta que já vinha percebendo desde o final da semana passada o agravamento do quadro do jovem com insuficiência respiratória levado pelo Samu. “A Prefeitura de Olinda não chega junto, parece que essas pessoas são invisíveis”, lamenta.

Ela faz parte de um grupo chamado Mulheres do Bem, que diariamente promove uma espécie de leilão no WhatsApp para arrecadar fundos e ajudar pessoas vulneráveis durante a pandemia.

Mário Costa é coordenador do Consultório de Rua em Olinda e afirma que esses são os primeiros casos de suspeita do novo coronavírus em moradores de rua a que ele tem acesso.

A tendência é que, por conta do cenário de crise e de pouca assistência social, a quantidade de gente sem casa cresça ainda mais nas próximas semanas. Mário já contabiliza um aumento do número de pessoas vivendo na rua desde o início da pandemia.

A equipe multidisciplinar que ele coordena costumava atender, de uma forma mais frequente, aproximadamente uma lista de 250 pessoas em Olinda. Agora ele já soma cerca de 300, com base nas ações do projeto Humaniza, de distribuição de refeições e itens de higiene, uma iniciativa não governamental em parceria com a sociedade civil e a prefeitura.

“A população de rua fica onde há ajuda e acolhimento. Com o isolamento e o fechamento do comércio, essa ajuda deixou de existir em muitos lugares. E aí vemos dois movimentos, um de espalhamento dessas pessoas e outro de migração para a rua. São pessoas que estavam em outros espaços e que contavam com uma renda mínima e agora acabaram na rua”, detalha.

O coordenador aproveita para reforçar que não se deve tentar socorrer por conta própria pessoas em situação de rua com sintomas da Covid-19. A orientação é chamar o Samu.

Segundo Mário, o jovem com sintomas moderados foi levado ao Hospital Tricentenário, em Olinda. Foi medicado após consulta médica, mas fugiu da emergência. Nesta segunda (20), moradores acionaram novamente o Samu para resgatar o rapaz, mas ele se recusou a ser socorrido. Sobre o estado de saúde do jovem com um quadro mais grave, a reportagem não conseguiu informações oficiais.

Em conversa com a reportagem, o secretário de Desenvolvimento Social, Cidadania e Direitos Humanos de Olinda, Odin Neves, adiantou que começará a funcionar nesta quarta (22) um Ponto de Cuidado à Higienização de Pessoas em Situação de Rua no Estádio Grito da República, em Rio Doce. Mas a capacidade diária será de apenas 40 atendimentos.

Através de uma parceria com o Governo do Estado, um segundo ponto será aberto nas “Casa das 3 Marias”, no Carmo. A capacidade de atendimento também será de 40 pessoas por dia. Uma nota da Prefeitura de Olinda com os anúncios não cita data de início da ação no Carmo. “A previsão de início é ainda neste mês de abril”, diz o texto.

Nesses pontos de cuidado, com atendimento exclusivo para a população em situação de rua, as equipes irão realizar um cadastro social para controle de acesso e depois será fornecido um kit de higiene e limpeza, com sabonete, escova e pasta de dente e toalha descartável. Após o banho, as pessoas receberão um kit de alimentação industrializada.

Sobre a dificuldade de implantação dos projetos, o secretário Odin relata a redução nas equipes por conta de sintomas da Covid-19. De acordo com ele, nove pessoas da equipe de assistência estão em isolamento e também há sintomáticos na equipe de guarda municipal.

Odin também disse que a Prefeitura já sinalizou com um imóvel em Peixinhos para ser um local de isolamento. Segundo ele, o governo Paulo Câmara (PSB) tem colocado a possibilidade de recurso. A prefeitura de Lupércio diz que não tem verba para mobiliário, recursos humanos, insumos de higiene e limpeza e alimentação.

A Marco Zero Conteúdo também entrou em contato com a Compesa, que, através de nota, informou que a água chega ao Reservatório da Ribeira, por meio de tubulações, sem qualquer tipo de manuseio humano. De lá, a distribuição também é feita para as residências através das tubulações, sem interferência humana.

“Além disso, a Compesa ressalta que atende todos os padrões de qualidade estabelecidos na Portaria de Consolidação nº 05/2017, Anexo XX, que dispõe sobre os procedimentos de controle e de vigilância da qualidade da água para consumo humano”.

Sobre o acesso de pessoas em situação de vulnerabilidade social, a Compesa disse que, desde o dia 20 de março, disponibilizou um vigilante para atuar no reservatório e que está em diálogo com a Prefeitura de Olinda para que a gestão encaminhe as pessoas para um abrigo.

A potência dos movimentos sociais

Na ausência do poder público, muitas pessoas em situação de rua têm conseguido fazer pelo menos uma refeição completa por dia graças ao trabalho incansável da sociedade civil organizada, que tem sido um modelo de força, organização e união.

O grande exemplo é o Marmita Solidária, uma colaboração da Frente Brasil Popular com movimentos sociais, partidos e sindicatos filiados à CUT (Sintepe, Bancários, Metalúrgicos, Químicos e Petroleiros) junto com o movimento Unificados pelo Povo de Rua (uma iniciativa da Arquidiocese de Recife e Olinda) e voluntários.

Somente na Praça do Carmo, na entrada do Sítio Histórico de Olinda, onde também vivem grupos em situação de rua, a ronda do Marmita Solidária tem distribuído em torno de 100 refeições diárias à noite.

Nesta terça (21), o projeto fecha um mês de ações com mais de 40 mil refeições servidas, entre as rondas e o que é servido no Armazém do Campo, no Bairro de Santo Antônio, no Recife, através da produção e da cozinha do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

A ação está chegando à marca de duas mil refeições servidas por dia. Já são mais de 500 cestas básicas distribuídas e o movimento está aguardando uma doação de 40 toneladas de comida vindas de assentamentos.

“Temos clareza de que a nossa tarefa primeira é a pressão sobre o Estado, porque é um dever do poder público, seja ele federal, estadual ou municipal, dar assistência. Esses R$ 600 – da renda básica emergencial – não são favor, são obrigação. Mas o Estado deveria tomar outras medidas para garantir o bem-estar do povo. Nossa segunda linha central é a defesa do SUS. E a terceira é o quesito da solidariedade, é nosso dever enquanto brasileiros e militantes. Mas que fique evidente que é função do Estado tomar medidas mais eficazes”, pondera Paulo Mansan, da coordenação do MST-PE e da Frente Brasil Popular.

O Marmita Solidária, que também vem distribuindo 200 marmitas por dia em Caruaru, Petrolina e Garanhuns, faz parte de uma iniciativa maior chamada Mãos Solidárias, que abraça outros projetos. Através do Caixa Solidária, agora também estão sendo recolhidos alimentos não perecíveis e produtos de higiene e limpeza através de pontos de coleta em condomínios.

Basta uma caixa, em um ponto acessível do prédio, para que todos os moradores possam doar. Os itens recolhidos devem ser levados ao Armazém do Campo.

O Mãos Solidárias também uniu uma rede de cerca de 70 colaboradoras, incluindo 50 costureiras espalhadas pela Região Metropolitana do Recife, com a ação Máscaras Solidárias. O grupo já fez 1,7 mil máscaras e a estimativa de produção semanal é de 2 mil. A iniciativa também envolve a Marcha Mundial das Mulheres e a Consulta Popular.

A democratização do cuidado

“O governo do estado e as prefeituras precisam urgentemente colocar em ação algumas ideias que ainda estão em planejamento”, critica Ana Glória Melcop, do Centro de Prevenção às Dependências, organização sem fins lucrativos fundada em 1999 que atua com pessoas em situação de vulnerabilidade.

A Organização Social (OS), contratada pelo governo estadual, é responsável pela execução e montagem dos pontos de cuidado. No Recife, a unidade montada no Armazém 14, no Bairro do Recife, tem capacidade para atender 240 pessoas por turno. É seis vezes mais do que o ponto que será aberto no Carmo, em Olinda.

“É angustiante falar sobre a necessidade do isolamento para quem já vive isolado em função das desigualdades. Agora essas pessoas se aglomeram para mostrar a falência das políticas públicas. A sociedade agora vê o que os olhos se negaram a ver por muito tempo. São pessoas que vivem na rua para trabalhar, dormir e sobreviver”, avalia Glória.

Ela também faz parte da Rede Solidária em Defesa da Vida – PE, grupo colaborativo interdisciplinar e interprofissional de professores, pesquisadores, profissionais de saúde, defensores públicos, juristas, entre outras áreas, que se uniram para analisar e ajudar no combate à pandemia.

A rede, enfatiza Glória, defende a necessidade de lutar pela democratização do cuidado e da atenção. “Vidas iguais também pressupõem tratamentos diferentes para pessoas em situações diferentes”, ressalta. Acesse aqui o documento publicado pela rede com contribuições para a resposta à Covid-19 no acolhimento da população em situação de rua e acesso ao isolamento social.

Atualizado em 22/4/2020, às 15h30

AUTOR
Foto Raíssa Ebrahim
Raíssa Ebrahim

Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com