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Fechamento de duas residências terapêuticas acende o alerta de retrocesso na política de saúde mental do Recife

Laércio Portela / 02/04/2019

As últimas semanas têm sido de apreensão para os defensores da luta antimanicomial no Recife. A decisão da Prefeitura de fechar duas residências terapêuticas acendeu o alerta de retrocesso na reforma psiquiátrica na capital pernambucana.

Os moradores dessas residências serão separados e transferidos para outras casas. O fato de a mudança ter sido decidida de cima pra baixo, sem consultar previamente os usuários, fere alguns dos princípios do funcionamento dessas residências: dar autonomia, protagonismo e projeto de vida a pessoas que viveram por anos e até décadas internadas em hospitais psiquiátricos.

Um outro ingrediente preocupa os movimentos de luta antimanicomial: o fato de as duas residências serem administradas por um hospital privado, o Instituto Materno Infantil de Pernambuco (Imip), e não diretamente pela Prefeitura. O receio é de que critérios financeiros estejam pesando mais na decisão do que os clínicos.

Atualmente, a Rede de Atenção Psicossocial do Recife é formada por 17 CAPs (Centros de Atenção Psicossocial), três unidades de acolhimento, 24 leitos integrais e 52 residências terapêuticas. As residências começaram a ser montadas no Recife a partir de 2001 como parte da política de substituição dos hospitais por uma rede de atenção integral à saúde mental.

A partir de 2014 até 2016 houve um boom na instalação das residências terapêuticas no Recife. Em 2014, a Prefeitura passou a gestão das residências para o Imip e a Santa Casa de Misericórdia (por meio do Hospital Santo Amaro). Em 2016, fechou todos os leitos psiquiátricos da cidade para a relocação dos usuários crônicos. Hoje, cerca de 400 remanescentes desses hospitais vivem nas residências terapêuticas da capital.

Sob supervisão clínica e psicológica dos CAPs, as residências possuem cada uma entre cinco e 10 moradores acompanhados diariamente por um técnico de referência (normalmente com curso superior) e pelo menos quatro cuidadores contratados pelas organizações sociais que se revezam em turnos de 12 por 36 horas. Os moradores são pessoas com transtorno mental que, tendo vivido longo período de internação hospitalar, perderam o vínculo familiar.

Nas casas, eles são reintegrados ao convívio social e passam a realizar tarefas cotidianas que lhes garantem a retomada de diferentes graus de autonomia sobre suas próprias vidas.

As residências terapêuticas que serão fechadas ficam localizadas nos bairros do Ipsep e da Ilha do Retiro. A primeira é acompanhada há oito anos pelo CAPs David Capistrano e tem seis moradores, todos homens. A segunda possui sete moradores – quatro homens e três mulheres – e é referenciada pelo CAPs Espaço Vida.

Notas de repúdio

O primeiro documento que circulou contra a decisão da Prefeitura foi uma carta dos gestores e funcionários do CAPs David Capistrano. Nela, os profissionais lembram que a casa funciona como local de moradia de oito pessoas que passaram anos de suas vidas tendo negado o poder de decisão sobre seus corpos.

¨Não está sendo considerado o direito de escolha do local de moradia pelos moradores, nem a decisão de saída da atual residência, sendo assim desconsiderada a convivência diária durante oito ano dos moradores que dividiram a construção de uma vida, e se vincularam como família, sendo sumariamente separados¨.

O texto diz que a medida causa “indignação” e contraria o discurso da Prefeitura que, em 2016, se autodeclarou uma cidade sem manicômios, apontando o que consideram “o retorno de práticas institucionais calcadas na exclusão e na total falta de autonomia e protagonismo dos usuários”.

O Núcleo Estadual de Luta Antimanicomial também se manifestou por meio de nota de repúdio, criticando a “terceirização da saúde” para o Imip e a Santa Casa. “Como a cidade dita sem manicômios desrespeita toda uma história construída por moradores em suas casas? Qual o lugar da clínica antimanicomial, que preconiza a singularidade, o direito, os desejos e o protagonismo dos usuários, na cidade do Recife?”.

O Fórum de Desinstitucionalização de Pernambuco e o Fórum de Trabalhadores e Trabalhadoras em Saúde Mental de Pernambuco lançaram nota conjunta criticando o que classificaram como “decisões alinhadas à lógica de mercado-privatista (…) representando grave violência, retrocesso e violação de direitos humanos”.

Questionada pela Marco Zero Conteúdo, a Secretaria Municipal de Saúde informou, por meio de nota, que de fato está “avaliando a possibilidade de transferência de moradores para outras unidades após constatar capacidade de acomodar todos em 50 casas, ainda restando vagas para novos residentes”.

Segundo a Secretaria, com o processo de desospitalização, cerca de 500 pessoas foram acolhidas pela rede municipal de saúde do Recife, parte delas oriundas de outros municípios, alegando que algumas voltaram ao convívio familiar e outras faleceram, abrindo vagas para novos moradores.

A Sesau garante na nota que “não haverá nenhuma mudança no modelo de cuidado psicossocial da Política de Saúde Mental da capital pernambucana”. Foi o que também afirmaram a coordenadora de saúde mental do Recife, Cléo Queiroz, e a secretária-executiva da Saúde, Eliane Germano, durante reunião do Conselho Municipal de Saúde, realizada na quinta-feira (21), na sede da entidade, no bairro de Santo Amaro.

Pressão no Conselho Municipal de Saúde

Gestores, trabalhadores e trabalhadoras de saúde, ativistas da luta antimanicomial, cuidadores, usuários e familiares lotaram o auditório do conselho. Foi a primeira oportunidade que tiveram de questionar diretamente a cúpula da secretaria sobre o fechamento das residências, pois o tema vinha sendo tratado com cautela no ambiente de trabalho da rede por medo de represálias.

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Gestores e trabalhadores da saúde mental uniram-se a familiares e usuários para pressionar a Prefeitura contra o fechamento das residências em reunião do Conselho Municipal da Saúde

Com 14 anos de experiência atuando na área de saúde mensal – está há três anos afastada – tendo trabalhado em vários CAPs, a conselheira Íris Maria da Silva, coordenadora do Grupo de Trabalho de Saúde Mental do CMS, vê com estranhamento o fato de a Prefeitura ter tomado a decisão de fechar as residências sem uma discussão anterior no Conselho. “Foi pactuado aqui, no plano municipal de saúde de 2018 a 2020, a requalificação e a ampliação da rede, a palavra ‘reduzir’ não está no plano. Vamos continuar esse debate até porque essas duas residências são geridas por hospitais filantrópicos, gestão indireta, que não podem ter essa tomada de decisão porque a gestão é SUS, pública, não pode ser de cima pra baixo”.

Íris alerta para o fato de a que o compromisso dos atuais gestores de não fechar novas residências não é o bastante. O Conselho Municipal de Saúde se posicionou oficialmente, após a reunião, contrário à medida. “Esse fechamento abre um precedente. No ano que vem teremos eleições municipais. E se assume uma gestão mais conservadora alinhada ao projeto nacional? Pode usar a medida tomada agora como justificativa para desarticular a rede. Essa é uma das nossas preocupações”, explica.

Outras profissionais ouvidas pela Marco Zero, e que preferiram não se identificar por temer represálias, disseram que existiria na Secretaria uma pressão para reduzir os encaminhamentos de novos moradores para as residências. “Existem pacientes que não têm histórico de internação crônica, mas têm indicativos clínicos. Necessidade de moradia, proteção, sem vínculo familiar forte. Quando dizíamos que tínhamos demanda, eles diziam que estávamos criando”, contam.

Ministério Público quer explicações

O tema do fechamento das residências está sendo acompanhado pelo Ministério Público de Pernambuco. A promotora da Saúde, Helena Capela, marcou para o próximo dia 15 uma audiência com o secretário municipal de Saúde Jailson Correia e as coordenações de saúde mental do Recife e do Estado. A primeira denúncia que chegou ao MPPE foi anônima e a segunda encaminhada por profissionais da área da saúde mental que atuam no município.

Em resposta a ofício encaminhado pelo MPPE, a Secretaria Municipal de Saúde informou que o número de usuários existentes hoje podem ser alojados em 50 casas e que, ainda assim, ficam disponibilizadas mais 20 vagas. “Disseram que o fechamento dessas duas residências vai significar uma economia de meio milhão de reais de custeio que podem ser destinados para outros serviços”, explicou a promotora.

O debate sobre saúde mental vai ocupar o plenarinho da Câmara Municipal do Recife, nesta quarta-feira (3), em audiência pública solicitada pelo gabinete do vereador Ivan Moraes (Psol).

Segundo dados apresentados pela coordenação de saúde mental do município na reunião do Conselho Municipal de Saúde, a Rede de Atenção Psicossocial do Recife recebe R$ 2.139.969,24 por mês do Ministério da Saúde. A Prefeitura disponibilizaria mensalmente outros R$ 2.632.210,99 de recursos próprios.

No caso específico das residências terapêuticas, segundo o município, o Ministério da Saúde repassa mensalmente R$ 537.750,00 e a Prefeitura coloca mais R$ 1.043.509,36. O Imip recebe mensalmente R$ 620.759,35 pela gestão das residências, enquanto o Hospital de Santo Amaro, da Santa Casa de Misericórdia, recebe R$ 960.500,00.

Ao todo, os repasses da Prefeitura para serviços prestados na área de saúde mental via convênio para o Imip, o Hospital de Santo Amaro e o Hospital Evangélico somam R$ 1.875.631,38 por mês.

Numa consulta ao Diário Oficial da União, encontra-se a portaria número 3.659 de 14 de novembro de 2018, assinada pelo então ministro da Saúde Gilberto Occhi, que suspende R$ 300 mil mensais de custeio para a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) do Recife por “ausência de registros de procedimentos nos sistemas de informação do SUS”. Em nota, no entanto, o Ministério da Saúde informou que “nenhum recurso de saúde mental foi suspenso para o município do Recife”. Na mesma nota, o MS diz que há uma ação de devolução de recursos, relacionada à portaria 3.718 de 22 de novembro de 2018 que prevê a devolução de recursos de incentivo à implantação de dispositivos da RAPS não executados no prazo determinado. No caso do Recife, são R$ 130 mil (R$ 80 mil para incentivo de custeio destinado a CAPS tipo III [funciona por 24 horas] e mais R$ 50 mil para CAPs tipo II). Segundo o Ministério, a portaria “encontra-se em processo de revisão”.

Para a representante do MPPE, no entanto, o assunto não pode ser analisado apenas pelo critério financeiro. “A questão não é só numérica e de orçamento. Essas pessoas moram há anos e consideram aquele espaço como suas casas, e essa é uma política do Ministério da Saúde. Não é simplesmente uma discussão sobre economia”, pondera.

Preocupa especialmente ao MPPE a situação das pessoas internadas no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP), que já estão de alta e com alvará de soltura e poderiam ser transferidas para as residências. “É realmente uma situação delicada. Hoje existem 20 vagas nas residências, segundo a Prefeitura, mas nunca se sabe o dia de amanhã. Qual a demanda e as necessidades, novas pessoas podem deixar os hospitais fechados e temos o caso do HCTP”, avalia.

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 Condenados ao descaso

No Hospital de Custódia, 65 internos com álvaras de soltura expedidos pela Justiça aguardam para serem integrados aos SRTs (serviços de residência terapêutica no estado). Dessas, sete são recifenses e deveriam ser encaminhadas diretamente às residências da capital. Há ainda decisões judiciais da I Vara de Execuções Penais determinando que cinco internos de outros municípios também sejam recebidos em residências do Recife.

“Recife vem se negando a receber essas pessoas. As que são da capital e as dos outros municípios. Desde agosto e outubro essas decisões estão sendo descumpridas”, critica a defensora pública do Estado, Ana Carolina Ivo Khouri, designada desde 2015 para acompanhar o Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, que fica em Itamaracá.

Para Ana Carolina, a decisão do Recife de não receber usuários de outros municípios na rede da capital, a partir de 2017, está comprometendo a dignidade de dezenas de pessoas. “Todas essas residências foram abertas de forma regionalizada e pactuada. Não há uma vinculação à municipalidade daquela pessoa. Além do mais, quando uma pessoa passa 20 ou 30 anos internada, ela perde os vínculos com o município de origem”.

A defensora alega que há internos com alvará que são de municípios muito pequenos, que não têm estrutura para montar uma residência terapêutica para apenas uma pessoa. “O processo de desospitalização está em andamento no estado. Por ter mais estrutura, a capital poderia continuar recebendo internos de outros municípios, até porque teve repasse de verbas do Ministério da Saúde no passado para fazer isso. Mas se omite e vira as costas para essa situação”, critica.

Assim como gestores, funcionários e ativistas engajados na luta antimanicomial, Ana Carolina vê no fechamento das residências terapêuticas da Imbiribeira e da Ilha do Retiro desrespeito aos moradores. “Essas pessoas criaram vínculos conjuntamente e esses vínculos estão sendo completamente ignorados. Elas estão sendo relocadas para outros locais como acontecia com o processo que a gente está tentando dar fim que é o processo manicomial que não lhes dava autonomia nem respeito”.

Desde que a Defensoria Pública do Estado começou a acompanhar a situação do HCTP, em 2015, o número de internos caiu consideravelmente, de 509 para 340. Mas a quantidade de pessoas com alvará de soltura esperando ser integradas às residências terapêuticas só faz crescer. Se hoje são 65, em 2015 eram 23. A maior parte dos alvarás ainda não cumpridos foram expedidos entre os anos de 2016 e 2018. Em 2019, já são cinco. Os alvarás mais antigos são de 2010 (um interno nascido em Alagoas), 2011 ( um interno de Saloá) e 2012 (um interno de Parnamirim e outro de Afogados da Ingazeira).

 

Usuários pedem mais, e não menos, SUS na saúde mental

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Maurício, Ana Lúcia, Helton e Leandro

Depois de acompanhar por mais de três horas o debate sobre a política de saúde mental do Recife na reunião do Conselho Municipal de Saúde, na quinta-feira (21), Helton, Leandro, Ana Lúcia e Maurício aguardavam na calçada o fim do encontro. Em comum, eles têm o passado de sofrimento que só quem carrega um histórico de muitas internações em hospitais psiquiátricos viveu.

Os quatro, que são acompanhados pelo CAPs David Capistrano, mas não moram em residências terapêuticas, foram à reunião para se posicionarem em defesa da política de desospitalização. Helton Alves de Souza, 36 anos, passou por seis hospitais psiquiátricos antes de começar os atendimentos no David Capistrano. “Foi muito triste para mim. Eu apanhei, eu sofri muito nos hospitais. No CAPs eu nunca fui amarrado e nos hospitais eu era amarrado por nada”, conta.

Relembrando a passagem por hospitais psiquiátricos, Leandro dos Santos Menelau, 36, fala dos gritos, do cheiro forte de fezes e urina e das agressões. Na reunião do conselho, ele foi um dos mais aplaudidos quando pediu que não deixassem voltar os manicômios. “Eu não quero que o SUS acabe. Somos gente, sabe? Queremos mais saúde. Mais SUS”.

A palavra “família” é a mais repetida na conversa com Leandro. “Essas pessoas que estão na casa convivem há oito anos. Profissionais e cuidadores apoiaram eles quando não tinham família. Lá eles tiveram abrigo. Agora, não podem ser abandonados. É um conjunto. É uma família”, explica.

Integrante do conselho gestor do CAPs David Capistrano, como representante dos usuários, Ana Lúcia da Silva, 50, vem caminhando na calçada, ouve a conversa e se aproxima. Pede a palavra. Ela queria ter falado na plenária, mas passou mal e teve que sair. “É muita emoção. São duas semanas com muito medo do fechamento das residências. Tem uma pessoa da gente que vive há 15 anos numa das casas e, se for tirada assim, transferida, vai ficar completamente desestruturada sem saber o que fazer”.

Ana Lúcia teme que o fechamento das residências seja só o começo de um desmonte. “Se eles estão querendo hoje fechar a residência, amanhã vão querer fechar os CAPs. E aí? A gente vai voltar para os hospitais fechados? Queria que o governador, o prefeito e o secretário de saúde fossem para o hospital fechado, ser maltratados como nós já fomos, apanhar de borracha, com mangueira, comendo galinha podre, crua, brigando um com o outro, lá dentro tudo isso tem”. Ana Lúcia sabe do que está falando. Diz que já deu 13 entradas no Hospital Ulisses Pernambucano. “Aquilo ali é um inferno em vida”.

Embora bem mais novo, Maurício da Silva Cruz, 27 anos, também conhece a dor da internação em hospital psiquiátrico. Mas diz que nos últimos três anos sua vida começou a mudar e ele voltou até a estudar. “Tô no CAPs há três anos. É uma mãe pra mim. Lá tenho amor, carinho e paz”, conta, lembrando do abandono familiar e dos maus tratos que sofreu em internações hospitalares. “Eu peço que as residências e os CAPs não fechem. Vão fechar?”.

AUTOR
Foto Laércio Portela
Laércio Portela

Co-autor do livro e da série de TV Vulneráveis e dos documentários Bora Ocupar e Território Suape, foi editor de política do Diário de Pernambuco, assessor de comunicação do Ministério da Saúde e secretário-adjunto de imprensa da Presidência da República