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Gilvandro Filho*
No começo dos anos 1960, todos os anos, duas vezes ao ano, a gente viajava para São Caetano da Raposa. Era assim que chamávamos a cidade da minha mãe, da minha avô, dos meus tios. E as viagens eram memoráveis, eu nunca me esqueci. Íamos de trem. Eu, o mais velho (entre os 7 e os 10 anos de idade) dos filhos de Seu Gilvandro e de Dona Célia, e meus (então) três irmãos. As temporadas eram ótimas, mas as viagens é que eram deliciosas. Desconfortáveis, mas a gente nem ligava. Acordávamos por volta das 4 da manhã, nos arrumávamos, o táxi chegava e gente seguia para a Estação Central, defronte da Casa de Detenção, hoje Casa da Cultura. Por volta das 6 e meia, o trem partia. Do Recife até São Caetano dava, mais ou menos, umas seis horas de viagem – hoje dá pouco mais de hora e meia de carro. O resto era festa.
Eita, como era bom andar de trem! Valia a pena o esforço. A malha ferroviária pernambucana era poderosa, como era a nordestina, de um modo geral. O ramal pelo qual a gente viajava saía do Recife e ia até Salgueiro, no sertão pernambucano. De lá, seguia em frente até Eliseu Martins, no Piauí. Subia, por outro ramal, pelo sertão do Ceará até Fortaleza. Outro “descia” pelo litoral até Palmares e, de lá, para Maceió/AL, de onde ia simbora para o sul. Ainda desembocava no Recife um quarto ramal que vinha do Rio Grande do Norte e da Paraíba.
Eu demorei a compreender porque o que era tão bom foi se acabando, aos poucos, até minguar de vez. Repito, trem era muito bom. E se tivesse havido o mínimo de cuidado com tudo aquilo, o transporte ferroviário brasileiro hoje seria modelo para o mundo. Tinha tudo pra isso. Tinha mão de obra dedicada e qualificada. Tinha rede em bom estado. Tinha futuro.
Só que teve um golpe militar e uma ditadura nesse meio tempo. O que é que tem uma coisa a ver com outra coisa, seu comunista filho da mãe? E não tem? Foi só derrubarem Jango, Arraes, Brizola & Cia que os militares viraram o foco e trataram de desmantelar o que prestava e andava nos trilhos, com perdão do trocadilho. De graça? Acho que não. O setor de petróleo, por exemplo, chegava com gosto de gás (outro trocadilho, cacete?) e dava as cartas naquele “Novo Brasil”. Se os Estados Unidos eram os patronos do golpe de 1964, os grandes conglomerados empresariais americanos eram os patrocinadores. E nesses daí, as corporações do setor de combustíveis (Exxon/Esso, Shell, Atlantic, Texaco…) é que mandavam e desmandavam mesmo. E para vender gasolina é preciso ter rodovias. Então, muda tudo, my friend!
Lembro de um velho slogan de um presidente da República Velha, Washington Luís, que virou o must nos governos militares. “Governar é abrir estradas”. E foi o que os ditadores de plantão fizeram. A expansão da malha rodoviária marcou o País, enriqueceu empreiteiras e plantou os cenários necessários para que os friends do petróleo cobrassem, com juros estratosféricos, a fatura por ter ajudado o “Brazil” a se livrar do comunismo ateu e desagregador. Só não precisava, para o transporte rodoviário vingar, o transporte ferroviário morrer. Mas assim é que foi feito.
Assim como ocorreu em outros setores da economia, como foi o caso da área farmaco-química, o setor de estradas não só tornou-se estratégico como virou reserva de mercado para executivos diretamente ligados aos militares e seus fieis escudeiros. O Ministério dos Transportes (até 1967, da Viação e Obras Públicas) e os DNER/Dnit da vida sempre foram ocupados por esse tipo de gente. Foram ministros de Viação e Obras, por exemplo, o almirante Augusto Rademaker (1964) e o marechal Juarez Távora (1964/67). E, no já Ministério dos Transportes, prepostos como Mário Andreazza (1969/74), Dirceu Nogueira (1974/79) e Eliseu Resende (1979/82).
O resto do enredo, todo mundo já conhece. O transporte ferroviário sumiu do mapa e sobrevive hoje em pequenos trechos do território nacional, em alguns roteiros turísticos. Ferrovias que se anunciam aqui e ali são, na verdade, pretexto para corrupção. No mais, sem mais. De expressivo, nada mais.
Então, hoje, quando os caminhoneiros param por causa da enxurrada de aumentos nos combustíveis empurrados ao longo dos dois anos de desgoverno Temer, a gente fica pensando em quão diferente poderia estar tudo isso. Era só não terem levado tão a sério a ordem dos EUA. O transporte ferroviário não precisava ter sido sacrificado para satisfazer às gigantes do petróleo. As mesmas que hoje se beneficiam da alta de preços praticadas sacanamente pelo governo brasileiro e da “falta” de gasolina que abre caminho para o combustível importado, algo que não faz sentido em um país produtor como o Brasil.
Em 1964, essas gulosas companhias davam as cartas e contribuíram com afinco para dar um golpe de Estado que tirou do poder um governo que as atrapalhava. E hoje? O golpe do qual essas mesmas empresas participaram ocorreu há dois anos, em um governo que também lhes atrapalhava, ao não conceder os aumentos que elas queriam e ao cometer o pecado mortal de dar um mínimo de autonomia a um setor para elas sagrado e intocável. Podem, agora, aprofundá-lo e consolidá-lo. E parece que vão. Afinal, o governo que foi colocado no lugar do que foi derrubado, além de ilegítimo, é inepto, incompetente, corrupto e igualmente guloso. E nem para segurar um golpe serviu.
* Gilvandro Filho é jornalista e compositor
É um coletivo de jornalismo investigativo que aposta em matérias aprofundadas, independentes e de interesse público.