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Funcionários da Compesa criticam, mas serviço de água e esgoto será privatizado em Pernambuco

Maria Carolina Santos / 17/09/2025
A imagem mostra uma cena em uma comunidade popular, possivelmente em uma área de palafitas. Em primeiro plano, há um balde branco sendo enchido com água de uma torneira simples fixada a uma parede de madeira escura. A água que cai parece turva, sem transparência. O chão é de tábuas de madeira molhadas, dando a impressão de precariedade e risco. Ao fundo, é possível ver casas feitas de madeira e metal, com algumas paredes pintadas com grafites coloridos. Algumas pessoas aparecem caminhando pelo beco estreito, uma delas segurando um guarda-chuva vermelho.

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

Sob críticas de funcionários da Compesa, o Governo de Pernambuco publicou o edital para a concessão parcial dos serviços de água e esgoto para a iniciativa privada, com a entrega das propostas marcada para 11 de dezembro de 2025 e a realização do leilão uma semana depois, em 18 de dezembro de 2025, na Bolsa de Valores de São Paulo. O projeto pretende atrair R$ 19 bilhões em investimentos privados para a universalização do saneamento, somando-se a R$ 16 bilhões em recursos estaduais. O tempo da concessão é de 35 anos.

Para a concessão, a Compesa foi dividida em duas regiões: a Microrregião de Água e Esgoto (MRAE2) que vai da Região Metropolitana do Recife até a região do Pajeú (RMR-Pajeú) – composta por 160 municípios – e da MRAE1, composta por 24 municípios do Sertão.

Especialistas ouvidos pela Marco Zero nesta reportagem aqui, afirmam que o modelo de concessão parcial não é o mais recomendado. A parte que vai continuar pública, a de produção e captação da água, é a mais difícil e custosa e está sujeita a intempéries, principalmente diante das mudanças climáticas. A parte de distribuição, que será entregue à empresa privada — ou empresas, já que cada região será um leilão diferente – é a mais atrativa para o mercado, por ser mais rentável. Na coletiva de imprensa, na sexta-feira passada, foi afirmado que várias empresas já estariam interessadas em participar do leilão.

O Governo de Pernambuco alega que com a capacidade de investimentos do Estado só seria possível universalizar os serviços de água daqui a 65 anos – o Brasil tem como meta a universalização até 2033. Assim, a concessão para a iniciativa privada é vista como a única solução para a universalização no tempo previsto.

A experiência com a BRK, empresa privada que já atua na Região Metropolitana em uma Parceria Público-Privada (PPP), é frequentemente evocada como um exemplo do que não deve ser repetido. Na coletiva, o governo reconheceu que o contrato com a BRK caminhava para um distrato, mas coloca a culpa na falta de fiscalização do governo anterior. O presidente da Compesa, Douglas Nóbrega, afirmou que está fiscalizando e aplicando sanções para que a BRK cumpra o contrato nos acordos previstos. Porém, não há nenhum impedimento legal para que a empresa participe do leilão da Compesa.

Para onde vai o dinheiro da outorga?


Outorga é o valor que a empresa, ou empresas, vencedora do leilão vai pagar ao Estado pela concessão.

 

Valores mínimos da outorga da concessão parcial da Compesa:

    ◦ Para a Região Metropolitana do Recife e Agreste (MRA-RMR/Pajeú), a outorga mínima fixada é de R$ 2,2 bilhões.

    ◦ Para a microrregião do Sertão (MRAE-Sertão), a outorga mínima é de R$ 87 milhões.

Divisão da outorga mínima:

    ◦ 60% é destinado exclusivamente para uma conta de universalização de água e esgoto, além de ser usado para segurança hídrica e produção de água. O estado atua como gestor dessa conta, que pertence à microrregião, e presta contas sobre o uso dos recursos.

    ◦ Os 40% restantes são repassados aos municípios como cotitulares dos serviços. Essa parte deve ser alocada para investimentos, preferencialmente em água e esgoto, mas não é obrigatório que seja exclusivamente para saneamento. A distribuição desses 40% entre os municípios ocorre com 50% do valor igual para todos e 50% de acordo com o tamanho e peso do município nas microrregiões.

Divisão de um eventual ágio (valor acima da outorga mínima):

    ◦ 50% será destinado à Compesa como antecipação da indenização pelos investimentos feitos e ainda não amortizados, e pela entrega dos serviços de distribuição.

    ◦ 25% irá para a conta de universalização.

    ◦ 25% será direcionado aos municípios, seguindo a mesma regra de distribuição da outorga mínima.

Outros desembolsos do bloco MRAE-RMR/Pajeú:

    Além da outorga mínima, a futuro concessionária terá que desembolsar também mais de R$ 574 milhões para a reestruturação da Compesa, permitindo que a empresa continue suas atividades e cumpra suas obrigações.

   As obras do Sistema Produtor de Carpina também vão receber R$ 320 milhões da concessionária.

Estabilidade apenas “de boca”

Na coletiva, o secretário estadual de Recursos Hídricos, Almir Cirilo, afirmou que a Compesa seguirá sem mudanças no quadro de funcionários. “A governadora Raquel Lyra tomou uma decisão, que não haverá demissão da Compesa, que as pessoas serão aproveitadas. E o presidente da Compesa tem mantido um diálogo contínuo com os servidores, ouvindo as suas reivindicações”, afirmou.

A Compesa tem um quadro de aproximadamente 5.800 pessoas, sendo 2.500 funcionários diretos. Bem organizados, funcionários e sindicalistas apareceram de surpresa na coletiva de imprensa do governo para apresentar a versão deles da concessão, apontando possíveis irregularidades na tramitação e falta de participação no processo. A questão das demissões futuras é uma das principais preocupações. Isso porque, apesar da fala do secretário, os funcionários reclamam que não há garantias formais.

“Desde junho estamos discutindo a necessidade da nossa estabilidade. E na primeira mesa de negociação, isso nos foi negado”, disse a funcionária da Compesa Karline Alves, que compareceu à coletiva. Segundo ela, os concursados têm estabilidade assegurada por lei, mas isso pode mudar caso a Compesa, por exemplo, feche. “Temos apenas compromisso de boca, nenhum documento assinado. Estamos em campanha salarial e, quando solicitamos que fosse assinado essa garantia do emprego em nosso acordo coletivo, nos foi negado pela empresa na mesa de negociação”, reclamou.

A imagem mostra uma entrevista coletiva realizada em uma sala de reuniões. Seis pessoas estão sentadas lado a lado atrás de uma mesa comprida de madeira clara. No centro, um homem de terno preto fala ao microfone, aparentando ser o porta-voz ou principal representante do grupo. À sua esquerda, outro homem de óculos, também de terno, observa atentamente, enquanto ao lado dele uma mulher de óculos, de roupa roxa, acompanha a fala. À direita do porta-voz, há dois homens em trajes formais, igualmente atentos. À extrema esquerda da mesa, um homem de camisa social azul clara está com os braços apoiados, olhando para baixo. Sobre a mesa, há copos plásticos com água e dois microfones. Ao fundo, a parede é clara com uma porta de madeira e um quadro com uma fotografia colorida de um pôr do sol sobre o mar. À direita, um homem em pé segura uma câmera, registrando a coletiva.

Compesa venderá metro cúbico de água para a concessionária por R$ 1,84, valor que é considerado muito baixo pelo sindicato

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

Para os funcionários da Compesa, não houve uma participação verdadeira deles no processo de concessão. “O que existe é uma falsa democracia dentro da empresa”, criticou Karline.

A questão da transparência foi colocada tanto pelo governo quanto pelos funcionários. Para o governo, Pernambuco realizou o “processo participativo mais longo”, como falou o secretário Marcelo Bruto, entre os projetos recentes de saneamento no Brasil. “Este processo durou quase 60 dias para a coleta de contribuições da sociedade civil e incluiu cinco audiências públicas, além de muitas reuniões setoriais”, disse ele.

O governo também argumenta que houve uma aprovação por ampla maioria dos colegiados microrregionais, com mais de 100 prefeitos votando favoravelmente, apenas cinco abstenções e nenhum voto contrário. A Agência de Regulação de Pernambuco (ARPE) e o Tribunal de Contas do Estado (TCE) também contribuíram com sugestões para o edital. Dez municípios não entraram na concessão, mas podem entrar até a homologação do resultado do leilão. São eles: Água Preta, Amaraji, Carnaubeira da Penha, Cortês, Gameleira, Inajá, Xexéu, Catende, Iati e Palmares. Esses municípios contam com serviços municipalizados de água – muitos não contam com esgoto.

A sindicalista Kátia Botafogo, funcionária da Compesa e fundadora da Frente Contra as Privatizações de Pernambuco, afirmou para a Marco Zero que as audiências públicas não foram transparentes e foram insuficientes, apenas cinco, acrescentando que o formato delas foi feito para dizer “é isso que a gente vai fazer e vocês vão ter que aceitar'”. Ela também ressaltou que a maior parte das contribuições da população pedia que a concessão não fosse realizada.

A Marco Zero cobriu a única audiência pública que aconteceu no Recife. Foi em 15 de janeiro, com o auditório da Fiepe lotado. Naquela ocasião, o governo fez uma apresentação bastante semelhante à realizada na coletiva e a grande maioria das pessoas que pegaram o microfone na audiência foi para se posicionar contra a concessão da estatal, como o deputado estadual João Paulo (PT), que tem apoiado Raquel Lyra, e o deputado federal Pedro Campos (PSB), da oposição.

Funcionário concursado da Compesa, o deputado Pedro Campos inclusive reclamou naquela audiência da taxa de intermitência prevista no contrato, que era de 67%. Essa taxa não foi alterada. O índice de intermitência se refere à quantidade total de paralisações e interrupções no abastecimento de água ao longo de um ano inteiro, incluindo as repetições, em todas as residências de um município.

“Em Pernambuco, o índice de intermitência atual está na casa do milhar na maioria dos municípios. A meta estabelecida para o estado é atingir o índice de 67% até o ano de 2033, o que representa, na prática, a eliminação do rodízio de água. Esse valor é uma meta definida pela Agência Nacional de Águas (ANA), baseada nos melhores prestadores de serviços de água e esgoto do Brasil, que não possuem rodízio”, afirmou para à MZ o secretário executivo de Projetos Estratégicos, Marcelo Bruto.

Os funcionários da Compesa têm outro entendimento sobre esse índice. Para Kátia Botafogo, o contrato de concessão não especifica claramente a obrigatoriedade da empresa contratada em diminuir ou eliminar os rodízios. “Em relação ao rodízio de água, fica praticamente a mesma coisa que é hoje. Não há um compromisso expresso de acabar com o rodízio”, afirma.

Outro ponto questionado tanto na audiência pública quanto na coletiva foi que só é considerada falta de água após seis horas ininterruptas sem água na torneira. Ou seja, em teoria, pode faltar água todo dia por mais de cinco horas e a empresa concessionária não sofrerá qualquer sanção. Esse ponto também seguiu inalterado no edital.

A sustentabilidade financeira da parte pública da Compesa também foi questionada pelo sindicato. Kátia Botafogo questiona o valor de R$ 1,84 pelo qual a Compesa venderá o metro cúbico de água para a empresa que ganhar o leilão. Ela compara com Alagoas (Casal), um estado menor que vende a água por R$ 2,20 para a iniciativa privada. “E mesmo vendendo mais caro do que Pernambuco vai vender, já se fala lá que esse valor de R$ 2,20 é insuficiente. A conta da Compesa não vai fechar”, alerta.

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A capacidade da Agência Reguladora de Pernambuco (Arpe) de fiscalizar efetivamente o contrato de 35 anos é outra preocupação em relação à concessão da Compesa. O governo anunciou a criação de 50 novas vagas na agência, quase triplicando seu efetivo atual de 28 para 78 funcionários. No entanto, a diretora técnica da Arpe, Roberta Machado, admite que a real suficiência desse quadro só poderá ser confirmada de fato quando começar a concessão. 

Hoje, a Arpe fiscaliza apenas a Compesa – e não diretamente a BRK, pois é uma PPP. Com a concessão em vigor, a Arpe vai fiscalizar tanto a Compesa quanto a concessionária. 

Funcionários da Compesa também denunciam que faltou um parecer da Arpe em relação à concessão, mas Roberta Machado afirmou à MZ que se trata de uma mera tecnicidade e que a Arpe acompanhou todo o processo.

O Sindicato dos Urbanitários, que representa os funcionários da Compesa, encaminhou denúncia ao Ministério Público de Pernambuco e ao Tribunal de Contas do Estado (TCE-PE).

AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org