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Futebol, o trampolim dos políticos autoritários

Marco Zero Conteúdo / 21/12/2019

(Belo Horizonte - MG, 02/07/2019) Presidente da República, Jair Bolsonaro durante partida de futebol Brasil e Argentina.rFoto: Carolina Antunes/PR

por Mateus Moraes

Em sintonia com as acirradas discussões políticas no país, o esporte tornou-se, mais do que nunca, palco e meio de interesses partidários e identitários. As experiências mais atuais da exploração do futebol como trampolim político são as inúmeras aparições do presidente da República, Jair Bolsonaro, vestindo várias camisas de clubes brasileiros e indo a campo para fazer testes de popularidade. A relação do governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, com o Flamengo também pode ser encarada com desconfiança, visto que, declaradamente corintiano, Witzel tem sido figura onipresente nas comemorações dos títulos flamenguistas.

A
boa fase do Flamengo seduziu Jair Bolsonaro a ‘tirar uma casquinha`
do momento do clube.
Três
dias após a divulgação de conversas que colocaram a parcialidade
do ex-juiz federal Sérgio Moro nos julgamentos da Lava-Jato em
xeque, Moro e Bolsonaro foram ao jogo entre CSA x Flamengo, no
estádio Mané Garrincha, em Brasília. A
cena foi interpretada tanto como um
teste
de
popularidade da
dupla
quanto
uma demostração de indiferença calculada às denúncias.

Na
final da Copa América, Bolsonaro chegou a afirmar: “Pretendo,
domingo, não só assistir à final do Brasil com Peru, bem
como, se for possível, se a segurança permitir, irei com Sergio
Moro junto ao gramado. O povo vai dizer se estamos certos ou não”,
mostrando que o teste de popularidade em estádios é algo planejado
dentro desse governo.

Outro
gesto presidencial que precisa ser analisado é o fato de que caças
da Força Aérea Brasileira (FAB) escoltaram o voo fretado dos
jogadores flamenguistas de Lima, capital do Peru, até o Rio de
Janeiro. “A
Força Aérea Brasileira, em nome do presidente da República, Jair
Bolsonaro, dá as boas-vindas ao time do Flamengo e felicita a equipe
campeã que tão bem representou o Brasil para a conquista da Copa
Libertadores da América. Brasil acima de tudo”, dizia a
mensagem passada por um representante da FAB.

Autodeclarado apaixonado por futebol e pelo Palmeiras, Jair Bolsonaro tenta construir uma relação direta com o esporte anunciando antecipadamente suas idas aos estádios. Foi assim nas partidas da Copa América contra a Argentina e contra o Peru e nos jogos entre CSA x Flamengo, Santos x São Paulo e entre Flamengo x Avaí. Questionamos o motivo destes anúncios se fazerem tão necessários por parte do governo, mas, até a publicação da reportagem, a assessoria do presidente não respondeu.

Witzel desprezado

Quem também se viu seduzido pelo momento flamenguista foi Wilson Witzel. Há três semanas, em vídeo que viralizou nas redes sociais, o governador carioca – também um ex-juiz – , prosta-se de joelhos, sendo ignorado por Gabriel Barbosa, o Gabigol. O governador carioca também chegou a subir no trio elétrico que levava a delegação campeã.

O momento em que Gabigol despreza o governador do Rio de Janeiro prostrado aos seus pés

O
ardor de Witzel pelo Flamengo causa estranheza, pois em
pouco mais de um ano, ele
deixou
de ser corintiano desde a infância e passou a celebrar efusivamente
as conquistas do rubro-negro carioca, esquecendo que, em entrevista
ao jornal Lance,
afirmou
“sou, desde criancinha, corintiano. E vivi o Corinthians na era
Sócrates, por isso sou um grande democrata. Sócrates foi um marco
na história do Corinthians, na história da democracia, do esporte
e, como vivi aquele momento, acho que o Sócrates foi um grande
exemplo”.

As declarações de Wilson Witzel não foram bem recebidas por segmentos de ambas torcida. Laura Bimbato, corintiana e integrante do coletivo Corinthians Antifa. “O Witzel é torcedor por conveniência e oportunismo. Ele tenta roubar o protagonismo do futebol e associar à sua imagem. Ele até pode ser corintiano, mas jamais irá ser representante do ethos corintianista. E esta diferença é tudo.”

Laura destaca o movimento Democracia Corintiana – liderado por Sócrates durante a ditadura militar – como basilar na história do time: “o movimento foi espetacular porque uniu os três principais atores do futebol, clube, jogadores e torcida, em um único objetivo: restaurar as bases democráticas do clube e do país. Mas, infelizmente, com o contexto que temos hoje, esta experiência não é replicável. É praticamente impossível você ver jogadores que assumam uma postura mais à esquerda, como se dava nos moldes daquela época”.

Laura Bimbato, corintiana e antifascista

Interferência nos bastidores

Além
de, literalmente e simbolicamente, pegar carona na festa
flamenguista, Wilson Witzel fez questão de tentar interferir nas
questões internas do rubro-negro carioca. No final de agosto, uma
rede portuguesa de televisão afirmou que o técnico Jorge Jesus
pretendia sair do clube após o término da temporada por temer os
altos índices de violência do estado carioca. A notícia reverberou
e deixou os torcedores em um clima de expectativa e de apreensão.
Com um faro oportunista de dar inveja a qualquer camisa 9 (atacante,
centro-avante, dá tudo no mesmo), o governador fez um aceno aos
flamenguistas e disse que iria interferir pessoalmente no caso.

Em
entrevista ao jornal O
Globo
,
ele afirmou: “Vou falar pessoalmente com o Jorge Jesus. Mostrar ao
querido técnico que não há necessidade de ir embora. Muitos
brasileiros estão voltando para o Rio de Janeiro. Os índices de
criminalidade estão sendo sensivelmente reduzidos. Ele terá paz
para fazer o melhor pelo Flamengo”.

Na opinião do ex-assessor da presidência do Santa Cruz e ex-diretor de futebol do time coral, Jomar Marinho, “um político não deve se meter nos assuntos particulares de um clube de futebol, mas, quando a criança é bonita, todo mundo quer ser o pai”, diz se referindo à boa fase do Flamengo e as constantes tentativas de associações ao clube carioca por parte de políticos.

Dois pesos, duas medidas

Um dos episódios mais marcantes da última rodada do Brasileirão 2019 aconteceu jogo entre Botafogo x Ceará, realizado no estádio Nílton Santos, Rio de Janeiro. A Polícia Militar carioca ordenou que a torcida Botafogo Antifascista tirasse uma bandeira com a frase “Botafogo Antifascismo”. Em uma ação estranha e tirânica, os policiais fotografaram a identidade da torcedora que estava com a faixa.

A justificativa da corporação foi a seguinte: “Segundo o Estatuto do Torcedor, é condição de permanência no estádio utilizar faixas e bandeiras apenas para manifestação festiva e amigável, logo, não será autorizada permanência no local qualquer material que faça referência a ideologia que não diga respeito ao futebol e a manifestações festivas”. Em um estado onde o governador não cansa de tentar se relacionar ao Flamengo e seu ótimo momento, o ato da PM-RJ é, no mínimo, incongruente. Se, para Wilson Witzel não há incompatibilidade na forma que ele se dirige aos clubes e às torcidas cariocas porque, ao mesmo tempo, não permite que a organizada se manifeste politicamente dentro do estádio?

De
acordo com o
cientista político e apaixonado por futebol, Túlio Velho Barreto,
“se uma torcida não pode posicionar-se contra o fascismo e o
governador do estado, que se classifica como um democrata, toma uma
atitude autoritária dessas, mostra uma contradição. Se a
manifestação política vem contradizer a identificação política
do governante, ele tenta reprimir. Se fosse favorável, esses atores
políticos não estariam preocupados com isso. O posicionamento
contra o fascismo deveria ser de toda a sociedade. O que fica
parecendo é que, quem reprime, é favorável”.

Não foi a primeira vez que torcedores enfrentaram problemas por se posicionarem contra o fascismo. No mês de abril, Alexandre Bárbara, torcedor do Flamengo, teve que dar explicações sobre a camisa com os dizeres “Flamengo Antifascista”.

“Um dos fiscais que usa aquele uniforme verde achou que eu não poderia entrar com essa camisa. E aí ele acionou a coordenação e a gerência para saber se eu podia entra. E a gerência acionou a Polícia Militar. E teve que vir um sargento da PM que não sabia se eu podia entrar com essa camisa, porque acharam suspeita”, explicou Alexandre.

Na opinião geral da torcida Flamengo Antifascista, os interesses políticos são nítidos: “O que tem acontecido muito é gente mal-intencionada se apropriando dos clubes. Muito pouco negócio e muito interesse particular. Usam agremiações como trampolim para arregimentar capital social”.

Esta semana, a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro reagiu à ação dos policiais aprovando uma lei que garante diferentes manifestações por parte de torcedores nos estádios de futebol, impedindo a censura prévia por parte de policiais, árbitros ou autoridades da Federação.

Endossando
o discurso da Flamengo Antifa, o jornalista e torcedor do Sport Club
do Recife, Ivan Moraes (atual vereador pelo PSOL), afirma: “É
complicado quando você cria uma narrativa que induza o público a
acreditar que a tua presença, enquanto deputado, prefeito, vereador
ou governador, terá um interesse ligado àquela paixão clubística.

Ainda, segundo Ivan, “se eu me faço passar por um torcedor de outro clube para poder me aproximar do eleitor, isso é desonestidade. Eu tenho visto o que o Flamengo tem feito na política do Rio. Você vê o presidente da República mandando jatos escoltarem o time, gastando uma fortuna em combustível, você vê o governador, que me parece que não é nem flamenguista, se dirigindo à torcida do Flamengo de forma política. É o limite de eu utilizar uma identidade clubística para me aproximar do eleitor de forma enganosa”.

Bolsonaro e Moro, logo depois do The Intercept começar a publicar a Vaza Jato (Foto:A Gazeta)

“E a liturgia do cargo, meu senhor?”

Em
Pernambuco, a relação entre políticos e clubes de futebol é
antiga. No Trio de Ferro (Sport, Náutico e Santa Cruz), importantes
figuras públicas já atuaram nos bastidores dos times. No Sport
Clube do Recife, Luciano Bivar, atual presidente do PSL, partido pelo
qual Jair Bolsonaro foi eleito presidente da República, já comandou
o clube que hoje é liderado por Milton Bivar, irmão de Luciano.

No
Santa Cruz Futebol Clube, o ex-prefeito de Petrolina e atual líder
do governo Jair Bolsonaro no Senado, Fernando Bezerra Coelho, já
presidiu a cobra coral e teve enorme prestígio, inclusive, atuando
na reforma do estádio do Arruda. O ex-vereador e atual secretário
de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Recife, José Neves, também
já foi chefe do executivo tricolor.

Pelo
lado do Clube Náutico Capibaribe, o atual presidente da Copergas e
ex deputado estadual e secretário da Casa Civil, André Campos, já
presidiu o alvirrubro.
Já o ex-governador de Pernambuco, ex-prefeito do Recife e
ex-ministro da Fazenda e do Desenvolvimento Urbano, Gustavo Krause,
fez parte do conselho deliberativo do Timbu.

Na
opinião de
Krause, a relação de políticos e de clubes de futebol precisa
acontecer de forma saudável. “Há momentos em que um chefe de
Estado pode ir a campo, como em uma partida de abertura de um
megaevento ou algo semelhante. Mas, caso seja um jogo comum, o chefe
de Estado
não deve se utilizar da superexposição de imagens para tentar se
associar a um clube ou a uma seleção de forma superficial e
enganadora. A cena mais patética que eu vi foi a do senhor do
Witzel. Existe algo chamado liturgia do cargo. Um governador de
estado, presidente da República, ele pode ser o mais popular, mas
ele não pode se ajoelhar diante de Gabigol e nem de Pelé. É ele na
dele e eu na minha. Durante toda minha vida política, enquanto
estive exercendo mandato, eu, por exemplo, me afastei do Náutico”.

Nos
102 anos que englobam o período entre 1917 e 2019, o desporto mais
popular do mundo já serviu como objeto de exploração por parte de
estadistas brasileiros, mas, como diria Nelson Rodrigues, “no
futebol, o pior cego é aquele que só vê a bola”. Para além de
22 seres humanos correndo atrás da pelota, o esporte mais amado do
planeta é uma catarse coletiva, é uma metáfora social, é um
instrumento de luta política e social.

AUTOR
Foto Marco Zero Conteúdo
Marco Zero Conteúdo

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