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Governo Federal distribuiu informações falsas para esconder as falhas técnicas da transposição

Marco Zero Conteúdo / 30/11/2018

Foto: Eduardo Amorim

Por Eduardo Amorim*

“Manipulação do comportamento do usuário pelo controle de dados na internet”. O tema da redação de Enem 2018 deve ter parecido encomendado para falar das últimas eleições e das fakenews, produzidas em massa principalmente pela campanha do presidente eleito, Jair Bolsonaro. No entanto, esse é um fenômeno que acontece também no cotidiano das comunidades urbanas e rurais do Brasil.

Um caso recente acontecido no município de Salgueiro, no Sertão de Pernambuco, é um exemplo bastante claro de como mesmo com todas as possibilidades da internet ainda é difícil propagar informações com precisão para quem está longe do poder econômico, político e midiático. As falhas na construção da transposição do rio São Francisco ainda não tinham aparecido com forte relevância, até um vídeo viralizar nas redes sociais no último dia 11 de agosto e chegar em apenas uma postagem a mais de 2 milhões de visualizações.

transposição2As imagens também circularam muito através do WhatsApp no Sertão. A repercussão acabou fazendo com que a mídia fosse forçada a cobrir uma localidade que raramente aparece nos noticiários nacionais. No entanto, o Governo Federal, através da Assessoria de Comunicação Social do Ministério da Integração Nacional, soltou uma nota que distorceu bastante os fatos.

No texto distribuído à imprensa, o rompimento foi identificado como um problema “pontual” no canal do Eixo Norte do Projeto de Integração do Rio São Francisco, entre os municípios de Terra Nova e Salgueiro, em Pernambuco. Mais grave: o Ministério da Integração acusa precipitadamente “há evidências de que tenha sido um ato criminoso. A Polícia Militar de Pernambuco prendeu, poucas horas depois, suspeitos de terem cometido o dano ao trecho” e afirma que “relatos de moradores que vivem no entorno afirmam que a ação dos envolvidos tinha como objetivo desviar o curso d’água daquele ponto para que fosse possível encher um reservatório nas imediações. Ação semelhante aconteceu em junho do ano passado, num trecho no município de Cabrobó (PE)”.

Vale recordar que o Ministério da Integração Nacional, responsável pela gestão da obra, foi comandando durante o governo Dilma Rousseff pelo senador Fernando Bezerra Coelho, líder político na região e aliado do atual Governo Federal.

Menos de 48 horas depois, a Polícia Federal soltou outra nota e nega questões importantes como a prisão de dois suspeitos pela Polícia Militar de Pernambuco. Para o sertanejo que gravou o vídeo, sobrou o medo de ser identificado como a pessoa que fez todos acreditarem através de um vídeo que o canal da transposição havia sido criminosamente quebrado por um morador de Salgueiro. Afinal, para os milhões de pessoas que viram as notícias pela TV ou nos jornais e sites que reproduziram a nota do Ministério da Integração o que fica é uma informação que até agora não tem sua origem explicada.

Decidimos buscar através do Google como foi a cobertura do rompimento do canal da transposição. É possível que a distância dos principais produtores de conteúdo do Nordeste dificulte a circulação das informações sobre o semiárido, até mesmo para o público interessado, pois tivemos de aprofundar a busca para encontrar algumas das reportagens mais detalhadas sobre o episódio, que foram feitas por blogs de Salgueiro e da região.

A pesquisa no Google Notícias nos levou ao que o sistema de buscas selecionou como 34 reportagens relacionadas ao rompimento do canal e outras 10 que foram agrupadas sob a temática das remoções das famílias atingidas. Depois, ao perceber que não havia nenhuma postagem dos veículos locais de Salgueiro nos selecionados pelo site de buscas decidimos fazer uma busca específica e identificamos três sites relevantes no município que fizeram no total outras 10 produções sobre o tema. Sentimos ainda necessidade de pesquisar se havia alguma referência ao caso na comunicação pública e encontramos apenas uma reportagem na Agência Brasil.

Nestas 54 postagens, todas publicadas entre 10 e 18 de agosto, sobre o tema do rompimento do canal da transposição em Salgueiro, fica evidente a criminalização dos sertanejos.

transposiçãoNuvem.JPGUm estudo desses títulos criou a nuvem de palavras que nos mostra que a palavra “criminoso” é uma das com mais destaque entre as que foram utilizadas nas reportagens. O poder público, neste caso, teve um papel bastante negativo ao acusar antes de um julgamento e sem provas. Mesmo sem terem sido nominados os cidadãos que teriam sido presos, fica uma imagem negativa em relação aos moradores da área rural de Salgueiro, que, supostamente, teriam tentado romper o canal e causado o acidente segundo a versão inicial (que depois não se confirmou, mas foi utilizada com respaldo da nota do Ministério da Integração em grande parte dos textos jornalísticos e até mesmo no Jornal Nacional).

“A informação que chegou é que pessoas teriam provocado esse rompimento para abastecer uma barragem que fica perto, nas cercanias, nada disso procede, nada disso foi confirmado. E aí a Polícia Federal, por ser uma obra do Governo Federal é competência da Polícia Federal, está investigando todos esses fatos”, disse na época o chefe de comunicação da PF em Pernambuco, Giovani Santoro.

Entramos em contato com a Assessoria de Comunicação do Ministério da Integração por e-mail, telefone, chegamos a entregar pessoalmente um pedido de informações na sede do projeto da Transposição em Salgueiro e não obtivemos nenhuma resposta. A única reportagem encontrada sobre o tema na Agência Brasil tem o título: “Rompimento de canal da transposição pode ter sido criminoso”. O post não teve nem mesmo uma atualização após a nota da Polícia Federal divulgada no dia seguinte. Aparentemente, é mais uma demonstração do absurdo que está acontecendo com a Empresa Brasil de Comunicação, especialmente após o Governo Temer publicamente assumir seu objetivo de acabar com o caráter público da emissora e torná-la uma mera forma de divulgar os pontos positivos da sua gestão.

O Eixo Norte da transposição do Rio São Francisco foi inaugurado no último dia 3 de agosto, com a presença do presidente Michel Temer. Por sinal, naquela data houve grande cobertura dos veículos da EBC. Apesar de bastante questionado por ambientalistas, o megaempreendimento tem simpatia das principais forças políticas.

Em quatro dias de viagens pelos municípios de Salgueiro, Terra Nova, Cabrobó e Sertânia, um grupo de pesquisadores ligados à FioCruz ouviu relatos de aproximadamente dez pontos em que o canal da transposição rompeu. Coordenador do projeto Beiras D`Água, André Monteiro conseguiu confirmar o número ao pesquisar na internet. Trabalhadores da obra contam que muitas vezes as empreiteiras e o Ministério da Integração não tiveram os devidos cuidados na fiscalização e as medidas de segurança necessárias foram descumpridas.

Do mesmo jeito que rompeu no dia 11 de agosto o canal nas proximidades da comunidade quilombola de Santana, em Salgueiro, fotografamos outro ponto que tinha rompido anteriormente em Cabrobó, nas terras que foram desapropriadas do Quilombo Jatobá. A única diferença é que como no primeiro ponto de rompimento não houve um viral para apontar as falhas na construção, até nossa passagem com a equipe da FioCruz do projeto Beiras D’água, este trecho sequer havia sido consertado, já que não houve nenhuma pressão pelas redes sociais.

A transposição é uma obra que oferece a possibilidade de belas imagens e a perspectiva de oferecer o sonho de uma solução efetiva do problema, para políticos e especialmente governantes que podem exercer assim um novo tipo de influência política nas comunidades do Nordeste, tenham sido ou não elas beneficiadas pela água do São Francisco. Ao analisar a repercussão do fato na internet, é fácil descobrir que um vereador de Salgueiro denunciou no dia 10 de agosto (portanto, antes do vídeo que viralizou no Facebook) um vazamento que também se referia à obra da transposição.

A cena do rompimento da barragem gravada em vídeo ganhou mais potência por ter sido gravada e narrada por um sertanejo, com seu sotaque característico, que no cinema costuma ser um dos grandes atrativos dos sucessos humorísticos que retratam o Nordeste.

Alguns fatos que nos chamam atenção no viral e na série de respostas ao tema que foram dadas na semana seguinte ao fato pela imprensa e pelos candidatos que disputavam o cargo de presidente da República nos remetem ao preconceito em relação aos sertanejos. Nas redes sociais, os posts mais simples acabam conseguindo ser compreendidos mais rapidamente e assim são favorecidos justamente os debates menos complexos ou resumidos a tópicos tão simples como uma guerra, que, neste caso, parece levar a uma condenação precipitada o típico sertanejo representado pela voz de quem narra o vídeo.

transposição_salgueiro_2A maioria das reportagens publicadas naquele período tem como principal fonte o poder público, seja através do Executivo Federal que tem o protagonismo na maioria das reportagens e também naquelas que circularam nos dias em que o tema estava tendo mais repercussão nas redes, especialmente o sábado e domingo (11 e 12 de agosto). Ou da Polícia Federal que passa a aparecer a partir da segunda-feira (13), mudando bastante o debate, já que inicialmente havia uma nota do Ministério da Integração Nacional falando em prisão de responsáveis por um crime que teria sido cometido para desviar a água, depois desmentido pela PF e pelo próprio Governo Federal.

Curiosamente, no material existe apenas uma exceção que não trata do rompimento da barreira. É uma reportagem produzida pela TV Globo de Petrolina e disponibilizada pelo portal G1 no dia 14 de agosto: Desapropriados pela transposição do São Francisco cobram infraestrutura de vilas produtivas no Sertão de PE. Apesar de tratar de um drama relacionado diretamente à transposição, não há na reportagem escrita para o portal ou da emissora nenhuma menção ao rompimento do canal do Eixo Norte da transposição (possivelmente um efeito de censura tácita ou explícita?).

Importante notar: O tema foi reportagem do Jornal Nacional da segunda-feira, véspera da sua veiculação pela retransmissora do sertão de Pernambuco. Isso pode demonstrar o quanto as emissoras locais muitas vezes também se ausentam de debates por motivações políticas.

No dia 17 de agosto, surgem as notícias de remoções causadas pelo risco de rompimento de outro ponto da transposição em Salgueiro, o chamado Dique de Negreiros. Encontramos 10 reportagens produzidas sobre os transtornos sofridos pelas famílias justamente da Vila Produtiva de Negreiros (uma das 18 comunidades construídas para receber os afetados pelas obras da transposição).

O projeto Beiras D`Água, no vídeo Invisíveis e em outros materiais, tem denunciado alguns dos problemas que estas comunidades estão sofrendo, inclusive de falta de água, já que ainda não foram beneficiadas com a água da transposição. Nas reportagens da imprensa, um fator a ser notado é a superficialidade, já que muitos jornalistas não tiveram contato direto com as vítimas e têm como fonte apenas a internet, outros veículos de comunicação e os órgãos públicos.

Mas a TV Globo no dia 17 se diferencia por ter enviado uma equipe de reportagem para Salgueiro. Nas três reportagens que foram publicadas pelo G1 nesta data, é possível pela primeira vez ouvir/ler o que dizem cidadãos que foram afetados pelo vazamento no contexto da grande mídia.

O repórter Paulo Ricardo Sobral, da TV Globo, não teve acesso ao local onde ocorreu o segundo vazamento. Ao viajar até o Sertão, pudemos ultrapassar a barreira criada pelo Ministério da Integração por estarmos num carro da FioCruz, aparentemente não havia mais riscos, além do de descobrir as vítimas do rompimento do Canal da Transposição e perceber que se tratava de remanescentes do Quilombo de Santana.

Porém, as equipes de da imprensa nunca chegaram a conseguir passar dessa barreira. Assi, segundo problema em menos de uma semana nas obras da transposição no município de Salgueiro, acaba não sendo relacionado com outras questões que facilmente são identificadas ao se conversar com os moradores da comunidade quilombola.

A recorrência das falhas técnicas na transposição acaba diluída nas reportagens e é superada por uma acusação inverídica de que haveria um crime em torno do rompimento do canal. Fica uma pergunta, há problemas estruturais na obra que o Governo Federal tentou esconder durante o período eleitoral? Esperamos que o tema passe a ser discutido com profundidade.

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A Marco Zero Conteúdo entrevistou o coordenador do projeto Beiras D’água, da FioCruz, o pesquisador André Monteiro Costa. O projeto, segundo seu próprio site, foi criado em 2015 para ser uma ferramenta de sistematização e organização do saber produzido no Vale do São Francisco, facilitando o diálogo entre iniciativas populares, ONGs, pesquisadores e instituições, apoiando ao fortalecimento e a defesa das pautas sociais e políticas.

Marco Zero Conteúdo – O que esperar do destino da Transposição nos próximos quatro anos? Os agricultores familiares podem alimentar esperanças de ter acesso á água, conforme previsto no projeto original?

André Monteiro Costa – As obras da transposição começaram há 11 anos e ainda não temos populações que estejam ao longo dos canais beneficiadas, seja com água para beber ou para irrigar. Não nos parece que possamos esperar por muito, não? E o rio São Francisco não dispõe de vazão para atender à vazão de projeto prevista. Não se tem ainda o modelo de gestão da transposição e especialistas afirmam que o custo da água será inviável para os governos estaduais, com previsão de conflitos.

O acesso às águas da transposição ocorre ao longo do rio Paraíba, de Monteiro ao açude do Boqueirão, para irrigação de apenas meio hectare por propriedade. E para o abastecimento humano nos municípios em torno de Campina Grande e Sertânia. Ou ainda, de forma clandestina, captada ao longo dos canais, por bombas e tubulações. Há um uso interessante, não previsto, que é o usodos canaise das barragens construídas ao longo destes, que se tornam nos fins de semana as praias do sertão. Mas já morreram, ao menos, dez pessoas afogadas, pois não há qualquer proteção ou fiscalização permanente.

É previsto que em quatro anos o agreste pernambucano receba essas águas. Mas não me parecem críveis estes prazos, dada a história de atrasos. Espera-se que os sistemas de água em povoados estejam em funcionamento. Que as Vilas Produtivas Rurais também estejam abastecidas, com irrigação e criação de animais. Há vilas que as pessoas estão há dez anos sem plantar, sem criar, ou seja sem fruírem suas identidades camponesas. E muitos têm sofrimento mental por isso.

Qual a situação dos agricultores que tiveram suas terras cortadas pelos canais da transposição? As lideranças políticas e latifundiários têm acesso à água?

Após 11 anos do início das obras as populações que estão ao longo dos canais vivem em condições piores do que antes. Isso é escandaloso. Apenas os que eram meeiros, que não eram proprietários, se beneficiaram, pois receberam casas na vilas. No mais, o sofrimento mental é a maior expressão de um modelo de desenvolvimentos perverso.

Os canais passam por cima de rios, riachos e várzeas, onde os agricultores, indígenas e quilombolas desenvolviam seu modo de vida tradicional, com produção de subsistência.Hoje apenas têmáguade caminhão pipa e nenhuma produção. Indenizações irrisórias, perdas materiais diversas e transformações nas paisagens produziram, o que afeta simbolicamente o modo tradicional de vida, produziram sofrimento mental intenso. Insônia, alcoolismoe depressãosão comuns. Encontramos também casos de infarto e suicídio. Muitos já moram em decorrências desses processos de vulnerabilização. Nos jovens o alcoolismo e drogas são comuns.

O acesso a água pelos latifundiários não ocorre formalmente. Há retiradas irregulares por bombas ao longo do canal. Ocorreu invasão de terra indígena em Floresta por um empresário desta cidade, dono de uma rede de supermercado. Mas há uma corrida por terras, sobretudo ao longo do rio Paraíba, por empresários de outros estados.

O senador Fernando Bezerra Coelho, quando era ministro da Integração Nacional, orgulhava-se de ter acelerado as obras da transposição que, sob os ministros anteriores, andaram a passos lentos. O senhor acredita que os problemas apresentados na obra podem ser resultantes de pressa?

Não podemos dizer que houve pressa em uma obra inconclusa,11 anos apósseu início.No projeto original o prazo era de três anos. OTCU disse queo Ministério da integração nãotinha capacidade gestora paratocar uma obra como essa. Estava correto.Um desastrelongo,lentoedoloroso.

OProjeto da transposiçãofoi vendido como sendopara acabar com a sedeno nordeste. A transposição não é um projeto de abastecimento de água. É um projeto de irrigação, para o agronegócio. Apenas cerca de 20% do projeto é para abastecimento humano. Se feitas adutoras, já teríamos segurança hídrica em todas as cidades doNordeste.Oprojetoéumacapturadaságuas paraaprodução de commoditiesda fruticultura irrigada noCeará eRio Grande do Norte,sobretudo.Ummodelode desenvolvimento ambiental e socialmenteinsustentável.

* jornalista e doutorando em Comunicação pelo PPGCOM-UFPE, viajou ao Sertão à convite do projeto Beiras D`Água, da FioCruz

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