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Indígenas Angico Pankararu reivindicam o direito a serem inseridos no grupo prioritário da vacinação contra a Covid-19. Crédito: Divulgação
Em 17 de março, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso determinou que tanto povos indígenas aldeados, quanto os residentes em áreas não homologadas tivessem prioridade na vacinação contra a covid-19. “Foi uma alegria para todos da aldeia quando recebemos a notícia de que teríamos prioridade na imunização contra essa doença terrível”, relembra Ubirajara Fernandes Barbosa, capitão do povo Angico Pankararu, em Petrolândia, no sertão de Pernambuco.
A euforia de Bira, como é mais conhecido, e de seus parentes não era para menos, no início daquele mês, como mostrou a Marco Zero Conteúdo, só em Pernambuco havia cerca de 15 mil homens e mulheres indígenas fora da primeira etapa do Plano Nacional de Imunização (PNI). O documento só considerava prioritário para receber o imunobiológico aqueles indígenas residentes em território homologados pela Fundação Nacional do Índio (Funai).
Mais de um mês depois da decisão cautelar de Barroso, no processo de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709, movido pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a alegria dos Angico Pankararu se transformou em frustração. Até esta sexta-feira (30), nenhuma dose de vacina havia chegado na aldeia, que fica a 30 quilômetros do centro de Petrolândia, bem às margens do rio São Francisco.
Bira conta que as 40 famílias que estão hoje na aldeia chegaram no território há 10 anos e desde então lutam pelo reconhecimento da terra e pelos seus direitos como povos originários. Todos vivem em casas de barro e trabalham ou na agricultura familiar ou como empregados na colheita e no transporte de alimentos produzidos em fazendas vizinhas, na área irrigada da região conhecida como cinturão verde.
“Ficamos perplexos e perguntamos que forma é essa que estão utilizando para vacinar os povos indígenas de Pernambuco? São famílias que mantêm suas tradições e seus costumes e sempre estão na luta pela terra, porém a Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena) nos deixou de fora da imunização. Por que a exclusão se a Funai nos reconhece, as aldeias mães de Pankararu e todos os caciques nos reconhecem?”, questiona Bira.
Um documento da Funai datado de 2014 declara que a comunidade “pertence a etnia Pankararu e é assistida por este órgão conforme o Estatuto do Índio, os artigos 231 e 232 da Constituição Federal e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)”. O ofício assinado pelo então coordenador técnico local de Petrolândia e membro da Coordenação Baixo São Francisco da Funai, José Cordeiro dos Santos, reafirma que os Angico Pankararus estão amparados pelas legislações citadas.
“Poderão solicitar apoio a este órgão indigenista oficial e demais órgãos da União Federal a fim de oferecer assistências e subsídios na resolução de suas questões, observando suas formas de organizações e especificidades culturais”, atesta o certificado da Funai.
O coordenador do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) – unidade gestora descentralizada do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS) – em Pernambuco, Antônio Fernando da Silva, disse que a declaração da Funai não serve de nada “porque a Funai não reconhece indígenas”. Essa chancela caberia, segundo ele, apenas às lideranças Pankararu que devem reconhecer a aldeia Angico e, depois disso, produzir um estudo da história da comunidade e apresentar ao Dsei, para assim ter direito aos serviços de saúde indigenistas.
“O pessoal não lê bem a ADPF 709, o STF deixa claro que a vacinação é para os indígenas em contexto urbano com barreiras de acesso ao SUS. A ADPF alcança, por exemplo, os Pankararus Opará, em Jatobá, que nós do Dsei já atendemos há muitos anos. A União não tem obrigação de atender pelo Dsei todos os indígenas, só os aldeados, os demais devem procurar o SUS nas prefeituras”, alega Silva.
Já o prefeito de Petrolândia, Fabiano Marques (PTB), argumenta que o que “a prefeitura pode fazer tem feito”. O gestor se esquiva de qualquer responsabilidade afirmando que a vacinação dos povos indígenas depende da definição do Dsei, que diz à Secretaria Municipal de Saúde quantos e onde estão os indígenas, para que sejam solicitadas as doses de vacinas correspondentes. “Em janeiro, pedimos mais de 800 doses para a comunidade Entre Serra que foi a que o Dsei informou”, resume.
Fontes da Funai, ouvidas sob condição de anonimato, disseram à Marco Zero que, de fato, ainda não há estudos que comprovem a ancestralidade do território e que havia uma associação de trabalhadores reivindicando a terra. Com o apoio do Ministério Público Federal (MPF), o órgão indigenista conseguiu provar que a entidade trabalhista não tinha interesse de uso social do espaço. A questão, portanto, foi judicializada e permanece estagnada, assim como na Diretoria de Proteção Territorial da Funai, em Brasília, que também está parada em meio a centenas de questões fundiárias.
O advogado e professor de direito da Universidade Estadual da Bahia (Uneb), Bruno Barbosa Heim, discorda da interpretação do coordenador do Dsei Pernambuco, e entrou com uma ação na Justiça Federal para obrigar a Sesai a cumprir a determinação do ministro Barroso.
O defensor se apoia na decisão do magistrado do STF ao exigir o levantamento por parte da Funai de todos os indígenas e alerta “que se caracterizam como povos indígenas todas e quaisquer comunidades tradicionais que se identifiquem como tal, situadas ou não em terras homologadas (art. 1º da Convenção 169 OIT)”.
“Há uma nítida omissão por parte da União, primeiramente em não cumprir com a sua função institucional de proteção dos direitos dos povos indígenas, que inclui o direito à vida, ou seja, não vaciná-los por si só já viola a Constituição Federal. Isso é mais grave ainda quando se tem uma decisão do STF que determina que se vacine todo indígena independente se estiver na aldeia homologada ou não”, afirma Heim, que também é membro do Núcleo de Prática Jurídica da Uneb, em Paulo Afonso (BA).
Na petição, assinada em conjunto com o também advogado e professor da Uneb, Isan Almeida Lima, eles pedem à Justiça Federal que seja determinada a vacinação dos indígenas Angico Pankararu e, em havendo o descumprimento da ordem, que seja aplicada multa diária mínima de R$ 200 mil e decretada a prisão do coordenador do Dsei Pernambuco por desobediência à ordem judicial.
Após ficar sabendo pela reportagem do caso da luta do povo Angico Pankararu para se vacinar contra covid-19, o MPF notificou a coordenação da Funai em Paulo Afondo e o Dsei Pernambuco. No ofício, o procurador de Serra Talhada (PE), André Estima de Souza Leite, pede que os órgãos informem as razões pelas quais os indígenas não foram vacinados e questiona qual a previsão para que eles sejam imunizados. As repostas devem ser enviadas em até três dias.
O missionário da Regional Nordeste do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Angelo Bueno também critica o Dsei pelo não cumprimento da ordem do STF. “É inconcebível que esses povos [não-aldeados] não entrem na lista de prioridades da vacinação. Essa norma da Sesai de só atender aldeados é uma aberração. Eles precisam urgentemente olhar com mais caridade a situação porque o tempo vai passando e a doença vai crescendo”, diz.
Esta reportagem é uma produção do Programa de Diversidade nas Redações, realizado pela Énois – Laboratório de Jornalismo Representativo, com o apoio do Google News Initiative”.
Jornalista formado pela Unicap e mestrando em jornalismo pela UFPB. Atuou como repórter no Diario de Pernambuco e Folha de Pernambuco. Foi trainee e correspondente da Folha de S.Paulo, correspondente do Estadão, colaborador do UOL e da Veja, além de assessor de imprensa. Vamos contar novas histórias? Manda a tua para klebernunes.marcozero@gmail.com