Ajude a MZ com um PIX de qualquer valor para a MZ: chave CNPJ 28.660.021/0001-52
por Assíria Florêncio
O crânio de um homem muçulmano roubado há 190 anos em Salvador (BA) por um diplomata americano, logo após o Levante dos Malês, em 1835, poderá ser devolvido ao Brasil ainda neste ano. O crânio faz parte da coleção do Peabody Museum da Universidade de Harvard há quase dois séculos. O Ministério das Relações Exteriores (MRE) admite já estar em “tratativas” com a instituição de ensino para “estabelecer os trâmites da devolução e destinação final dos restos mortais” do homem iorubá que lutou e foi morto numas das insurreições escravas mais importantes da história das Américas.
O retorno do crânio é pleiteado pelo Centro Cultural Islâmico da Bahia (CCIB) desde 2022, quando sua existência foi descoberta. Com a entrada do Itamaraty nas negociações, em novembro do ano passado, pesquisadores envolvidos no processo acreditam que a presença de um representante do Estado brasileiro no grupo de trabalho que pede a devolução trará celeridade às negociações. Esse será o primeiro repatriamento do tipo feito ao Brasil, que, caso ocorra ainda em 2025, fará parte das celebrações dos 190 anos do Levante dos Malês, que começam neste sábado, 25 de janeiro.
A devolução se somará a outras recentes, como a do Manto Tupinambá, devolvido ao Brasil em julho do ano passado, após mais de 300 anos exposto no Museu Nacional da Dinamarca. E também, a do fóssil do dinossauro Ubirajara jubatus, restituído ao País em junho de 2023 depois de ser contrabandeado para o Museu Estadual de História Natural Karlsruhe, na Alemanha, nos anos 1990.
A repatriação fica mais próxima de acontecer devido à formalização do GT Arakunrin, que quer dizer “irmão, companheiro” em iorubá. É a palavra utilizada pelo Sheikh Abdul Ahmad, também iorubá e líder espiritual da comunidade muçulmana na Bahia, para referir-se ao irmão muçulmano morto no Levante de 1835.
Mas o imbróglio realmente ficou mais perto de uma conclusão devido à presença do Itamaraty nas negociações, coisa que João José Reis, uma das principais referências do País quando o tema é a revolta dos Malês e responsável por trazer à tona o assunto no Brasil. considera uma “arrogância” da instituição de ensino norte-americana. “Agora são dois governos que estão dialogando: o ‘governo’ de Harvard e o governo brasileiro”, ironiza, criticando a demora para a devolução.
A existência do crânio foi revelada pela primeira vez no livro Masters of the Health: Racial Science and Slavery in U.S. Medical Schools (Mestres da Saúde: a ciência racial e a escravidão na medicina dos EUA, em tradução livre), do historiador Christopher Willoughby. “Cheguei a ele através de uma reportagem do The Harvard Crimson, o jornal produzido pelos estudantes da universidade”, relembra o professor Reis.
A matéria apresentava a “coleção de horrores do Peabody Museum”, adjetiva o professor, formada pelos restos humanos de 19 indivíduos provavelmente escravizados no Brasil e no Caribe, além de outros quase sete mil nativos americanos. “Tinha essa história de que um crânio, que teria sido de um líder do Levante dos Malês, fora roubado do Brasil. Esse homem teria morrido numa espécie de convento que na época também servia de enfermaria”, continua.
O motivo do contrabando do crânio para fora do País pode ser explicado pelo contexto histórico da época: a medicina ocidental utilizava restos mortais para promover ideais racistas da existência de hierarquias nas estruturas sociais, como conta o livro e também um relatório de Harvard sobre o assunto.
Pesquisadores do GT Arakunrin — Grupo de Trabalho para o Repatriamento do Crânio Malê ainda se debruçam para descobrir as condições do transporte e do acondicionamento do crânio do Brasil para os Estados Unidos, mas já afirmam, com certeza, que foi roubado do País por um diplomata americano.
Entregue ao museu de Harvard por um colecionador de Boston, o crânio foi levado para fora do Brasil por Gideon Theodore Snow, que além de um comerciante, foi vice-cônsul em Alagoas e, posteriormente, já na década de 1840, cônsul em Pernambuco.
“Consultando jornais e documentos do Brasil e dos Estados Unidos, descobri que Snow não era apenas um comerciante, um aventureiro, mas sim que era um agente do Estado americano. O que eu acho que adiciona uma outra camada nesta questão: estamos falando de um diplomata, roubando um crânio de um indivíduo africano dentro do Brasil e levando para outro país”, dispara Bruno Rafael Véras, historiador e professor contratado da Universidade de Toronto, no Canadá.
Véras dimensiona o status de Snow relacionando à posição que angariou logo depois de cônsul de Pernambuco. “Era um cargo extremamente importante para uma representação diplomática dentro do Brasil. A cidade do Recife era crucial para o escoamento de açúcar” — produto com o qual Gideon trabalhava.
Prova disso são as viagens que fazia para a abertura de companhias de comércio em Alagoas, Pernambuco e Bahia. Documentos apontam que “em 1835, ele estava em Salvador, que foi onde conseguiu esse crânio”, completa.
Quando o crânio chegar ao Brasil, antes de ser enterrado conforme os rituais fúnebres muçulmanos, a intenção do GT é estudá-lo para determinar a idade aproximada do homem morto, o que dará uma dimensão sobre o perfil dos participantes do Levante dos Malês. “Mais elementos para se pensar a história”, explica Bruno Véras.
A realização de um teste de DNA também é prevista. Entender a genética, argumenta o professor, pode informar mais sobre as questões étnicas dos participantes do movimento. Além disso, um escaneamento 3D do crânio para se descobrir o rosto do Arakunrin, que encontrará descanso após quase duzentos anos de espera.
O CCIB pede pelo crânio há dois anos. Hannah Bellini, doutora em cultura e sociedade e pesquisadora da Universidade Federal da Bahia (UFBA) explica que o movimento de retorno não deixa de ser uma reparação histórica “justamente por conta das circunstâncias do desaparecimento dessa tradição”.
“Em 1835, de 15% a 20% dos africanos na Bahia, em Salvador, eram islamizados. A partir do levante, a gente vai pra quase um desaparecimento dessa comunidade. Fomos de minoria considerável a um apagamento dessa tradição”, continua.
Para Hannah, é impossível não fazer uma relação do protagonismo que a comunidade islâmica teve nas revoluções escravas com o processo de criminalização da matriz religiosa e posterior “desaparecimento”. O retorno do crânio é uma “forma de trazer essa identidade, essa matriz religiosa de volta para nosso espaço público de memória”.
O Levante dos Malês reconfigurou a organização da sociedade da Bahia daquela época. De religião publicamente praticada por aqueles em diáspora, que se manifestava tanto pela confecção de roupas ou por realização de orações em voz alta, passou a ser duramente reprimida — principalmente, devido à alfabetização em árabe daqueles que se convertiam ao islamismo.
Malê, vem de ‘imalê’, que significa muçulmano em iorubá. Estima-se que 600 pessoas participaram da revolta entre os dias 24 e 25 de janeiro de 1835, sofrendo uma violenta repressão, sendo rapidamente julgados e penalizados, o que produziu um grande volume de documentos sobre as condições do Levante, o que era incomum para o período, como detalha João Reis.
“O Levante dos Malês é único porque foi urbano, muçulmano e altamente documentado. Em 1870, ainda eram feitos pedido de perdão ao imperador pela participação naquela revolta que não foi só de escravizados, mas também de libertos.”
É um coletivo de jornalismo investigativo que aposta em matérias aprofundadas, independentes e de interesse público.