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Hortas e cozinhas comunitárias: mulheres do sertão potiguar buscam a independência

Maria Carolina Santos / 03/10/2024

Crédito: Arnaldo Sete/MZ

Caraúbas (RN) – A cozinha comunitária do assentamento São José se abre para o sertão. No mês de setembro, a memória das chuvas já não está presente nos arbustos e nas árvores da caatinga. A paisagem da porta pra fora é bonita: quase tudo seco, mas vivo, debaixo de um imenso céu azul, ainda maior que o calor que faz na região do Médio Oeste do Rio Grande do Norte. Dentro da cozinha, perto de forno e fogão, mulheres agricultoras buscam o sonho da independência e de uma vida melhor.

Alexsandra de Almeida, conhecida como Sandra, é a líder do grupo de mulheres do assentamento. Ela conta que a cozinha comunitária foi construída em 2012, por meio de um projeto captado pela ong Diaconia, que também implementou uma cozinha semelhante para outro grupo de mulheres, as do assentamento Ursulina.

A Marco Zero visitou em setembro essas duas cozinhas em Caraúbas para entender como elas fortalecem as mulheres agricultoras do sertão e ajudam no fornecimento da merenda de mais de 2,5 mil alunos das 24 escolas do município.

A cozinha do assentamento São José conta hoje com a participação de cinco mulheres. Depois de passar por cursos e capacitações, começaram a produzir salgados, doces – o de mamão com coco é um dos destaques –, biscoitos e outros quitutes. Por um tempo, venderam a produção delas na feira da cidade. “Depois da pandemia, o movimento diminuiu. As pessoas não estão mais adaptadas a lanchar na feira”, comenta Sandra.

Hoje, elas produzem por encomenda ou quando surge alguma ocasião especial. Para Josilene Ferreira de Lima, conhecida como Rosa, trabalhar na cozinha significa ter uma renda extra. “Consigo pagar alguma conta ou comprar algo de necessidade. Em meses bons, cada uma consegue tirar cerca de R$ 500. Nos meses ruins, não chega nada”, conta. Neste mês de outubro as mulheres do assentamento São José devem começar a produzir bolos para a merenda escolar do município.

Para as mulheres do assentamento de Ursulina, também na zona Rural de Caraúbas, a venda para a merenda escolar, através do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), é muito importante para a melhoria de vida delas. “No ano passado, cheguei a tirar quase R$ 900 com cada pedido. E teve mês que foram dois pedidos. Foi ótimo e deu para pagar as contas em casa”, conta índia Batista de Oliveira, uma das cozinheiras de Ursulina.

Crédito: Arnaldo Sete/MZ

Este ano, porém, a prefeitura de Caraúbas começou apenas neste mês a fazer os pedidos de bolos para as escolas municipais. “É ruim porque a gente se prepara para fazer essa produção e os pedidos demoram a chegar”, diz Dilvânia Fernandes, líder do grupo de mulheres de Ursulina. “Mas quando pedem é bom. Porque os pedidos são muito grandes e o pagamento não demora”, completa.

Com as eleições batendo na porta, Dilvânia fala da importância de se votar em candidatos e candidatas que apoiem as mulheres e a agricultura familiar. “Eu acho que os políticos poderiam olhar mais para o trabalho das mulheres, que não é um trabalho fácil. A gente acorda de manhã cedo para cuidar de filho, cuidar de casa, cuidar de tudo. E e ainda temos tempo para batalhar pelo que a gente sonha”, diz.

Um quintal que é uma feira

Aos 77 anos, a agricultora Joana da Conceição Fernandes mora com a mãe, de 97 anos, e uma neta numa casa com quintal grande no assentamento Ursulina.  Acorda cedo, antes do sol nascer, para preparar o café da manhã. Nos primeiros raios de sol, abre a porta da cozinha e se depara com um quintal que mais parece um sítio. Tem uma dezena de fruteiras, diversos legumes e plantas medicinais. Ainda cedinho, liga a bomba para encher uns tambores e vai com uma moringa aguando cada planta. 

A casa dela é considerada um quintal produtivo, mas dona Joana não vende nada da sua produção. O consumo é feito pela casa dela e as famílias dos três dos nove filhos que moram no assentamento de Ursulina. 

Nos fundos do quintal, ainda há espaço para animais. Dona Joana cuida de dois porcos, muitas galinhas e algumas cabras. “Toda a vida eu gostei de plantar. Muitas coisas que eu tenho aqui eu já não compro. Faço minha feira no quintal”, conta. 

 

Um quadradinho verde no sertão

No meio da paisagem da estação seca do sertão, a horta das mulheres de São José é um quadradinho verde e produtivo. Mas é preciso muitos cuidados para mantê-la assim. Com a ajuda da irrigação por aspersão, três mulheres da comunidade plantam e colhem coentro, couve, cebolinha, mamão, pimentão, alface. A irrigação tem que ser cuidadosa, já que a água usada é bastante salina e pode prejudicar a qualidade do solo, podendo até mesmo levar ao processo de desertificação.

Como o sol em Caraúbas é inclemente, também é necessário oferecer algum tipo de sombra para que as verduras cresçam. Isso é feito com o uso de redes que cercam toda a horta, garantindo também que animais não entrem na horta. Toda a assistência técnica para a produção dos alimentos veio por meio de projetos da Diaconia.

Cedinho da manhã, Damiana Veríssimo já está pela horta para dar água para as plantas. Liga a irrigação no que dá e rega restante com balde. “Quando é dia de plantar, a gente planta; quando é dia de colher, a gente colhe”, conta Damiana.

O que é produzido pelas mulheres é vendido e, depois de retirado os custos, dividido entre elas. Vendem para a prefeitura de Caraúbas, pelo PNAE e pelo PAA, na feira e por delivery. Mesmo plantando sem o uso de agrotóxicos, não conseguem melhorar o preço da venda na feira. “Só quando é pelo governo que conseguimos um preço melhor, por ser um produto orgânico. Na feira, a gente tem que vender pelo preço que as outras barracas, que plantam com veneno, vendem. se não for assim, ninguém compra”, lamenta Maria das Dores Veríssimo, agricultora do grupo de mulheres.

Na lida diária, na horta ou na cozinha comunitária, as agricultoras ainda têm que enfrentar o machismo. Fazer com que maridos e companheiros entendam o valor do trabalho delas não é uma tarefa simples. “Quando o projeto da Diaconia chegou aqui, chamaram os homens para uma reunião. Eles não foram. Tiveram então que ir de casa em casa, explicando como era importante que as mulheres participassem desse processo”, relembra Sandra.

Ela própria teve problemas para o marido aceitar que ela também tinha voz na comunidade.
“Eu nunca deixei de fazer o que eu queria, eu quis trabalhar porque eu quis ser dona de mim. Nas reuniões da associação, a gente não quer ser mais do que o homem. Queremos o nosso lugar, o nosso respeito. Queremos ter a nossa própria renda pra gente sobreviver, pra não ficar dependendo do marido. Se a gente está cozinhando, plantando, estamos ajudando em casa”, diz.

Foi com muito esforço que o marido de Sandra compreendeu o valor do trabalho dela. E até passou a ajudá-la na horta comunitária das mulheres. Mas uma tragédia aconteceu em 2016: ele estava trabalhando para levar água para a horta quando levou um choque elétrico ao tocar em uma bomba de água, falecendo na hora.

Na casa de Rosa, as disputas são constantes, mas ela não abre mão de participar das atividades da cozinha comunitária. “A gente briga direto. Ele gosta de tudo que eu levo pra casa da horta, mas há 14 anos que a gente briga porque ele não quer que eu vá para lá. Mas eu só saio de lá quando eu morrer. Enquanto eu tiver vida, vou plantar”, disse Rosa.

Agricultora Vanusa Vieira de Lima

Crédito: Arnaldo Sete/MZ

Plantas medicinais no quintal de casa

Embiratanha, imburana, mastruz e quixabeira são algumas das plantas medicinais que Vanusa Vieira de Lima coloca na garrafada que serve “para tudo”. Moradora do assentamento Primeiro de Maio, ela também produz garrafadas com propriedades antiinflamatórias e para problemas respiratórios, infertilidade e outras tantas enfermidades.

“Tomo todo dia a garrafada antiinflamatória. Não sinto nenhum tipo de dor e todos meus exames são bons”, conta. Quase todas as plantas que usa, ela colhe no quintal de casa. Outras, nas matas de caatinga perto do assentamento.

Vanusa aprendeu a fazer as garrafadas na tentativa e erro. “Quem fazia aqui no assentamento se aposentou e não deu as receitas. como eu já sabia quais eram as plantas que se usava para cada coisa, fui testando quanto de açúcar era necessário para cada produto”, conta. Para atender a todos os públicos, ela faz garrafas com e sem açúcar.

Durante anos, Vanusa liderou a horta comunitária das mulheres do assentamento. Todo sábado vendia os produtos na feira e tirava uma renda que ajudava na casa. Mas as mulheres que trabalhavam com ela na horta foram saindo, mudando de residência ou de interesses sozinha, Vanusa não conseguiu mais dar conta. Mudou parte da horta para o quintal dela, que tem de quase tudo um pouco.

A horta foi doada para uma escola técnica do assentamento e Vanusa concentrou sua produção nas plantas medicinais. Vende as garrafadas na feira e por encomenda, por preços que variam de R$13 a R$25. “Tudo que levo, eu vendo. Eu acho muito bom trabalhar. A minha vontade é de crescer. Porque a gente que mora na zona rural já sabe que é muito difícil as condições de vida. Mas enquanto eu tiver vida e saúde, ter coragem, eu tenho o suficiente”, diz.

Compras públicas ajudam a agricultura familiar

O trabalho das mulheres nas hortas, nos quintais e nas cozinhas é fortalecido pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) e pelo Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). São dois programas do Governo Federal, geridos pelos municípios, em que há o repasse de verba para a compra direta a agricultores e agricultoras, como pessoa física ou em associações e cooperativas.

Neste ano, Caraúbas recebeu R$369 mil do PNAE para a compra de alimentos para a merenda dos alunos das escolas de Caraúbas. O PNAE destina pelo menos 30% da verba repassada para cada município para a compra de alimentos produzidos pela agricultura familiar. Mas nem sempre as prefeituras conseguem cumprir essa meta. “O número de agricultores vem diminuindo aqui na região”, lamenta a nutricionista Mona Lídghya Pessoa, responsável técnica pela compra de alimentos para o PNAE em Caraúbas. “Os jovens preferem ir para as cidades, em busca de empregos. Ou ficam na zona rural, mas vão trabalhar nos projetos de frutas para fazer polpa, para exportação. Não ficam mais na agricultura. Mas com os programas, conseguem vender mais e, quem sabe, continuar trabalhando no campo”, completa.

Para ter uma ideia de quem são os agricultores e agricultoras do município que podem fornecer produtos para os programas do Governo Federal, a prefeitura de Caraúbas realizou de 2020 para cá dois mapeamentos no município. “Praticamente não houve mudança. Hoje, em 2024, nós temos como fornecedores a CooperUba, que é uma cooperativa, e quatro fornecedores individuais. Nos mapeamentos fazemos um trabalho para que outros agricultores se cadastrem nos programas, mas alguns alegam burocracia, mesmo a gente facilitando, e outros dizem que não têm interesse, porque consideram o valor de compra baixo”, afirma a nutricionista.

A equipe de reportagem visitou os territórios a partir do convite da Rede ATER NE e AS-PTA.

AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org