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Como a impunidade favorece crescimento de grupos neonazistas em Pernambuco

Polícia não soube informar ao Conselho Nacional de Direitos Humanos se houve investigação do ataque ao MST em 2022

Inácio França / 29/07/2025
A fotografia mostra um grupo de cerca de dez pessoas reunidas em uma área de vegetação aberta, com grama alta, árvores e arbustos ao fundo. À esquerda da imagem, um homem com cabelos grisalhos e barba, vestindo camiseta cinza, está de pé e gesticula com o braço estendido, como se explicasse algo ao grupo. As demais pessoas estão viradas para ele, ouvindo atentamente. Entre elas, há mulheres e homens com diferentes estilos de roupa — alguns mais formais, outros casuais. Uma das mulheres veste um colete azul com a sigla CNDH, que significa Conselho Nacional de Direitos Humanos. À direita da cena, há uma estrutura arredondada de concreto parcialmente coberta de vegetação, possivelmente uma cisterna ou fossa séptica, e também um barril azul de plástico. O ambiente transmite a sensação de uma visita de campo ou inspeção em área rural.

Crédito: Inácio França/Marco Zero

Na manhã de terça-feira, 22 de julho, Maria Lucineide Pereira, atendeu a uma chamada de voz pelo whatsapp de um homem que dizia ser o comissário de polícia Moacir – o nome que aparecia no perfil era Moacir Costa – perguntando se ela ainda tinha a cópia do boletim de ocorrência da pichação de suásticas nazistas nas paredes do centro de formação do MST e do incêndio criminoso que destruiu seu quarto, em um anexo do centro, na zona rural de Caruaru, em novembro de 2022. Ela achou esquisito, mas confirmou ter o documento guardado.

Minutos depois, a agricultora Lucicleide Silva recebeu ligação do mesmo número, perguntando sobre o b.o. do ataque ao seu lote de terra, vizinho do centro. As duas se encontraram em seguida, confirmando que a origem da ligação era o mesmo número. As duas mulheres acharam aquilo muito esquisito.

Mais esquisito ainda porque, no dia seguinte, elas iriam encontrar uma equipe do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) para tratar exatamente do tema que tanto merecia a atenção do suposto policial: os ataques e pichações sofridas pelo centro de formação em novembro de 2022, logo após a eleição presidencial em que Lula derrotou Bolsonaro.

Desde então, a única vez que as polícias Civil e Federal se interessaram pelo assunto foi no dia seguinte ao ataque, quando jornalistas e cinegrafistas também estavam por lá.

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O ataque ao centro de formação do MST em Caruaru aconteceu na madrugada do sábado, 12 de novembro de 2022. As paredes do prédio onde funciona a sede administrativa foi pichado com suásticas, símbolo nazista, e com a palavra “mito”. A casa onde mora a coordenadora Lucineide Pereira foi arrombada e incendiada. Dias depois, om lote de terra onde vivem Lucicleide Silva e seu pai, Sebastião, foi invadida, os animais foram soltos e a casa de taipa que servia de depósito para sementes e ferramentas de trabalho foi incendiada e destruída.

Na quarta-feira, elas contaram das chamadas de voz para Carlos Nicodemos e Edna Jatobá, representantes do CNDH. “Fora essas ligações estranhas, a Polícia nunca mais nos procurou para dar alguma satisfação ou apresentar o resultado da investigação”, afirmou Lucineide.

Na sequência de encontros com autoridades pernambucanas, a equipe do CNDH que apura como os estados combatem grupos neonazistas entenderam a razão daquelas chamadas do tal comissário Moacir. “Até esse momento, não sabemos quem estava investigando o caso dois ataques em Caruaru. Perguntamos à Polícia Federal e à Polícia Civil quais os desdobramentos dos inquéritos e ninguém nos soube dizer nada”, afirma o conselheiro Nicodemos, relator da missão do CNDH.

Além de escutar os relatos das agricultoras em Caruaru, a missão do CNDH manteve uma extensa agenda institucional no Recife, onde foram recebidas pela governadora Raquel Lyra, pelo procurador geral de Justiça na sede do Ministério Público, pelo superintendente da Polícia Federal, Polícia Civil e secretarias estadual e municipal de Educação. A equipe também participou de um seminário onde pesquisadores apresentaram seus estudos sobre o tema.

“Nossa tarefa é de controle externo, então o que estamos realizando é uma investigação administrativa para entender como os estados lidam com as ameaças neonazistas e ataques de ódio, como respondem a isso e qual a capacidade instalada para dar a resposta adequada”, explicou Nicodemos. Em Pernambuco, só o prefeito do Recife, João Campos, e seu vice, Victor Marques, alegaram não ter tempo na agenda para receber os representantes do Conselho.

A foto mostra Carlos Nicodemos sentado à mesa durante um evento formal. Ele é um homem branco, de meia-idade, com barba grisalha e cabelos compridos penteados para trás. Usa óculos de armação escura, terno cinza claro, camisa branca e gravata vermelha. Ele segura um celular preto com uma das mãos e olha atentamente para a frente, com expressão séria. À sua frente, sobre a mesa coberta por uma toalha azul, há papéis e copinhos plásticos com água. Um microfone está posicionado em sua direção. Ao fundo, uma mulher negra com cabelos crespos soltos veste uma blusa roxa de mangas bufantes. Ela também está sentada e aparenta estar batendo palmas ou gesticulando, com expressão atenta.

“Não sabemos quem investigou os ataques em Caruaru”, espanta-se Carlos Nicodemos

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

Automutilação

Na reunião com gestores da secretaria estadual de Educação e diretoras de escolas, a missão conheceu uma iniciativa recém-implantada pelo governo estadual que, com um mês de funcionamento, revelou que a presença de grupos neonazistas em Pernambuco pode ser mais profunda do que parece. Trata-se do Registro de Ocorrência Escolar (R.O.E.), criado pela lei estadual 18.532, o marco legal de enfrentamento à violência escolar no estado.

No processo de criação do R.O.E., dezenas de educadores passaram por treinamento na Agência Brasileira de Inteligência (Abin), onde foram capacitados para fazer monitoramento de movimentos extremistas e neonazistas nas escolas da rede estadual de ensino. O objetivo é prevenir mortes como as que aconteceram em ataques em outros estados do país.

De acordo com Érica Del Giudice, assessora técnica do CNDH e mestre em Políticas Públicas em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), “no encontro com a secretaria de Educação, ficamos sabendo que o registro foi criado em maio mas, logo depois, entrou em inatividade com as férias escolares. Mesmo assim, bastou um mês para que dois casos de ação neonazistas fossem identificados em escolas públicas”.

Com nomes e escolas mantidas sob sigilo, a Secretaria da Educação informou que, no primeiro caso, um adolescente cometeu automutilação para “tatuar” uma suástica na pele. E isso, segundo Del Giudice, é um péssimo sinal, a ponta de um iceberg assustador: “a automutilação é um desafio imposto por comunidades ou grupos neonazistas, indicativo que não se trata de um lobo solitário”.

O segundo caso diz respeito a material impresso encontrado dentro de um caderno, onde já havia várias suásticas e outros símbolos extremistas desenhados.

Células ou organismos?

Como aconteceu nos três primeiros estados que receberam a missão – Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Santa Catarina -, a agenda pernambucana encerrou-se com uma audiência pública no auditório da seccional da Ordem dos Advogados do Brasil. A ideia era colher relatos e denúncias específicas sobre a atuação de grupos extremistas, neonazistas e discurso de ódio.

Apesar da maior parte dos participantes ter preferido discursar sobre bandeiras gerais da chamada agenda progressista, o líder comunitário Francisco Santana, morador do Ibura, se ateve à pauta proposta pelo CNDH:

“A gente via como algo distante, apenas em livros de história, mas meu filho estuda numa escola municipal e trouxe para casa relatos de saudações nazistas feitas por adoradores de Hitler em sala de aula, na hora do recreio”, alertou. Representante dos pais no Conselho Municipal de Educação, Santana denunciou o caso numa reunião, então escutou de diretoras de outros colégios que “aquilo não está acontecendo só no Ibura, não”.

Carlos Nicodemos anunciou que o CNDH vai requisitar às autoridades municipais informações sobre o que está sendo feito em relação às denúncias.

A foto mostra uma mesa de debates com cinco pessoas sentadas, em um auditório da Universidade de Pernambuco (UPE), na Faculdade de Administração e Direito (FCAP). Há um banner ao fundo com os logotipos da UPE e da FCAP, além de um cartaz anunciando uma atividade da Relatoria Nacional em Pernambuco. Na mesa, há homens e uma mulher, todos com microfones e materiais de apoio. Um dos participantes fala enquanto os demais escutam. Em frente à mesa, há uma faixa verde com o nome do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) e pessoas assistem ao evento na plateia.

CNDH realizou seminário e audiência pública durante passagem pelo Recife

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

Já o advogado Bruno Ribeiro, da Comissão Pastoral da Terra e conselheiro do Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop), alertou sobre a necessidade mudar a abordagem do problema: “já não é mais uma questão de células neonazistas, mas de todo um organismo bastante articulado; também já não cabe falar de discurso de ódio, mas de prática de ódio”.

Érica Del Giudice recorre aos dados levantados pela antropóloga Adriana Magalhães Dias, autora da pesquisa mais profunda que já se fez no Brasil sobre o avanço desses grupos no país. “É comum a mídia destacar que, durante o governo Bolsonaro, de 2019 a 2022, houve crescimento de 270% de células neonazistas no Brasil, mas outro dado ajuda a entender melhor a questão: de 2015 a 2019, ou seja, a partir das manifestações contra Dilma Rousseff até a posse de Bolsonaro, a taxa de crescimento foi de 1.400%”.

Ou seja, o nazismo brasileiro cresceu com o lavajatismo e com as passeatas “patrióticas” pelo impeachment.

AUTOR
Foto Inácio França
Inácio França

Jornalista e escritor. É o diretor de conteúdo da MZ.