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Indústria da carne controla debate ambiental no Brasil e lança metas vagas de zerar emissões

Marco Zero Conteúdo / 08/12/2021

Crédito: Rodolfo Oliveira/Agência Pará

por Mariana Lenharo, do site Bocado

Como o bife do seu almoço contribui para as mudanças climáticas? Essa não é uma pergunta fácil de se responder. Para uma pessoa que come carne, encontrar informações diretas e confiáveis sobre o impacto ambiental dos alimentos que consome é bem complicado. Isso porque a indústria da carne faz um esforço enorme para se isentar da sua responsabilidade ambiental.

Dá uma olhada neste caso: em uma busca rápida pelo site beefresearch.org, iniciativa que se define como um programa de pesquisa sobre a segurança, qualidade, nutrição e sustentabilidade da carne bovina, o consumidor pode ter a impressão de que a indústria da carne é um exemplo de respeito ao meio ambiente. 

Segundo um artigo publicado no site, o gado não tem contribuído para as mudanças climáticas nos EUA. Outro artigo afirma que reduzir o consumo de carne bovina não resultaria em menos emissões de gases do efeito estufa e que, para diminuir o impacto ambiental da produção de carne, bastaria que os consumidores evitassem o desperdício.

Os autores, todos acadêmicos de universidades americanas, emprestam um ar de credibilidade científica aos artigos. Mas um exame mais atento do site revela o motivo de as conclusões serem tão benevolentes ao setor carne: o programa todo é financiado por uma associação de produtores de gado dos EUA.

Essa é só uma das estratégias que essa indústria utiliza para moldar a opinião pública a seu favor, em detrimento das evidências que apontam o setor da carne como um dos maiores emissores de gases de efeito estufa no mundo. 

Segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), a pecuária é responsável por 14,5% de todas as emissões de gases de efeito estufa relacionados a atividades humanas no mundo – o setor de energia, maior emissor, produz 25% e a indústria, 21%.

No Brasil, a contribuição é ainda maior. A agropecuária como um todo é responsável por cerca de 30% das emissões líquidas de gases de efeito estufa no país, das quais 69% são resultantes da criação de gado bovino. O setor fica atrás somente das emissões por mudanças de uso da terra (que incluem desmatamento e queimadas) – que, por sua vez, também estão intimamente ligadas à própria agropecuária. As informaçõessão do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG), iniciativa do Observatório do Clima coordenada pela ONG brasileira Imaflora.

Se contabilizadas as emissões de todos os setores relacionados à produção agropecuária, como o desmatamento, o uso de combustíveis fósseis nos processos produtivos e no tratamento de resíduos da agroindústria, o setor chega a ser responsável por quase 70% das emissões brasileiras, segundo dados do SEEG.

Especialmente no Brasil, calcular o impacto da carne nas emissões de gases de efeito estufa é uma tarefa complexa, segundo Ciniro Costa Junior, um dos autores dos relatórios do SEEG e atualmente cientista do programa de pesquisa CGIAR sobre Mudanças Climáticas, Agricultura e Segurança Alimentar.

Ele explica que, via de regra, quanto mais eficiente é o sistema de produção de carne, menor é a emissão de gases de efeito estufa. No Brasil, sistemas de pecuária em áreas intensivas, com práticas sustentáveis e tecnológicas produzem até 10 vezes mais do que áreas degradadas. “Você imagina a loucura que é chegar à média nacional de emissões porque o espectro aqui dentro é muito amplo”, diz Costa Junior.

Além disso, diferentes instituições utilizam diferentes métodos para calcular as emissões, o que pode levar a divergências nos dados. “Isso é utilizado amplamente, e é até previsível que o setor se utilize dessa maleabilidade para apresentar o ângulo que fique mais bonito na foto”, afirma Mairon Bastos Lima, pesquisador do Instituto Ambiental de Estocolmo.

Esse é o artifício usado pelo programa beefresearch.org. “Isso é negacionismo disfarçado de pesquisa. Você pode até discutir se o impacto da pecuária no clima é maior ou menor, o exato percentual pode ser objeto de debate, mas dizer que não há impacto é um negacionismo até grosseiro”, afirma Lima.

O poder estrutural do setor no Brasil

Myanna Lahsen, pesquisadora da área ambiental na Linköping University, na Suécia, diz que a indústria da carne tem um poder estrutural tão grande no Brasil, devido à sua proximidade com o governo e com a mídia, que ela é capaz de dominar a percepção pública, sufocando qualquer discussão sobre o impacto ambiental do setor.

“Em geral, até na ciência as pessoas têm receio de abordar esse assunto de forma crítica, e os jornalistas também. Aí a indústria nem precisa se mobilizar tanto porque o assunto já não está muito na pauta”, afirma ela, que realiza pesquisas no Brasil desde 2007.

Lahsen observa que existe uma percepção de que cientistas de entidades públicas brasileiras como a Embrapa devem servir ao que seria considerado “o interesse nacional”. “Existe pouco espaço para cientistas se contraporem e desafiarem esse discurso quanto à carne.” Por tudo isso, não é tão comum que essas empresas financiem pesquisadores, como ocorre nos EUA, afirma ela. “Esse fenômeno de cientistas pagos pela indústria é um fenômeno mais americano.” 

Por email, o pesquisador Rodrigo da Costa Gomes, da Embrapa Gado de Corte, afirmou que a empresa pública possui um portfólio de pesquisa específico focado em mudanças climáticas. Segundo ele, o objetivo é “oferecer alternativas para a adaptação e a sustentabilidade da agricultura brasileira frente aos desafios impostos pela mudança do clima, contribuindo para a segurança alimentar global e para o controle das emissões nacionais de gases de efeito estufa”. 

“Posso afirmar que há um esforço significativo do meio científico brasileiro em busca de soluções para a redução na emissão líquida de carbono na agropecuária”, afirmou. Ele cita que a Embrapa tem uma parceria com a produtora de carne Marfrig para o desenvolvimento do conceito da “Carne Carbono Neutro”. 

Além da academia e de órgãos públicos, o poder estrutural da indústria da carne no Brasil também tem reflexos no jornalismo. Lahsen fez uma extensa análise da cobertura de mudanças climáticas na imprensa brasileira, concluindo que pouquíssimas reportagens nos grandes jornais diários do país abordam o papel da pecuária na emissão de gases de efeito estufa. Quando o assunto foi tratado, a tendência foi de minimizar esse impacto negativo. A análise publicada cobre o período de 2002 a 2010, mas Lahsen continuou coletando dados e diz que a cobertura da carne como um problema ambiental diminuiu ainda mais nos últimos anos.

Embrapa, empresa pública de pesquisa, se associa ao marketing dos frigoríficos (Reprodução/Twitter)

Marketing ou compromisso real?

Apesar dos esforços de silenciamento por parte da indústria, para Costa Junior, tornou-se insustentável negar o impacto da produção da carne no meio ambiente. “Eu acho que a gente chegou num ponto a nível global e de consciência da sociedade que não tem como encobrir esses aspectos. Há uma consciência bem elevada do problema. O que ainda falta um pouco é consciência da solução”, diz.

Para ele, um dos maiores sinais de que o problema se tornou inegável é o fato de uma empresa como a brasileira JBS, maior processadora de carne do mundo, ter anunciado em março o compromisso de zerar o balanço de emissões de gases de efeito estufa até 2040, o chamado net zero. “Não discutindo cumprimento ou a viabilidade desse compromisso. Mas isso é um sinal de que essa consciência do problema já penetrou nos sistemas.”

Especialistas afirmam que é difícil avaliar o quão factível é o compromisso da JBS, já que a empresa não detalhou exatamente o que quer dizer com net zero e como pretende cumprir a meta ambiciosa.

A primeira questão é o que a empresa considera como suas emissões. “São só as que ocorrem no abatedouro? São as que ocorrem nas fazendas de criação de gado? São as que ocorrem nos fornecedores indiretos? São as que ocorreram com a remoção da mata que existia antes de virar pasto?”, questiona Lima.

A segunda questão é: caso a JBS esteja considerando todos os seus fornecedores, diretos e indiretos, como ela conseguirá alterar as práticas do campo de todas essas fazendas, de onde vem a maior parte das emissões.

Para entender melhor a cadeia de produção da carne: os fornecedores indiretos são aqueles que produzem os bezerros, que por sua vez são vendidos para as fazendas de recria e engorda, que são os fornecedores diretos. Para cada fornecedor direto, existem outros 10 indiretos.

“Esses frigoríficos têm literalmente dezenas de milhares de fornecedores. Quando a gente olha do ponto de vista de produção e emissão de gases de efeito estufa, o frigorífico não detém o controle sobre essas fazendas”, afirma Costa Junior. “Esse compromisso de zero emissão é super válido e realmente em teoria está em linha com o que se demanda. Mas eles só vão conseguir aterrissar de fato quando houver planos concretos e detalhados para que gerem confiança na cadeia e fidelizem os produtores, para que eles mudem a prática do campo, de onde vem a maior parte das emissões.”

O fato de os grandes frigoríficos terem milhares de fornecedores dificulta o cálculo do impacto do produto final no meio ambiente, já que cada fazenda pode adotar práticas variadas que resultam em diferentes níveis de emissões. Garantir que todos esses fornecedores adotem práticas sustentáveis em curto ou médio prazo é um desafio enorme, diante do qual os especialistas se mostram céticos.

Além disso, essa multiplicidade de fornecedores pode tornar mais difícil para o consumidor descobrir se a carne é realmente livre de desmatamento ilegal. A falta de monitoramento de fornecedores indiretos é considerado um dos principais obstáculos para combater o desmatamento na pecuária amazônica, segundo uma investigação conjunta da Repórter Brasil, do The Bureau of Investigative Journalism e do jornal britânico The Guardian. 

A investigação descreve a prática conhecida como “triangulação do gado”, que consiste em transferir os animais de uma fazenda com histórico de desmatamento ilegal para outra “ficha-limpa”, responsável por revender para grandes empresas.

Queimadas da Amazônia estão diretamente ligadas à pecuária. Crédito: Takumã Kuikuro/Fotos Públicas

A terceira dúvida sobre o plano da JBS é como a empresa pretende compensar as emissões que serão contabilizadas. “É plantando pinus e eucalipto por aí? Isso não está claro e precisa ficar claro”, diz Lima.

Em nota, a JBS afirmou que o compromisso net zero contempla as emissões de escopo 1, ou seja, emissões diretas provenientes de frotas próprias, de combustíveis usados na geração de energia ou calor na operação, das lagoas de tratamento de efluentes e da fermentação entérica [processo digestivo] dos animais em confinamentos ou granjas da empresa, entre outros. 

Também inclui as de escopo 2, isto é, emissões indiretas relacionadas a energia, e 3, outros tipos de emissões indiretas, como as provenientes de transporte terceirizado, viagens aéreas comerciais, decomposição de resíduos em propriedades de terceiros, entre outros. A descrição do escopo 3 nos relatórios de sustentabilidade da JBS não deixa claro se ela inclui a fermentação entérica dos animais em propriedades de terceiros. Essa é uma das grandes fontes de emissão de gases de efeito estufa relacionadas à pecuária. A empresa acrescentou que, para executar esse compromisso, está desenvolvendo um plano com metas baseadas na ciência.

Enquanto o plano não fica pronto, a companhia afirma que já está desenvolvendo algumas estratégias, como investir US$ 1 bilhão nos próximos 10 anos em projetos de redução de emissões e alocar US$ 100 milhões até 2030 em pesquisa e desenvolvimento, para implementar soluções de mitigação das emissões. Também promete converter para fontes renováveis 100% da eletricidade que consome em sua operação até 2040 e atrelar a remuneração variável de altos executivos às metas climáticas.

A professora do Departamento de Estudos Ambientais da New York University Jennifer Jacquet, que pesquisa a responsabilidade climática dos produtores de carne, tem observado com interesse a aparente mudança de postura da JBS. Ela observa que até recentemente, em seus relatórios de sustentabilidade, a empresa descrevia as emissões de escopo 2 e 3 como fontes sobre as quais a empresa não tem responsabilidade, não tem controle operacional, ou sua responsabilidade é indireta (questionada, a JBS não comentou a mudança). 

Ela acredita que a nova postura se deve ao aumento da consciência ambiental dos consumidores e que é significativo o fato de a JBS ter anunciado sua iniciativa de net zero em uma página inteira do jornal The New York Times. “Eles estão dizendo aos consumidores americanos: ‘Não se preocupem, não mudem seus hábitos alimentares, está tudo bem’”, diz Jacquet. “Ainda que a JBS esteja tão próxima do governo, eles ainda têm que lutar pela preferência dos consumidores, ao menos nos mercados estrangeiros.”

Anúncio da JBS no New York Times pedindo que hábitos de consumo não sejam alterados. Crédito: Blogue Food Politics

Ciência a serviço da indústria nos EUA

Nos Estados Unidos, a estratégia de financiar cientistas não é exclusividade da indústria da carne, segundo Jacquet, que tem estudado como diversos setores – como tabaco, petróleo e gás, farmacêutico e químico – sistematicamente negam o conhecimento científico para seu próprio benefício.

O plano é posto em prática sempre que a ciência demonstra potenciais malefícios dessas indústrias para a saúde ou para o meio ambiente e elas farejam a ameaça de regulamentações mais estritas. “Elas contratam firmas de relações públicas que têm setores de gerenciamento de crise, que vão lidar com essa ciência criando o que parecem ser websites independentes ou outras plataformas digitais que vão contestar o conhecimento científico prevalente”, afirma Jacquet.

Faz parte dessa estratégia a contratação de cientistas, preferencialmente afiliados a universidades, que vão receber dinheiro para produzir estudos naquela área do conhecimento. Quanto mais favoráveis forem os resultados, maior será o financiamento ao pesquisador e a sua instituição.

Ela cita o exemplo de Frank Mitloehner, diretor do Clear Center, centro de pesquisa da Universidade da Califórnia em Davis. Visto no meio acadêmico como um dos principais negacionistas do impacto climático da produção de carne, ele recebe financiamentos generosos dessa indústria. Apesar de ser especialista em ciência animal e não ter formação em ciências climáticas, ele se autodenomina o “guru dos gases de efeito estufa” – inclusive esse é o nome da sua conta no Twitter, @GHGGuru.

Seu primeiro trabalho na área foi questionar a metodologia utilizada pela FAO em um de seus relatórios para calcular a contribuição do setor de produção de carnes na emissão de gases de efeito estufa. O questionamento era válido, mas não alterava de forma significativa as conclusões do relatório (mesmo após revisões, a contribuição do setor, de 14,5%, continuou elevada). Ainda assim, o barulho feito por Mitloehner na mídia foi tanto que, para o público geral, os dados da FAO sobre o impacto climático da carne ficaram desacreditados.

“Acho que isso é imoral e é algo com que temos que lidar nos Estados Unidos. Alguns desses cientistas se apresentam como cientistas independentes, mas na realidade estão na folha de pagamento da indústria”, diz Jacquet, que prepara um livro sobre o assunto – intitulado The Playbook – com lançamento em junho de 2022.

Esta reportagem faz parte da série especial Ciência Ltda, produzida para a identificar como a distorção e a transformação da ciência em marketing têm um impacto direto em nossas vidas.

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