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O direito ao aborto legal no Brasil convive com um problema óbvio, mas de difícil solução. A falta de informações confiáveis é um dos principais desafios para que mulheres consigam ter acesso a um direito que pode salvar suas vidas.
A necessidade esbarra na primeira barreira: em uma busca na internet por “onde fazer aborto legal em Pernambuco”, por exemplo, as respostas encontradas em diferentes sites contradizem uns aos outros.
Ao contrário do que informa o site do Ministério da Saúde, nem todos os hospitais listados como autorizados a realizar os procedimentos de interrupção de gravidez em decorrência de violência sexual fazem, de fato, o atendimento.
Para a mulher que ultrapassar esse primeiro obstáculo, ao chegar em um dos serviços que realizam o atendimento é possível que não consiga se submeter ao procedimento. A objeção de consciência, quando um médico pode se recusar a realizar o aborto legal, mesmo em hospitais que deveriam realizar o atendimento, é outro ponto a ser levado em consideração.
A rede de atendimento a vítimas de violência sexual também pode vir a ser outro obstáculo. Se a mulher foi vítima de violência sexual e procurou primeiro a delegacia, por exemplo, há registros de casos em que ela não é informada de que pode ser encaminhada diretamente ao hospital e de que não é necessário um boletim de ocorrência para realizar a interrupção.
Entrar em um hospital e não encontrar nenhuma informação objetiva sobre o direito ao acesso ao aborto legal também faz toda a diferença, de acordo com especialistas e profissionais da rede de atendimento. Um cartaz com a legislação disponível é algo distante da realidade de vários centros médicos, mas a reivindicação é antiga.
Angela Freitas, cientista política, sócia-fundadora do SOS Corpo, é uma comunicadora que trabalhou nos governos Lula e Dilma no treinamento de equipes da rede de atendimento a mulheres vítimas de violência sexual. Ela atesta que a batalha pela garantia e qualidade do acesso ao aborto legal precisa ser continuada. “A gente tem uma dificuldade grande de assegurar esse direito que está desde 1940 no Código Penal. O primeiro serviço de atendimento ao aborto legal só foi criado 40 anos depois do Código Penal. Já se vão décadas e hoje dificilmente dá para dizer que os serviços estão consolidados, funcionando regularmente, sem problemas”, analisa.
Para ela, a experiência brasileira tem altos e baixos. O fato de não só o aborto, mas também o aborto legal, ser uma pauta sensível para a comunidade religiosa cristã, faz com que o conflito esteja sempre em primeiro plano quando o tema é tratado. Por esse motivo, a mediação de governos e fortalecimento de políticas públicas é tão importante. “Quando se vê que a luta do movimento de mulheres está crescendo e indo forte no sentido da legalização, paralelamente cresce a resistência religiosa. Então é uma luta constante que, nos tempos atuais, está muito mais acirrada com o governo conservador que a gente tem”, afirma.
No Código Penal brasileiro, em dois incisos do artigo 128, estão previstas a não punição de médicos que realizem o aborto para salvar a vida da mulher e em casos de gestação decorrente de estupro, com solicitação e consentimento da mulher. Quando a mulher é menor de idade, deficiente mental ou incapaz, é necessária autorização de representante legal. Conhecer o que é necessário ou não em cada um do casos permitidos por lei é fundamental para reivindicar os direitos na hora do atendimento.
Recentemente, após o caso da criança de 10 anos do Espírito Santo, o Ministério da Saúde emitiu uma portaria que dificulta o acesso de mulheres ao aborto legal, apesar de legislações e portarias anteriores que contradizem essa medida mais recente. A portaria é objeto de pressão de movimentos sociais, entidades de classe médica e política para que seja anulada pelo Congresso Nacional.
Saiba quais são e onde estão os serviços de saúde em Pernambuco que realizam o aborto legal, de acordo com dados do Fórum de Serviços de Aborto Legal de Pernambuco:
De acordo Paula Viana, integrante do Grupo Curumim e que compõe o Fórum dos Serviços de Aborto Legal de Pernambuco, o IMIP, no Recife, apesar de não estar na lista informada pelo Ministério da Saúde, realiza o atendimento de crianças vítimas de violência e que engravidaram em decorrência de estupro.
Em entrevista à Marco Zero, Angela refletiu sobre como a comunicação é um fator decisivo no contexto ao acesso ao aborto legal. Além disso, o papel da mídia ao abordar e noticiar casos de aborto legal e casos de aborto clandestino podem influenciar em como mulheres chegam ou não aos serviços.
Em 2008, um caso similar ao da menina do Espírito Santo aconteceu em Pernambuco quando uma menina de nove anos, vítima de estupro pelo padrasto, engravidou e teve dificuldade para conseguir interromper a gravidez devido à pressão da Igreja Católica. O caso teve grande repercussão na imprensa. Questionada sobre o que faz com que casos com crianças tomem essas proporções, Freitas enumera alguns fatores.
“É uma combinação de fatores. Aparentemente essa menina [do Espírito Santo] mora em um local pequeno, mas que tem uma imprensa muito ativa e que, por isso, foi divulgado imediatamente. Eu não sei bem como, mas quando ela procurou ajuda na saúde foi noticiado e, como hoje em dia esse tema está muito sensível, a trajetória dessa história na imprensa foi como rastilho de pólvora. Cresceu e os olhos se voltaram para o caso, tanto os olhos das feministas que estão atentas ao que está se passando, quanto aos olhos das autoridades públicas, quanto aos olhos do setor conservador que quer dominar esse terreno, quer evitar a qualquer custo qualquer acesso ao direito ao aborto legal. E isso é uma oportunidade. Trata-se de uma menina de 10 anos, uma família fragilizada em uma cidade pequena. São fatores que contribuem para tornar um caso de muita publicizada”, analisa.
Em 2018, de acordo com o Datasus, 21 mil crianças tiveram filhos no Brasil. Pela legislação brasileira, relações sexuais de adultos com meninas até 14 anos é considerada estupro de vulnerável. Esse dado expõe a urgência e importância de uma cobertura qualificada. “O caso dessa menina não foi isolado. Quando vemos os dados de meninas que não têm acesso ao aborto legal, ou seja, que não procuraram o serviço de saúde ou não foram informadas do direito, quer dizer que não é um caso isolado”, lembra Freitas.
Para Angela, a cobertura da imprensa quando se aproxima da chave da “polêmica” perde a chance de levantar e debater questões com qualidade. Segundo ela, historicamente existe uma cultura da imprensa policialesca, inclusive na cobertura sobre questões de aborto, que contribui para a criminalização. “São muitas as notícias de casos de mulheres que abortam clandestinamente. E já há uma abordagem policialesca de que são criminosas, assassinas, sem nenhum escrúpulo de entender em que circunstância as mulheres procuram fazer um aborto clandestino”.
“A gente tem estudos de comunicação que mostram que depois da Constituinte começou a aparecer uma mídia um pouquinho mais qualificada com relação ao aborto. Ficaram mais frequentes matérias mais elaboradas, menos parciais para criminalizar e mais problematizadoras, trazendo outras versões, escutando as mulheres. Analisando a questão de um ponto de vista mais construtivo, mas isso não impede que ainda exista a imprensa sensacionalista”, contextualiza.
Mulher negra e jornalista antirracista. Formada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), também tem formação em Direitos Humanos pelo Instituto de Direitos Humanos da Catalunha. Trabalhou no Centro de Cultura Luiz Freire - ONG de defesa dos direitos humanos - e é integrante do Terral Coletivo de Comunicação Popular, grupo que atua na formação de comunicadoras/es populares e na defesa do Direito à Comunicação.