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Jair Messias Bolsonaro pretende ressuscitar

Luiz Carlos Pinto / 13/04/2020

Crédito: Marcos Corrêa/Pres. da República

Os governos messiânicos invocam soluções mágicas porque não existem forças políticas que os possam confrontar. Mas as saídas falsas também são resultado da alienação das potências políticas do povo, que prefere a idolatria ao desamparo – esse afeto, que passou a estar de forma tão presente nos debates sobre economia e política ultimamente. A adesão à hidroxicloroquina como tratamento para a proliferação do Covid-19, anunciada pelo presidente Bolsonaro na semana passada, é mais que uma cortina de fumaça, embora seja isso também. É, principalmente, a expressão acabada de uma lógica salvacionista que convive conosco ao longo da história desse país.

A ação
integralista de 1930, a luta pela redemocratização nos anos 1980, a onda
neoliberal (e ainda assim arcaica dos anos 1990) são alguns dos momentos em que
se fez mais explícita. O que estamos vendo nos dias que correm, nas ações do
presidente e de seus seguidores mais empedernidos, dos pastores que o apoiam e
do círculo de ódio que o instrumentaliza, é a resposta salvacionista a um
contexto cuja solução real demorará mais do que o salvador pode esperar, e mais
do que o Messias pode compreender.

Mas o
incentivo pessoal à aglomeração vai além do mero negacionismo. Quando Jair
Messias Bolsonaro circula nas ruas de Brasília ou de Goiana, desrespeitando a
orientação de seu ministro da Saúde pelo afastamento social, não está dando
somente mal exemplo. Ou corporificando o estado suicidário a que o filósofo Vladimir Safatle tão bem se referiu. Há,
também, aí, além do suicídio, a homologação da forma pela qual o mito fundador
brasileiro atualiza o corpo místico do líder.

As representações que temos de
nós mesmos e do país estão atreladas ao chamado mito fundador do Brasil, cujas
raízes foram fincadas em 1500. O mito fundador não cessa de encontrar novos
meios para exprimir-se, novas linguagens, novos valores e ideias, de tal modo
que, quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais é a repetição de si mesmo.

Do lado dos dominados, o mito
fundador brasileiro reinterpreta a história e o governante pela via milenarista
– uma doutrina cristã que aposta numa segunda vinda do Cristo, no Fim dos
Tempos, o que dará início a um reinado de mil anos de saúde, paz, prosperidade.
É alimentado por ideias assim que o salvacionismo se fortalece e ganha a forma
de agenda política e da prática diária de Jair Messias Bolsonaro, no que diz
respeito à doença que, nesse momento em que escrevo,
pode ter matado mais de 2 mil brasileiros
.

Ou seja, o governante é visto
como salvador, ao mesmo tempo em que a política é sacralizada-satanizada.
Noutros termos, o mito formula uma visão messiânica da política, cujo centro é
resumida ao embate cósmico entre luz e treva, o bem e o mal. E o governante ou
é sacralizado ou satanizado.

Por
isso, há algo mais acontecendo: com o governo no fim e tutelado em suas ações,
Jair Messias Bolsonaro pretende ressuscitar.

A
aparente invulnerabilidade do presidente ao vírus aponta para o corpo heróico,
para o corpo renascido, para o corpo ressuscitado. É a negação mítica da
realidade: está saudável, contrariando as probabilidades, num país que tem à altura em que escrevo, mais 20 mil
infectados pelo Covid-19, uma das doenças com mais alto nível de contágio até
agora conhecida. Há uma construção em andamento com esse corpo que passeia por
aí, impávido colosso, e que se projeta do campo mítico ao campo místico.

É que a
invulnerabilidade é a característica que a teologia política atribui ao corpo
político e que é decorrente das instituições e da soberania que o rei passa a
encarnar quando é sagrado como tal. Ao caminhar faceiro nas ruas de meu país,
Jair Messias transforma seu corpo físico em corpo político: um recado ao
ministro Mandetta, aos cientistas, aos jornalistas, aos evangélicos, à elite
financista, à população encurralada e assustada.

Mas há
um outro efeito desse corpo político que circula, se expõe e opõe. Escrevendo sobre
Fernando Collor de Mello, a filósofa Marilena Chauí afirmou: como pessoa mística,
à maneira teológica, o corpo político do governante distingue-se de seu corpo
físico porque não está sujeito a doenças e à morte. Imortal, o corpo do
presidente da República é deificado, e essa divinização de sua pessoa
garante-lhe o papel messiânico que deu a si mesmo.

Essa posição foi assumida pelo próprio presidente, nesse domingo de Aleluia, em videoconferência transmitida pela TV Brasil para líderes de
igrejas evangélicas. No encontro, o mandatário comparou o episódio do atentado
que sofreu em 2018 à ressurreição de Jesus Cristo. Há também a negativa dele de
mostrar o exame para o coronavírus, provavelmente positivo, atitude que alimenta
ainda mais esse mito do imaculado.

Duvido
que Jair Messias Bolsonaro ou sua trupe tenham um plano para, intencionalmente,
recuperar esses elementos arcaicos, presentes na fundação dos mitos nacionais e
das representações de nossos líderes. Cabe tanto ao jornalismo quanto às
ciências sociais observar, refletir, analisar e nomear essas coisas.

Ao mesmo tempo, não é casual a aposta infundada (porque ainda não
validada por pesquisas científicas) do uso da hidrocloroquina como meio seguro
para curar os infectados com o novo coronavírus, assim
como as mentiras fomentadas pelo gabinete do ódio
. Essa aposta atende a um
contexto de degradação das condições de vida no Brasil, mas também à cultura
autoritária de nossa sociedade e a uma base teocrática – auferida na instável
aliança com a bancada da Bíblica mas presente, no Brasil, desde sempre em nossa
identidade política.

Articulados, esses três elementos municiam e autorizam
Jair Messias Bolsonaro a se autoproclamar o portador de uma boa nova: a
salvação de uma ameaça ao fim do mundo – e que você pode comprar na farmácia
mais perto. O milenarismo messiânico nasce dessa trinca e vem a calhar diante
de um cenário como o de uma pandemia.

AUTOR
Foto Luiz Carlos Pinto
Luiz Carlos Pinto

Luiz Carlos Pinto é jornalista formado em 1999, é também doutor em Sociologia pela UFPE e professor da Universidade Católica de Pernambuco. Pesquisa formas abertas de aprendizado com tecnologias e se interessa por sociologia da técnica. Como tal, procura transpor para o jornalismo tais interesses, em especial para tratar de questões relacionadas a disputas urbanas, desigualdade e exclusão social.