Crédito: Marcos Corrêa/Pres. da República

Os governos messiânicos invocam soluções mágicas porque não existem forças políticas que os possam confrontar. Mas as saídas falsas também são resultado da alienação das potências políticas do povo, que prefere a idolatria ao desamparo – esse afeto, que passou a estar de forma tão presente nos debates sobre economia e política ultimamente. A adesão à hidroxicloroquina como tratamento para a proliferação do Covid-19, anunciada pelo presidente Bolsonaro na semana passada, é mais que uma cortina de fumaça, embora seja isso também. É, principalmente, a expressão acabada de uma lógica salvacionista que convive conosco ao longo da história desse país.

A ação integralista de 1930, a luta pela redemocratização nos anos 1980, a onda neoliberal (e ainda assim arcaica dos anos 1990) são alguns dos momentos em que se fez mais explícita. O que estamos vendo nos dias que correm, nas ações do presidente e de seus seguidores mais empedernidos, dos pastores que o apoiam e do círculo de ódio que o instrumentaliza, é a resposta salvacionista a um contexto cuja solução real demorará mais do que o salvador pode esperar, e mais do que o Messias pode compreender.

Mas o incentivo pessoal à aglomeração vai além do mero negacionismo. Quando Jair Messias Bolsonaro circula nas ruas de Brasília ou de Goiana, desrespeitando a orientação de seu ministro da Saúde pelo afastamento social, não está dando somente mal exemplo. Ou corporificando o estado suicidário a que o filósofo Vladimir Safatle tão bem se referiu. Há, também, aí, além do suicídio, a homologação da forma pela qual o mito fundador brasileiro atualiza o corpo místico do líder.

As representações que temos de nós mesmos e do país estão atreladas ao chamado mito fundador do Brasil, cujas raízes foram fincadas em 1500. O mito fundador não cessa de encontrar novos meios para exprimir-se, novas linguagens, novos valores e ideias, de tal modo que, quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais é a repetição de si mesmo.

Do lado dos dominados, o mito fundador brasileiro reinterpreta a história e o governante pela via milenarista – uma doutrina cristã que aposta numa segunda vinda do Cristo, no Fim dos Tempos, o que dará início a um reinado de mil anos de saúde, paz, prosperidade. É alimentado por ideias assim que o salvacionismo se fortalece e ganha a forma de agenda política e da prática diária de Jair Messias Bolsonaro, no que diz respeito à doença que, nesse momento em que escrevo, já pode ter matado mais de 2 mil brasileiros.

Ou seja, o governante é visto como salvador, ao mesmo tempo em que a política é sacralizada-satanizada. Noutros termos, o mito formula uma visão messiânica da política, cujo centro é resumida ao embate cósmico entre luz e treva, o bem e o mal. E o governante ou é sacralizado ou satanizado.

Por isso, há algo mais acontecendo: com o governo no fim e tutelado em suas ações, Jair Messias Bolsonaro pretende ressuscitar.

A aparente invulnerabilidade do presidente ao vírus aponta para o corpo heróico, para o corpo renascido, para o corpo ressuscitado. É a negação mítica da realidade: está saudável, contrariando as probabilidades, num país que tem à altura em que escrevo, mais 20 mil infectados pelo Covid-19, uma das doenças com mais alto nível de contágio até agora conhecida. Há uma construção em andamento com esse corpo que passeia por aí, impávido colosso, e que se projeta do campo mítico ao campo místico.

É que a invulnerabilidade é a característica que a teologia política atribui ao corpo político e que é decorrente das instituições e da soberania que o rei passa a encarnar quando é sagrado como tal. Ao caminhar faceiro nas ruas de meu país, Jair Messias transforma seu corpo físico em corpo político: um recado ao ministro Mandetta, aos cientistas, aos jornalistas, aos evangélicos, à elite financista, à população encurralada e assustada.

Mas há um outro efeito desse corpo político que circula, se expõe e opõe. Escrevendo sobre Fernando Collor de Mello, a filósofa Marilena Chauí afirmou: como pessoa mística, à maneira teológica, o corpo político do governante distingue-se de seu corpo físico porque não está sujeito a doenças e à morte. Imortal, o corpo do presidente da República é deificado, e essa divinização de sua pessoa garante-lhe o papel messiânico que deu a si mesmo.

Essa posição foi assumida pelo próprio presidente, nesse domingo de Aleluia, em videoconferência  transmitida pela TV Brasil para líderes de igrejas evangélicas. No encontro, o mandatário comparou o episódio do atentado que sofreu em 2018 à ressurreição de Jesus Cristo. Há também a negativa dele de mostrar o exame para o coronavírus, provavelmente positivo, atitude que alimenta ainda mais esse mito do imaculado.

Duvido que Jair Messias Bolsonaro ou sua trupe tenham um plano para, intencionalmente, recuperar esses elementos arcaicos, presentes na fundação dos mitos nacionais e das representações de nossos líderes. Cabe tanto ao jornalismo quanto às ciências sociais observar, refletir, analisar e nomear essas coisas.

Ao mesmo tempo, não é casual a aposta infundada (porque ainda não validada por pesquisas científicas) do uso da hidrocloroquina como meio seguro para curar os infectados com o novo coronavírus, assim como as mentiras fomentadas pelo gabinete do ódio. Essa aposta atende a um contexto de degradação das condições de vida no Brasil, mas também à cultura autoritária de nossa sociedade e a uma base teocrática – auferida na instável aliança com a bancada da Bíblica mas presente, no Brasil, desde sempre em nossa identidade política. Articulados, esses três elementos municiam e autorizam Jair Messias Bolsonaro a se autoproclamar o portador de uma boa nova: a salvação de uma ameaça ao fim do mundo – e que você pode comprar na farmácia mais perto. O milenarismo messiânico nasce dessa trinca e vem a calhar diante de um cenário como o de uma pandemia.