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Assim que recebeu o título de cidadã do Recife, a educadora Dayanne Louise ocupou a tribuna da Câmara Municipal do Recife para discursar. Aproveitou para quebrar o protocolo e convidar todas as pessoas trans e travestis presentes naquele momento à sessão a estarem de pé, ombro a ombro, em frente à mesa diretora do plenário.
O momento sintetizou um simbolismo: em dezembro do ano passado, a Casa havia reunido 20 dos 24 votos necessários para a aprovação do projeto que propunha a homenagem a Dayanne. Por conta da articulação de vereadores fundamentalistas, a concessão acabou sendo rejeitada. O autor Ivan Moraes (PSOL) apresentou, novamente, a proposta e, dessa vez, a cidadania recifense foi aprovada e o título, entregue.
A sessão foi realizada na tarde de terça-feira (2). Essa foi a segunda vez na história secular da Casa José Mariano que uma mulher trans foi condecorada com o título de cidadã do Recife. A primeira foi a ativista Chopelly Santos, em fevereiro de 2022, por iniciativa da vereadora Cida Pedrosa (PCdoB).
No dia seguinte à solenidade em que foi homenageada, Dayanne atuou como facilitadora em uma formação política com a equipe da Escola Livre de Redução de Danos, organização social que atua com mulheres trans e travestis em situação de vulnerabilidade. Foi onde concedeu à Marco Zero a entrevista abaixo.
Assistente social e professora da rede pública estadual, atualmente ela está licenciada de sala de aula para concluir o doutorado na Universidade Federal de Sergipe (UFS). Natural de Carpina, Mata Norte pernambucana, hoje reside em Sergipe. Filiada ao PSOL desde 2020, descarta a disputa das eleições deste ano, mas segue determinada no enfrentamento à extrema-direita.
Marco Zero – Gostaria de começar perguntando como você está?
Dayanne Louise – Estou bem e feliz pela experiência de termos recebido o título de cidadania recifense. Falo no plural por entender que esse título representa uma conquista de um movimento que se faz na coletividade e que representa um projeto alternativo para a cidade do Recife. O sentimento que me move é o de muita gratidão, de que nós estamos caminhando, com muita assertividade.
A partir do momento em que você olha para a fotografia da sessão (de entrega do título), entende que nós estamos criando uma nova fotografia política. Com outras cores, outros gêneros, outras formas de ser e de se expressar. Estamos no rumo certo, mas a gente ainda tem muito a caminhar. A partir desses movimentos e dessas estratégias, temos conseguido honrar aquilo que a gente herdou da nossa ancestralidade, que é a coragem de se mover para além das dores e dos problemas.
Como você avalia o momento político do Brasil hoje?
Acredito que o Brasil precisa colocar na centralidade da discussão sobre cidadania a pauta trans e travesti. É impossível a gente falar de um outro projeto de cidadania brasileira sem pensar na população trans e travesti, que, historicamente, teve seus direitos negados por esse Estado.
Instituições como a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) têm desenvolvido importantes pesquisas e dossiês sobre a nossa realidade através de uma secretaria de educação, de uma secretaria de saúde, de geração de empregabilidade. A Rede Trans tem pensado o Brasil com um projeto político. A população trans e travesti tem um projeto político e de cidadania para esse País.
E que projeto é esse?
É um projeto mais inclusivo, que respeita a diferença. É um projeto que reivindica, por exemplo, uma educação a partir da perspectiva paulofreireana. É um projeto que modifica as lentes da saúde, ao reconhecer que saúde não é só a questão de você curar uma doença, mas de você promover o bem viver. É um projeto que representa uma pluralidade de bandeiras históricas.
“A população trans e travesti tem um projeto político e de cidadania mais inclusivo, que respeita a diferença”
Quais são os desafios para lidar com a extrema-direita?
Nós estamos em um país polarizado, em que a extrema-direita utiliza artifícios mais perversos: investimento massivo em fake news, desinformação, propagação de discurso de ódio. Os quatro anos de governo de extrema-direita legitimaram discursos de ódio que, anteriormente, estavam guardados nos armários, mas ainda sim surtindo efeito nos lares, nas salas de professores, nas clínicas de saúde.
O governo de extrema-direita conseguiu fazer com que esse discurso fosse institucionalizado através de falas públicas de autoridades. E isso ainda tem força no Brasil. Não se desfaz de um dia para o outro. A extrema-direita revelou a face que, por exemplo, a população trans e travesti já conhecia. Nós somos um País em que a transfobia, o racismo e o machismo são estruturais.
Você concorda com a análise de que a direita está mais à direita e a esquerda menos à esquerda?
Acho que a gente precisa pensar que temos uma direita que ainda é possível para um processo de diálogo, que estabelece um regime democrático no sentido da disputa de ideias. E nós temos uma extrema-direita que é esse grupo que, de fato, tem promovido um processo perverso de ascensão de o que existe de pior no cenário político.
A extrema-direita, de fato, é um grande desafio porque a gente precisa dar enfrentamento e, ao mesmo tempo, entender que a esquerda é um campo muito plural. Por isso, é complicado dizer se está menos à esquerda porque a gente precisa entender que ela é composta por um grupo muito diverso. O grande desafio é estabelecer um diálogo honesto, reconhecendo essas diferenças e unindo forças para combater o avanço do facismo, mas também entendendo que há princípios inegociáveis.
E quais são eles?
A gente não pode mais pensar que os direitos da população LGBT estão na mesma de negociação, em troca de governabilidade. A gente não pode mais naturalizar que pautas como a criminalização das drogas e a questão do aborto e dos direitos sexuais e reprodutivos virem pautas ditas de costume. E que a esquerda não compre, de fato, a briga pela efetivação dos direitos humanos para todas as pessoas. É preciso que a gente tenha a maturidade para trazer isso à centralidade do debate, porque a extrema-direita consegue se articular para promover o desmonte das políticas.
Mais cedo, você havia falado sobre a importância das pessoas trans e travestis sonharem. Qual é o sonho de Dayanne hoje?
Que o Recife seja uma cidade onde a população trans e travesti seja capaz de sonhar, mas também de concretizar seus sonhos. Que ocasiões como essa entrega do título não seja exceção. Que outros trabalhos sejam reconhecidos e essa coletividade seja fortalecida. Que as casas legislativas sejam, de fato, casas do povo. Que a gente tenha mais rostos de pessoas trans e travestis visibilizados pelos seus méritos, e não mais em páginas policiais ou em lápides de cemitério. O meu sonho é que a gente possa ter um Brasil plural, democrático e com justiça social.
Como você definiria a sessão de entrega do título de cidadã recifense?
Um recado da população trans e travesti do Recife para o Recife. E que recado é esse? O de que jamais, nessa cidade, será possível falar de cidadania sem contar com a nossa presença.
Com 19 anos de atuação profissional, tem especial interesse na política e em narrativas de defesa e promoção dos direitos humanos e segurança cidadã.