Apoie o jornalismo independente de Pernambuco

Ajude a MZ com um PIX de qualquer valor para a MZ: chave CNPJ 28.660.021/0001-52

Foto de Dayanne Louise ao microfone lendo discurso enquanto segura papéis. Ela pe uma mulher de cabelos loiros ondulados e pele bronzeada.

Crédito: Beto Figueiroa

“Jamais será possível falar de cidadania sem contar com a presença das pessoas trans”, diz Dayanne Louise

Jorge Cavalcanti / 05/07/2024

Crédito: Beto Figueiroa

Assim que recebeu o título de cidadã do Recife, a educadora Dayanne Louise ocupou a tribuna da Câmara Municipal do Recife para discursar. Aproveitou para quebrar o protocolo e convidar todas as pessoas trans e travestis presentes naquele momento à sessão a estarem de pé, ombro a ombro, em frente à mesa diretora do plenário.

O momento sintetizou um simbolismo: em dezembro do ano passado, a Casa havia reunido 20 dos 24 votos necessários para a aprovação do projeto que propunha a homenagem a Dayanne. Por conta da articulação de vereadores fundamentalistas, a concessão acabou sendo rejeitada. O autor Ivan Moraes (PSOL) apresentou, novamente, a proposta e, dessa vez, a cidadania recifense foi aprovada e o título, entregue.

A sessão foi realizada na tarde de terça-feira (2). Essa foi a segunda vez na história secular da Casa José Mariano que uma mulher trans foi condecorada com o título de cidadã do Recife. A primeira foi a ativista Chopelly Santos, em fevereiro de 2022, por iniciativa da vereadora Cida Pedrosa (PCdoB).

No dia seguinte à solenidade em que foi homenageada, Dayanne atuou como facilitadora em uma formação política com a equipe da Escola Livre de Redução de Danos, organização social que atua com mulheres trans e travestis em situação de vulnerabilidade. Foi onde concedeu à Marco Zero a entrevista abaixo.

Assistente social e professora da rede pública estadual, atualmente ela está licenciada de sala de aula para concluir o doutorado na Universidade Federal de Sergipe (UFS). Natural de Carpina, Mata Norte pernambucana, hoje reside em Sergipe. Filiada ao PSOL desde 2020, descarta a disputa das eleições deste ano, mas segue determinada no enfrentamento à extrema-direita.

Foto do plenário da Câmara Municipal do Recife, com várias pessoas vestindo roupas casuais perfiladas junto à mesa diretora. Algumas estão aplaudindo, enquanto, no alto à esquerda, Dayanne Louise, mulher loira, de cabelos ondulados e pele bronzeada, vestindo camiseta preta decotada. Ao fundo, painel exibe imagens do que está acontecendo no plenário e foto em close da homenageada.

Mulheres e homens trans ocuparam o plenário da Câmara ao receber homenagem

Crédito: Guga Matos/Câmara Municipal do Recife

Marco Zero – Gostaria de começar perguntando como você está?

Dayanne Louise – Estou bem e feliz pela experiência de termos recebido o título de cidadania recifense. Falo no plural por entender que esse título representa uma conquista de um movimento que se faz na coletividade e que representa um projeto alternativo para a cidade do Recife. O sentimento que me move é o de muita gratidão, de que nós estamos caminhando, com muita assertividade.

A partir do momento em que você olha para a fotografia da sessão (de entrega do título), entende que nós estamos criando uma nova fotografia política. Com outras cores, outros gêneros, outras formas de ser e de se expressar. Estamos no rumo certo, mas a gente ainda tem muito a caminhar. A partir desses movimentos e dessas estratégias, temos conseguido honrar aquilo que a gente herdou da nossa ancestralidade, que é a coragem de se mover para além das dores e dos problemas.

Como você avalia o momento político do Brasil hoje?

Acredito que o Brasil precisa colocar na centralidade da discussão sobre cidadania a pauta trans e travesti. É impossível a gente falar de um outro projeto de cidadania brasileira sem pensar na população trans e travesti, que, historicamente, teve seus direitos negados por esse Estado.

Instituições como a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) têm desenvolvido importantes pesquisas e dossiês sobre a nossa realidade através de uma secretaria de educação, de uma secretaria de saúde, de geração de empregabilidade. A Rede Trans tem pensado o Brasil com um projeto político. A população trans e travesti tem um projeto político e de cidadania para esse País.

E que projeto é esse?

É um projeto mais inclusivo, que respeita a diferença. É um projeto que reivindica, por exemplo, uma educação a partir da perspectiva paulofreireana. É um projeto que modifica as lentes da saúde, ao reconhecer que saúde não é só a questão de você curar uma doença, mas de você promover o bem viver. É um projeto que representa uma pluralidade de bandeiras históricas.

“A população trans e travesti tem um projeto político e de cidadania mais inclusivo, que respeita a diferença”

Quais são os desafios para lidar com a extrema-direita?

Nós estamos em um país polarizado, em que a extrema-direita utiliza artifícios mais perversos: investimento massivo em fake news, desinformação, propagação de discurso de ódio. Os quatro anos de governo de extrema-direita legitimaram discursos de ódio que, anteriormente, estavam guardados nos armários, mas ainda sim surtindo efeito nos lares, nas salas de professores, nas clínicas de saúde.

O governo de extrema-direita conseguiu fazer com que esse discurso fosse institucionalizado através de falas públicas de autoridades. E isso ainda tem força no Brasil. Não se desfaz de um dia para o outro. A extrema-direita revelou a face que, por exemplo, a população trans e travesti já conhecia. Nós somos um País em que a transfobia, o racismo e o machismo são estruturais.

Você concorda com a análise de que a direita está mais à direita e a esquerda menos à esquerda?

Acho que a gente precisa pensar que temos uma direita que ainda é possível para um processo de diálogo, que estabelece um regime democrático no sentido da disputa de ideias. E nós temos uma extrema-direita que é esse grupo que, de fato, tem promovido um processo perverso de ascensão de o que existe de pior no cenário político.

A extrema-direita, de fato, é um grande desafio porque a gente precisa dar enfrentamento e, ao mesmo tempo, entender que a esquerda é um campo muito plural. Por isso, é complicado dizer se está menos à esquerda porque a gente precisa entender que ela é composta por um grupo muito diverso. O grande desafio é estabelecer um diálogo honesto, reconhecendo essas diferenças e unindo forças para combater o avanço do facismo, mas também entendendo que há princípios inegociáveis.

E quais são eles?

A gente não pode mais pensar que os direitos da população LGBT estão na mesma de negociação, em troca de governabilidade. A gente não pode mais naturalizar que pautas como a criminalização das drogas e a questão do aborto e dos direitos sexuais e reprodutivos virem pautas ditas de costume. E que a esquerda não compre, de fato, a briga pela efetivação dos direitos humanos para todas as pessoas. É preciso que a gente tenha a maturidade para trazer isso à centralidade do debate, porque a extrema-direita consegue se articular para promover o desmonte das políticas.

Mais cedo, você havia falado sobre a importância das pessoas trans e travestis sonharem. Qual é o sonho de Dayanne hoje?

Que o Recife seja uma cidade onde a população trans e travesti seja capaz de sonhar, mas também de concretizar seus sonhos. Que ocasiões como essa entrega do título não seja exceção. Que outros trabalhos sejam reconhecidos e essa coletividade seja fortalecida. Que as casas legislativas sejam, de fato, casas do povo. Que a gente tenha mais rostos de pessoas trans e travestis visibilizados pelos seus méritos, e não mais em páginas policiais ou em lápides de cemitério. O meu sonho é que a gente possa ter um Brasil plural, democrático e com justiça social.

Como você definiria a sessão de entrega do título de cidadã recifense?

Um recado da população trans e travesti do Recife para o Recife. E que recado é esse? O de que jamais, nessa cidade, será possível falar de cidadania sem contar com a nossa presença.

A imagem retrata um evento interno no salão onde funciona o plenário da Câmara Municipal do Recife. Há um pódio na frente com microfones e um arranjo floral. Uma mulher loira de blusa preta está no pódio, lendo a partir de um papel. Na frente do pódio, há uma faixa com várias cores e o que parece ser texto, embora o conteúdo específico do texto não esteja claro. A audiência está de frente para o orador, e várias pessoas estão em pé enquanto outras estão sentadas em fileiras de cadeiras. O fundo mostra grandes janelas e bandeiras, incluindo uma que parece ser as bandeira do Brasil e de Pernambuco. com sua combinação de cores verde, amarelo, azul e branco.

Dayanne diz que não se pode aceitar que direitos de pessoas trans sejam negociados

Crédito: Beto Figueiroa
AUTOR
Foto Jorge Cavalcanti
Jorge Cavalcanti

Com 19 anos de atuação profissional, tem especial interesse na política e em narrativas de defesa e promoção dos direitos humanos e segurança cidadã.